Democracia tutelada
- Detalhes
- Léo Lince
- 11/12/2008
As campanhas eleitorais no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Tal realidade, reveladora do extraordinário poder do dinheiro na definição da representação política, se reafirma como uma tendência que se avoluma a cada pleito. Toda eleição é mais cara do que a sua congênere anterior. Com isso, a conquista de mandatos e a formação do poder político, que pela Constituição deveria emanar do povo e em seu nome ser exercido, cada vez mais se realiza sob a batuta dos donos do dinheiro.
O volume totalizado dos gastos na eleição de outubro último continua indisponível para o cidadão comum, inclusive nas páginas da justiça eleitoral. A mídia de massa, a televisão principalmente, não se ocupa deste tipo de informação. Mas alguns quadrinhos publicados em páginas secundárias dos jornais permitem afirmar que "nunca houve na história do Brasil" eleição municipal mais cara. O valor total gasto pelos eleitos nas 26 capitais, por exemplo, cresceu 70% em relação a 2004. Foram R$ 115,8 milhões de gastos declarados, contra R$ 67,8 milhões, valores já corrigidos pela inflação do período, em 2004.
Kassab, em São Paulo (R$ 29,7 milhões); Lacerda, em Belo Horizonte (R$ 17,5 milhões); Eduardo Paes, no Rio (R$ 11,4 milhões) foram as três campanhas mais caras. O primeiro superou em 65% os gastos de seu padrinho, Serra, em 2004, enquanto os dois outros quase quadruplicaram, em relação à disputa anterior, o preço da vitória. E por falar em preço, uma curiosidade reveladora: o segundo colocado nas urnas (a amostragem informal requer que cada qual verifique no seu município ocorrência semelhante) é também o segundo colocado em gastos.
O crescimento vertiginoso das chamadas "doações ocultas" é outra marca do último pleito municipal. Dos R$ 115,8 milhões arrecadados pelos vitoriosos, R$ 41 milhões, 36% do total, são de origem desconhecida. Os doadores, empreiteiras com obras contratadas pela prefeitura, prestadores de serviços ou fornecedores das administrações municipais, em vez de injetarem recursos nas contas dos candidatos, fazem suas doações aos partidos, que as repassam às campanhas. Na prestação de contas, os diretórios partidários aparecem como origem dos recursos repassados. Os técnicos do TSE chamam o artifício de "burla legal" e, segundo eles, tal estratégia foi utilizada por pelo menos sete legendas (PT, PMDB, PSB, PV, PC do B, PSDB, DEM) em 17 das 26 campanhas vitoriosas. Em alguns casos, como o da prefeita eleita pelo PV em Natal, as "doações ocultas" chegaram a 87% do total arrecadado. No verdadeiro Himalaia de dinheiro torrado nas campanhas do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, praticamente a metade (um pouco mais, um pouco menos, dependendo do caso) é originária desta área de sombra.
Embora limitados aos gastos das campanhas majoritárias das capitais, os dados publicados definem um padrão de política que se espalha para os demais municípios e pelas campanhas proporcionais. Não faz muito, a Folha de S. Paulo publicou matéria sobre os gastos exorbitantes dos vereadores eleitos na capital paulista. Além de caras, as campanhas se organizam de tal forma que torna impossível a fiscalização efetiva sobre elas. Os gastos declarados, muitas vezes chuleados por "burlas legais", são apenas a parte descoberta do financiamento: o "caixa um" que a justiça eleitoral acompanha e tenta fiscalizar. Do "caixa dois", os famosos "recursos não contabilizados" (uma pálida expressão na política da sonegação fiscal que grassa na vida econômica das empresas que contribuem), só se sabe quando estouram os escândalos.
O formato atual de financiamento privado de campanha, além de fator incontrolável de corrupção, é a mais poderosa fonte das distorções que marcam a nossa cultura política. São pouquíssimos os países que permitem aos candidatos arrecadar e despender fundos de campanha, na maioria dos casos uma competência exclusiva das organizações partidárias. Aqui é a regra. Resultado: partidos fracos, máquinas pessoais para distribuição de benesses, clientela, compra de votos e mandatários que se consideram donos do mandato. Por outro lado, com a presença diminuta da contribuição cidadã de pessoas físicas, um pequeno grupo de grandes empresas domina o mercado de financiamento de campanha e aprisiona a representação política. No varejo e no atacado, a mesma lógica: pagou, leva a coisa sua.
A última eleição presidencial também foi a mais cara da história no seu gênero. Naquela ocasião, como agora, foram reduzidos os espaços para as candidaturas de opinião e se escancarou a formação de bancadas parlamentares das grandes corporações. São decorrências de um formato de financiamento que perpetua o "status quo" e estreita os vínculos entre políticos conservadores e os interesses empresariais dominantes. Ao mesmo tempo em que cria obstáculos para o surgimento de novos valores, esvazia o voto como instrumento de mudança e esteriliza a representação política como livre expressão dos conflitos sociais.
Tal círculo vicioso, que coloca em risco a nossa frágil democracia, só pode ser quebrado pela adoção do financiamento público para as campanhas eleitorais. Para garantir a independência e a viabilidade dos candidatos e dos eleitos ante o poder econômico, além de salvaguardar o princípio da igualdade na disputa, o financiamento público precisa ser exclusivo, com pesadas punições para quem violá-lo. Para funcionar de maneira justa, é necessário que se estabeleça um teto de gastos para cada cargo em disputa, além da montagem de um rigoroso aparato de fiscalização sobre o uso do fundo público eleitoral. O direito de voto assegurado de maneira igualitária ao cidadão requer, para que seja pleno em seu exercício, que o direito de "ser votado" não sofra a interferência indevida do poder econômico. Sem isso, além de formal e banal, a nossa seguirá sendo uma democracia tutelada.
Léo Lince é sociólogo.
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