Contra o massacre, somos todos palestinos!
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- Léo Lince
- 23/01/2009
A terra sagrada da Palestina iniciou o ano de 2009 sob o signo da morte. O gueto de Gaza, sob bombardeio intenso, ardeu em chamas e desespero. Os fogos de artifício das comemorações festivas da entrada do ano novo foram sobrepujados pelos fogos dos artefatos de guerra. Transposta do festivo ao lutuoso, a consciência digna da cidadania mundial foi tomada de espanto diante da brutalidade dos acontecimentos.
Agora, depois do cessar-fogo precário, os jornais estampam a radiografia preliminar do desatino. Quase cinco mil moradias destruídas; 17 mil casas danificadas; mais de 1500 estabelecimentos – comércio, pequenas fábricas, oficinas - derrubados; 20 mesquitas bombardeadas; 25 hospitais, além de escolas e laboratórios; a Universidade e até cemitérios foram atingidos.
A contagem dos cadáveres ainda segue seu curso doloroso, na remoção dos escombros e no espocar das bombas de efeito retardado. Fala-se, até agora, em mil e trezentos palestinos mortos, a maioria composta por civis, mulheres, idosos e, principalmente, crianças: um terço dos que perderam a vida. São milhares os feridos e mutilados, sem contar aquele tipo de dano incalculável por cifras e inesgotável no tempo: o pavor dos sobreviventes que vivenciaram indefesos a catástrofe. Em tempo: morreram também treze israelenses, três civis e dez soldados, alguns dos quais capitulados na estranha categoria de "fogo amigo".
A desproporção é patente, mas a estupidez da investida se espraia para muito além dela. A faixa de Gaza, como o nome indica, é uma pequena tira de terra que, sem exagero, caberia como bairro em qualquer das nossas grandes capitais. São 35 quilômetros de extensão por 10 de largura, 1,5 milhão de almas espremidas, acuadas, humilhadas e ofendidas no gueto que se constitui como a região de maior densidade populacional do planeta. Quem despeja bombas em áreas densamente povoadas comete crime de guerra e perde o direito moral de falar em "escudos humanos".
Quem bombardeia escolas, universidades, hospitais e até cemitérios agride o senso dos que acreditam nas mais prodigiosas realizações do espírito humano. O ataque aos escritórios das Nações Unidas e aos galpões da ajuda humanitária é um procedimento próprio de quem ultrapassou todos os limites do razoável. Quem tem a força, sem dúvida, pode avassalar, mas se coloca na contramão do processo civilizatório. Ao lançar mão da força bruta para impor seus desígnios, o Estado de Israel se candidata a um lugar de destaque na história universal da infâmia e da covardia.
Não vale invocar "queridas memórias" para justificar massacres. Os palestinos, tanto quanto os hebreus, são semitas. Nem o passado, sem dúvida tecido de heroísmo, deve ser usado para cristalizar intolerâncias. Árabes e judeus, em outras eras, andaram juntos no sofrimento ou na glória. Em vínculos de fogo: queimados nos Autos de Fé do Santo Ofício. Ou em vínculos de luz: na floração cultural da Espanha do século XII, onde Maimônides e Averróis, pontos luminosos das duas culturas milenares do oriente, teceram pontes para que a nascente universidade européia retomasse contatos com o pensamento grego, origem da cultura ocidental, até então seqüestrado e segregado nos mosteiros do obscurantismo.
Jorge Luiz Borges, o grande escritor argentino, escreveu um belo poema por ocasião da guerra das Malvinas. Fala de dois jovens, o argentino Juan López e o inglês John Ward, arrastados para a morte por "próceres de bronze". Diante da brutalidade que se abate sobre a terra prometida, vale recitá-lo:
"Tocou-lhes por azar uma época estranha.O planeta havia sido dividido em distintos países, cada um dotado de lealdades, de queridas memórias, de um passado sem dúvida heróico, de direitos, de agravos, de uma mitologia singular, de próceres de bronze, de aniversários, de demagogos e de símbolos. Essa divisão, cara aos cartógrafos, propiciava guerras.
López nascera na cidade junto ao rio imóvel; Ward, nos arredores da cidade por onde andou Father Brown. Havia estudado castelhano para ler o Dom Quixote.
O outro professava a paixão por Conrad, que lhe havia sido revelado em uma aula na rua Viamonte.
Teriam sido amigos, mas só se viram uma vez, cara a cara, em umas ilhas por demais famosas, e cada um dos dois foi Caim, e cada um, Abel.
Foram enterrados juntos. A neve a corrupção os conhecem.
O caso que lhes conto ocorreu num tempo que não podemos entender".
Léo Lince é sociólogo.
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