Corrupção sistêmica
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- Léo Lince
- 24/05/2007
O último caso, no sentido de mais recente, é o que vai se mostrando aos poucos na medida em que corre o fio da navalha. Navalha, furacão, sanguessuga ou mensalão, muda o nome da operação e a galeria dos implicados, mas a natureza do problema segue sendo a mesma em todos os casos.
A corrupção não é uma seqüência de fatos isolados que se repetem. Ela é uma poderosa e multifacetada cultura política que azeita o funcionamento da máquina de poder que tritura a nossa frágil democracia. A fieira interminável de escândalos se desenrola a partir de um novelo que cumpre uma função primordial na reprodução do modelo dominante.
Neste sentido, a declaração do ministro da Justiça, Tarso Genro, funciona como uma espécie de chave de decifração para o enigma que devora as instituições da nossa sereníssima república. Sempre cioso da precisão categorial, ele propõe uma separação, não apenas para efeito de análise, entre os “atos delituosos” e os “maus hábitos políticos”. Aos primeiros recomenda a punição rigorosa, “doa a quem doer”, como falou o presidente. Quanto aos segundos, contemporiza, porque sabe que sobre eles se constrói a governabilidade do sistema.
Um ministro de Estado já rodou e se lascou, mas a engrenagem que lhe colocou lá permanece acima de qualquer suspeita, e fará o sucessor. Afinal, todos sabem, até as pedras da rua, que a coalizão “sopa de letrinhas” que sustenta o governo não se sustenta sem os tais “maus hábitos”. Eles habitam o cerne do governo e explicam a ferocidade da disputa pelos cargos do segundo escalão. Fora da “base de sustentação” governista, na mal chamada “oposição” porque favorável ao sistema dominante, se bebe também o vinho da mesma pipa. O poder dissolvente do dinheiro transita com desenvoltura entre os partidos da ordem.
A Polícia Federal, sempre aplaudida quando age contra os corruptos, virou hotel de alta rotatividade. Os “colarinhos brancos” não esquentam cela. Valdomiros, valérios, vendoins e zuleidos, uma exótica galeria de tipos, são fios descartados do novelo interminável. Os “maus hábitos políticos”, preservados, vão repor as peças queimadas com a mesma facilidade com que se faz compra no mercado. Basta esperar a próxima operação.
Os “valores” que articulam o capitalismo financeiro que nos domina ao sistema político que lhe fornece base de sustentação estão no caroço do novelo. O observador atento já está careca de saber. Em todos os escândalos, nos anteriores, nos que estão em curso e nos que virão, vige a mesma marca: a micro-política que sustenta a macroeconomia da exclusão. Em cima, a fortaleza inexpugnável da casta financeira; em baixo, o intestino grosso da pequena política.
Mais do mesmo na economia, mais do mesmo na política, mais do mesmo no teatro de sombras que espanta o cidadão e faz a festa da máquina mercante. A cada novo escândalo, mudam os atores, novos personagens aparecem, mas o enredo é o de sempre. Aquele onde a rés publica continua sendo retalhada em postas como cosa nostra, entregue ao apetite insaciável dos grandes negócios e da pequena política. Um círculo vicioso que atende pelo nome de corrupção sistêmica.
Léo Lince é sociólogo.
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