Marielle, Amazônia: apontar, fogo!
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- Luis Fernando Novoa Garzon
- 13/09/2019
Dia combinado, alvo rastreado. Não vale pouco o silenciamento de tantas vozes no meio do caminho. Não é limpeza de terreno qualquer. É muita riqueza convertida e apropriada em um único golpe. Fogo! Por que parece tão difícil identificar de onde veio a ordem exclamatória?
A empresa do crime empresarial (urbano-rural-territorial) é empresa coligada do agronegócio e das indústrias extrativas. Aparelhos paraempresariais com aspiração de serem empresa matriz. No caso brasileiro, a ascensão das milícias no plano da representação política (no Legislativo e no Executivo, nos três níveis) é inseparável do processo de transferência de prerrogativas de planejamento regional e territorial para os grandes grupos econômicos privados desde os anos 1990.
Sem regulação ou fiscalização, os negócios especializados em recursos naturais logo se especializam em abstrair os elementos sociais neles intrínsecos. A banda podre interpreta os desejos mais secretos da banda limpa e os realiza provando sua inteireza: um corpo só. É nas frentes de expansão dos setores neoextrativistas na Amazônia que se concentram os massacres de camponeses e indígenas, que se devastam unidades de conservação e territórios tradicionais e onde mais se pratica o trabalho em condições análogas à escravidão.
Nas periferias e favelas, recompensa e medalha para quem organizar os estoques de mão-de-obra precarizável em último grau. A cidade é palco de uma dupla consciência da dominação objetivada-subjetivada, em outros termos, lugar de espetacularização das hierarquias e assimetrias que se estendem a partir dela.
A ordem seja concedida a quem mais entenda de carnificina. Dura pouco o autoengano que procura imputar irracionalidade ou maldade atávica ao recorte do narcotráfico, já malhado e estigmatizado. Não adianta fazer de conta que qualquer “falha nossa” do Estado policial pode ser transferida para os vilões do morro ou que os últimos massacres ocorridos nos presídios são bons efeitos colaterais de “guerras de facções”, como se houvesse alguma garantia de destruição mútua. Que tipo de ordenamento pode surgir após uma sucessão de massacres seletivos senão o mais certeiro planejamento dos próximos massacres?
Qual pode ser a sociedade política que correponde a uma sociedade econômica fundada em um modelo neoextrativista que sintetiza impunemente biomas e modos de vida neles fundados? Enquanto as empresas-líderes do país forem aquelas que controlam a disposição e maleabilidade espacial em função de encomendas exógenas, as milícias – dentro ou fora do Estado – serão mobilizadas para monitorar os extensos cordões de refugiados desse regime de acumulação incondicionada.
Tanto assim que a pistolagem dos capatazes que acompanhou a expansão da fronteira agrícola na Amazônia, a partir dos anos 1970, logo se converteu em empreendimento miliciano. Com o crescimento do número de presídios na região amazônica e com a instalação de uma penitenciária federal de segurança máxima em Porto Velho, cresceu influência das facções nos blocos de poder locais e regionais. O resultado é a intensificação dos crimes de mando e há relatos acerca de listas circulando com valores para execução de ativistas ambientais, promotores e juízes.
Os movimentos e lideranças que questionam esse mecanismo do mecanismo, têm sido calados com ameaças e assassinatos. Assim como não se chega aos contratantes dos atiradores de elite da milícia carioca que executaram Marielle e Anderson em 2018, nada a interrogar sobre quem mandou matar Nicinha em 2017, liderança pescadora do MAB, depois de fazer graves denúncias contra os consórcios controladores das hidrelétricas Santo Antônio e Jirau. Seu corpo foi encontrado no reservatório de Jirau, amarrado em um saco com pedras, com marcas de tiros na cabeça.
Quem deu ordem de passar fogo? Quem mandou e que vantagens obteve com o crime perpetrado? Quem orquestra as execuções seletivas se entende com quem direciona o fogo. As queimadas foram mais intensas nas mais recentes frentes de expansão em que se entrecruzam as fronteiras agrícola, mineral e elétrica. A marcação pode ser feita com o mapeamento da sobreposição de iniciativas econonômicas concentradas em determinadas faixas territoriais em que se instalaram grandes projetos em consonância com o avanço de empreedimentos agropecuários e minerais.
O complexo hidrelétrico do rio Madeira alongou o corredor de devastação da BR 364 na porção norte de Rondônia, parte do Acre, além da região fronteiriça boliviana e peruana. A UHE Belo Monte emitiu ondas adicionais de devastação em torno do raio da frente “pioneira” da rodovia Transmazônica, partindo de Altamira e São Felix do Xingu. A pavimentação da BR 163 (Cuiabá-Santarém) submeteu a floresta e seus povos aos determinantes da otimização desse granoduto rodoviário em que se estendem municípios feitos de soja como Novo Progresso – de onde partiu, não casualmente, a convocatória do “dia do fogo”. Em Serra Carajás Sul, nos marcos da nova pilhagem mineral da Vale a serviço de irrecusáveis encomendas externas, o fogo é sinal de saqueio conjunto, negociado e autorizado.
E aí, quem vai poder dizer o que podem os investidores privados e seus agentes operacionais? Frente à marcha forçada que se intensifica sobre os territórios, há os que abrem caminho e há os que se enfileiram, com seus corpos plenos de memórias e de sonhos de corpos plenos. Para uns, Amazônia é uma cápsula do passado a ser absorvida como e quando for conveniente pelos grupos que se tornaram senhores do presente. Para outros, estamos diante de um gigantesco repositório de alternativas. Para uns, o fogo queima apenas o bioma, para outros, o fogo é a forma de sepultar e lacrar os trânsitos e os caminhos para formas de viver não instrumentalizáveis.