Correio da Cidadania

Liberdade para matar

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“Atirar primeiro, perguntar depois” no Velho Oeste era normal. Na Bagdá de hoje, também. Foi assim que seguranças da Blackwater, que protegiam um comboio de diplomatas, mataram 16 civis inocentes. Investigações, tanto da polícia iraquiana quanto do comando central do exército americano, concluíram que não havia nada que justificasse a ação.

 

Apesar disso, ninguém foi preso. É que, no Iraque, os profissionais contratados pelo governo de Washington não estão sujeito às leis do país. Mesmo que cometam assassinatos.

 

Foi um legado deixado pela administração americana ao conceder independência ao Iraque, em 2004. Algo que lembra a China dos tempos do Império do Meio, quando as potências ocidentais possuíam concessões no país onde vigoravam suas próprias leis.

 

Três anos se passaram. Beneficiados por esta “licença para matar”, os seguranças, todos eles contratados pelo Departamento de Estado, mataram muitos civis, em circunstâncias pelo menos duvidosas. Foi necessário o sacrifício de 16 inocentes em pleno centro de Bagdá para que o governo iraquiano fizesse alguma coisa.

 

Indignado, o primeiro ministro Nouri al-Maliki declarou que expulsaria a Blackwater e todos os mil seguranças dela que trabalham no país.

 

Mas três dias depois, pressionado pelo governo Bush, mudou o discurso: a expulsão seria adiada para o fim do contrato da Blackwater, daqui a 6 meses.

 

Enquanto isso, os autores do crime viajaram rapidamente para os Estados Unidos, certos da sua impunidade. Até que tinham razão. Não estando sob a responsabilidade do exército americano, não podiam ser julgados pela Justiça Militar. Pela civil, seria complicado, pois tudo acontecera no exterior. Estavam num limbo legal.

 

Premido pela opinião pública mundial, o governo americano ordenou um inquérito que, iniciado pelo Departamento de Estado, passou em seguida para o FBI. Aí aconteceu uma surpresa. Ao serem re-inquiridos, a maioria dos indigitados recusou-se a prestar qualquer informação, invocando a Constituição. Foi então denunciado que membros do Departamento de Estado ofereceram imunidade aos seguranças que prestaram depoimento a eles. Isso significa que não poderiam ser processados por tudo o que dissessem.

 

A investigação do FBI ficou, assim, seriamente prejudicada, pois caso os seguranças fossem a julgamento, a promotoria estaria impedida de usar suas declarações.

 

Líderes do partido Democrata protestaram diante desta escandalosa proteção. O senador Barack Obama solicitou esclarecimentos de Condoleezza Rice, a quem está adstrito o Departamento de Estado.

 

Por sua vez, George W. Bush fugiu a uma resposta direta, mas declarou que apreciava os “valiosos serviços da Blackwater e os sacrifícios feitos por seus funcionários na proteção das vidas de pessoas”...

 

Chocante, talvez, mas absolutamente natural. A família de Erik Price, que dirige a Blackwater, tem sido uma das maiores financiadores do Partido Republicano desde 1990. Ele próprio financia as campanhas de Bush há muito tempo.

 

A Blackwater é a maior empresa de mercenários do mundo, com 2.300 “soldados” atuando em vários países. No Iraque, ela é a líder, com mais guardas e equipamentos do que as duas maiores concorrentes juntas. O faturamento total das três é de 520 milhões de dólares por ano na proteção de diplomatas e empresários no país.

 

As empresas de segurança não se limitam a prestar esse tipo de serviço. Elas atuam como verdadeiras unidades de apoio ao exército americano. Um bom exemplo é o que aconteceu em Abu Ghraib. No relatório ao alto comando militar, do major general Antonio M. Taguba, ele acusa os mercenários da empresa de segurança CACI de serem “direta ou indiretamente responsáveis pelas torturas”. O relatório Taguba mencionou especificamente um mercenário da CACI, Steven Stephanowicz, por ter estimulado um policial sob seu comando a aterrorizar presos, “deixando claro que suas instruções incluíam violências físicas”.

 

Ao que se sabe, o pessoal da CACI envolvido nas barbaridades de Abu Ghraib foi deixado em paz. Não poderia ser de outro modo. Afinal, a justiça militar americana poupou também todos os oficiais e agentes da CIA denunciados nos depoimentos de réus e testemunhas – a patente mais alta levada a julgamento foi de sargento.

 

A verdade é que, apesar de repetidas declarações em contrário, o exército americano não tem se distinguido pelo cuidado em poupar inocentes. Ao ponto de o dócil primeiro ministro al-Maliki ter se queixado de o general David Petraeus, atual comandante das forças americanas, ter adotado uma política de “mão pesada”, que infringiu muitas e desnecessárias baixas na população civil. As Nações Unidas informaram que 88 iraquianos foram mortos por ataques aéreos no período abril-junho deste ano, exigindo um rigoroso inquérito no último deles, no qual morreram 15 pessoas, inclusive 9 crianças.

 

Evidentemente, os americanos, sendo uma força de ocupação, também gozam do direito de não serem julgados pelas leis locais. Exigir que esse privilégio acabasse seria demais para o governo iraquiano. No entanto, eles tiveram coragem para, em 30 de outubro, aprovar uma lei submetendo as empresas de segurança e os mercenários à justiça do Iraque. Sabe-se que também insistem em processar em Bagdá os assassinos da Blackwater.

 

Nada disso é do agrado da Casa Branca. Como ela reagirá?

 

Bush não tem por norma desagradar leais seguidores, especialmente quando também financiadores. Mas agora que ele se apronta para tomar medidas mais radicais contra o Irã não é bom desagradar seus aliados que governam o Iraque. Muito menos o povo local, que se encontra pra lá de revoltado.

 

Bush confia que, com a passagem do tempo, o primeiro ministro al-Maliki e seus colegas de gabinete acabarão baixando o tom, pois sabem que, sem os americanos, não durariam muito no poder.

 

Quanto ao povo, esta é uma categoria cujo humor só preocupa Bush quando se trata do americano, por seu poder de eleger os governos do país. 

 

 

Luiz Eça é jornalista.

 

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