Correio da Cidadania

Depois de vencer, Netanyahu pode acabar perdendo

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O discurso do medo e do racismo anti-árabe foi decisivo para a vitória de Netanyahu nas eleições de Israel.

 

O sentimento de insegurança é uma herança de centenas de anos de brutais perseguições sofridas pelos judeus em todo o mundo.

 

O qual, a partir da guerra da fundação do Estado de Israel, passou a ser associado aos confrontos com os árabes palestinos e os islamitas, de modo geral.

 

Para o povo de Israel, eles substituíram os cristãos fanáticos da Inquisição e os sanguinários nazistas no protagonismo das ameaças à sobrevivência da raça judaica.

 

Na última guerra de Gaza, a visão dos (inócuos) mísseis lançados do Estreito reforçou a ideia de serem os árabes inimigos mortais do povo israelense.

 

O Irã foi acrescentado a essa lista negra, por seu ódio ao regime sionista e sua capacidade de atacar Israel com a “arma do Juízo Final”, as bombas nucleares, cuja produção um desavisado governo norte-americano estaria pronto a tolerar.

 

Durante a campanha eleitoral, Netanyahu não cessou de alertar seu povo sobre os horizontes sombrios que estavam pintando. Clamou que o Irã seria ainda pior do que os bárbaros terroristas do ISIS.

 

Discurso que pode sair pela culatra

 

Quanto aos árabes, chegou a anunciar pela TV, no dia da eleição, que eles estavam acorrendo em massa às urnas. Tomariam o poder, aliados à esquerda, caso os judeus não atendessem ao apelo eleitoral do seu partido, o Likud.

 

E, com a garantia do seu passado de inimigo ardente de árabes e iranianos, apresentou-se como o líder capaz de defender Israel contra esse gentio tenebroso.

 

Ele impediria o Irã de ter armas nucleares, jamais deixaria existir uma Palestina independente e continuaria a expandir os assentamentos judaicos na Cisjordânia. Mesmo enfrentando a oposição dos “estrangeiros” complacentes, entendidos como EUA e Europa, recentes críticos das ações militares do governo de Telavive.

 

Enquanto isso, Herzog falava em acordos que não tinham credibilidade, pois eram vistos como uma frágil proteção contra a fúria islâmica.

 

E, assim, o povo israelense, pensando ter votado pela segurança, na verdade votou pela guerra.

 

Contra o Irã, ela parece provável.

 

É certo que os iranianos manterão seu programa nuclear, mesmo sem acordo com as grandes potências ou que seja impedido pelo congresso estadunidense. Num caso assim, o governo de Teerã jamais desistirá desse direito, que lhe é conferido pelo Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares.

Aí, conforme afirmações reiteradas, Netanyahu poderá bombardear as instalações do programa iraniano. Quase fez isso em 2014, conforme declarações do general Benny Gantz, então comandante das forças armadas israelenses. Havia uma proposta do governo neste sentido em reunião ministerial, mas Gantz foi contra e a coisa não foi adiante.

 

Não será surpresa se agora, revigorado pela vitória eleitoral, o primeiro-ministro resolva atacar.

 

Ainda, há poucas semanas, no Congresso dos EUA, ele declarou que Israel interviria para acabar com o programa nuclear do Irã. Mesmo sozinho, embora esperando que Tio Sam não deixaria na mão seu sobrinho predileto.

 

Ninguém duvida que esse bombardeio marcaria a expansão da guerra pelo Oriente Médio, causando a paralisação das exportações de petróleo da região. E sérios problemas econômicos para muitos países, pois teria como efeito colateral a forte elevação no preço desse combustível.

 

Poderá acontecer também mais um confronto armado em Gaza.

 

Ventos de mudança começam a soprar, com desdobramentos imponderáveis, no conflito pela independência da Palestina.

 

Em 2009, em Bar-Ilan, Netanyahu comprometeu-se com ela ao aceitar formalmente a “solução dos dois Estados”.

 

Qualquer observador objetivo já teria percebido que nunca foi para valer. Em diversas ocasiões, as negociações dessa solução foram sabotadas pelo primeiro-ministro.

 

Ao renegar seu compromisso, dizendo que, enquanto fosse premier, não existiria Palestina independente, ele não surpreendeu aos líderes palestinos, pouco ingênuos.

 

Palestina avança suas peças

 

Mas a assunção pública dessa posição contraditória pelo israelense mexeu com os brios deles.

 

Decidiram apressar a formalização, em 1 de abril, do ingresso da Palestina no Tribunal Criminal Internacional, para requerer a investigação dos crimes de guerra dos chefes israelenses. Mas não ficarão nisso.

 

Os EUA vinham negando o reconhecimento da independência da Palestina pelo Conselho de Segurança da ONU, alegando que isso deveria se dar através de negociações entre as partes, sob a “solução dos dois Estados”.

 

Depois do pronunciamento de Netanyahu, os estadunidenses ficaram sem desculpas para se oporem ao pleito dos palestinos.

 

Eles devem voltar ao Conselho de Segurança da ONU, com seu pedido de reconhecimento. Desta vez, os EUA não terão como vetá-lo. Os palestinos ainda têm outros trunfos.

 

Como se sabe, o governo de Telavive, reagindo às acusações levadas ao Tribunal Criminal de Haia, negou-se a entregar aos palestinos as taxas que cobra em nome deles. Com isso, os palestinos ficaram sem dinheiro para pagar suas contas de energia elétrica, que é fornecida por empresa controlada por Israel. Que, simplesmente, cortou a energia, deixando a Cisjordânia no escuro.

 

Abbas, presidente da Autoridade Palestina, protestou, o Hamas protestou, os EUA protestaram, a Europa protestou.

 

Não adiantou nada. Retaliando, a Autoridade Palestina promete suspender sua colaboração com Israel na Cisjordânia, deixando de se responsabilizar pela prestação dos serviços públicos na região.

 

Quer dizer que, como governo de ocupação, Israel terá de se encarregar de todos os serviços, inclusive Educação, Saúde e Segurança Pública.

 

Vai custar a Israel muito dinheiro. Mais grave: os agentes de segurança locais vinham funcionando bem; em seis anos, praticamente não houve mísseis ou terroristas saindo da região para atacar Israel. Substituir à altura esse sistema será difícil, demorado e deverá provocar um impacto na segurança da Cisjordânia e também de Israel.

 

Nos seus choques com os palestinos, é duvidoso que Netanyahu conte com o mesmo decisivo apoio que costuma receber de Barack Obama.

 

Já faz tempo que as relações entre os dois estão estremecidas. E num processo de agravamento contínuo.

 

Tio Sam tem sido uma verdadeira mãe para Israel nos seus 67 anos de existência. Além de lhe conceder três bilhões de dólares anuais em auxílio militar, já o defendeu de cerca de 70 condenações e propostas de sanções da ONU, além de apoiar Telavive em guerras contra países árabes, inclusive nas várias invasões do Líbano e de Gaza.

 

Ainda há poucos dias, John Kerry censurou os membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU pelo enorme número de condenações e críticas a Israel, que ele via como um verdadeiro parti pris.

 

De fato, a quantidade de casos tem sido absurda, embora não destituída de justiça. Em troca desta amizade incondicional, Netanyahu acumulou problemas para Obama e sua política externa.

 

Com a criação dos assentamentos a todo vapor, a sabotagem das negociações de paz, as ameaças de atacar o Irã e as barbaridades da guerra de Gaza, os EUA ficaram numa saia justa para continuar ao lado de Israel.

 

Em março de 2010, em depoimento no Senado, o general David Petraeus, comandante militar dos EUA no Oriente Médio, declarou: “o conflito (na Palestina) fomenta o sentimento antiamericano, devido a uma percepção do favoritismo dos EUA por Israel... E enfraquece a legitimidade dos regimes árabes moderados. A Al Qaeda e outros grupos de milicianos exploram essa raiva para mobilizar apoio”.

 

A inversão de papéis

 

A “amizade especial” com Israel também gera impasses na questão iraniana. Para acalmar os israelenses, Obama tem solicitado concessões exageradas de Teerã, o que tem retardado a conclusão do tão buscado acordo nuclear.

 

Em troca, Netanyahu exige dos iranianos nada menos do que a destruição de todas as suas centrífugas, ou seja, o fim do programa nuclear do país, até agora pacífico.

 

Passou dos limites quando veio ao Senado dos EUA combater a política norte-americana de negociações diplomáticas para a solução da questão.

 

Isso foi inaceitável para Obama, que se recusou a receber o estadista israelense em sua estada em Washington.

 

E deu um recado de que as coisas poderiam mudar entre os dois quando nomeou como assessor para o Oriente Médio Robert Malley, expert na região, que fora demitido da equipe democrata da campanha de 2008, quando se soube que ele mantinha contatos com o Hamas.

 

Malley, respeitado pela idoneidade e conhecimentos do Oriente Médio, recentemente declarou a participação do Hamas nas negociações como essencial para a paz na Palestina.

 

Outro possível indício de mudanças em Washington foi a retirada do Irã e do Hizbollah da lista dos terroristas do Departamento de Estado dos EUA.

 

A explicação: a importância da atuação do Irã na luta contra os selvagens do ISIS não diminui o peso desta inesperada atitude no relacionamento Israel-EUA.

 

Quando o israelense afirmou que não permitirá a independência da Palestina, ficou provado que ele mentiu ao se comprometer com o contrário, em Bar-Ilan.

 

Depois da eleição, sentindo a barra, voltou atrás, dizendo-se contra haver um único Estado na Palestina.

 

Não é de se crer que vai funcionar. Obama deve estar se sentindo logrado, que fez papel de bobo ao defender a “solução dos dois Estados” – confiando na palavra de Netanyahu.

 

Ou quando se envolveu nas últimas negociações de paz, forçando Mahmoud Abbas a desistir da interrupção dos assentamentos como condição para participar.

 

Talvez a justa ira do presidente traído lhe dê forças para encarar o Leviatã israelense no seu país. Ele pode inverter as coisas: de pressionado, passar a pressionador. Exigir de Netanyahu que se conforme com o acordo nuclear que for feito com o Irã e em negociar uma paz justa com os palestinos.

 

Obama tem bilhões de dólares de razões, mais o poder de valor incalculável do seu apoio nas questões internacionais.

 

Claro, ele terá de se haver com a aliança pró-Israel: o Congresso, os lobbies judaicos, os evangélicos pró-sionismo, muitos jornais e emissoras de Rádio e TV, boa parte do Pentágono e outros menos votados.

 

Sucede que agora há fatos novos em favor de uma girada da política externa estadunidense, no sentido da neutralidade..

 

A maioria dos judeus norte-americanos é claramente defensora da “solução dos dois Estados”.

 

Os congressistas republicanos idem. E não terão como se opor a Obama caso ele defenda essa ideia, com propostas concretas. Os democratas, então, nem se fala.

 

Quanto ao povo, as pesquisas mostram apoio crescente a uma postura neutra da política dos EUA no Oriente Médio. Que já é dominante entre os jovens de 18 a 30 anos.

 

Tudo isso faz nascer a esperança de que, por fim, Obama vá agir de acordo com a justiça. Fará o acordo nuclear com o Irã e facilitará a independência da Palestina, preservando a segurança de Israel.

 

Claro, depois de pressionar Netanyahu devidamente. Só assim a paz vencerá a guerra.

 

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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