A Arábia Saudita mostra suas garras
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- Luiz Eça
- 06/05/2015
No ano passado, a Arábia Saudita enviou soldados e tanques para ajudar o governo do Bahrein a reprimir os protestos populares.
É o principal animador da revolução síria com armas, dinheiro e apoio político. Há alguns anos os sauditas travaram vários combates contra os houthis no norte do Iêmen.
Mas, bombardeando posições ocupadas pelos houthis, eles estão pela primeira vez promovendo uma guerra em regra contra um governo estrangeiro.
Como esse tipo de intervenção no Oriente Médio costuma ser prerrogativa dos EUA, dos quais a Arábia Saudita é satélite, surpreendeu ela começar as hostilidades sem a prévia anuência de Washington.
A explicação veio de um comandante sênior do Comando Central norte-americano (Al Jazeera- América, 17 de abril): “Foi porque eles sabiam que nossa opinião era exatamente esta: (a guerra) seria uma má ideia”.
Certo que o governo Obama apressou-se a apoiar a ação saudita; não iria contrariar seu maior aliado no Oriente Médio, depois de Israel.
Mas a guerra saudita vem em má hora. Seu objetivo é derrotar os houthis para impedir que o Iêmen caia sob influência, do Irã, seu aliado, com quem a Arábia Saudita disputa a hegemonia no Oriente Médio.
A Casa Branca acha ótimo enfraquecer o Irã, mas não agora, pois no momento seu grande inimigo não é o Irã, é a Al Qaeda.
E esse grupo terrorista, cuja mais poderosa franquia é justamente a do Iêmen, vem sendo combatido pelos houthis.
Michael Horton, autoridade em assuntos iemenitas e consultor dos governos dos EUA e do Reino Unido, afirmou que muitos oficiais de alta patente do Comando de Operações Especiais dos EUA (que atua no Iêmen) “favorecem os houthis porque eles tiveram sucesso ao expulsar a Al Qaeda de uma série de províncias”. Coisa que nem os drones, nem os militares norte-americanos e nem o exército local conseguiram.
O mesmo Horton também não acredita que os houthis façam o jogo do Irã, que já os estaria apoiando com armas e treinamento.
Considera isso nonsense.“Os houthis não precisam de armas iranianas. Eles têm bastante. E não precisam de treinamento militar. Eles combatem a Al Qaeda pelo menos desde 2012. E estão vencendo. Porque estamos combatendo um movimento que combate a Al Qaeda?”
Provavelmente porque Obama não quer desgostar mais a Arábia Saudita, ressabiada pelo acordo nuclear preliminar com o Irã, visto como uma ameaça por Riad.
Os sauditas temem a expansão do Irã, cujo regime xiita e republicano se contrapõe à monarquia saudita sunita.
Eles não podem aceitar que o Iêmen se torne um satélite dos seus inimigos, ainda mais porque faz fronteira com seu território.
Tudo indica que o Irã desempenha um papel apenas secundário nessa história. Os houthis são um movimento de milicianos, apoiado pela população xiita, majoritária no norte do Iêmen. Seu domínio sobre essa região vem de muitos anos atrás.
Eles participaram das manifestações populares que derrubaram o ditador Saleh e resultaram na instituição de um regime de transição para a democracia.
Descontentes com a corrupção do novo governo e sua falta de interesse pelos problemas locais, os houthis decidiram apelar para as armas.
Depois de derrotar movimentos rivais no norte, eles passaram a avançar em direção a Sanaa, a capital, do país.
Pensavam em tomar a cidade e forçar o presidente Hadi a formar um novo governo, com grande participação houthi.
O Irã foi contra essa ideia, mas os houthis não se tocaram, conforme oficiais de inteligência norte-americanos, citados por Bernadette Meehan, porta voz do Conselho Nacional de Segurança. Um deles teria lhe informado: “nossa avaliação é de que o Irã não exerce comando e controle sobre os houthis (Huffington Post, 21 de abril)”.
Opinião compartilhada por autoridades como o antropólogo Gabriele Von Bruck, especialista em Iêmen na Escola de Estudos Orientais e Africanos, de Londres: “eles (os houthis) não querem ser controlados pelos sauditas ou pelos norte-americanos e certamente não querem substituir os sauditas pelos iranianos. Não acho que os iranianos tenham influência em suas tomadas de decisões”.
Prosseguindo sua marcha, os houthis chegaram a Sanaa, que foi ocupada quase sem resistência, com o aplauso de boa parte da população local.
Depois de algumas semanas de negociações com o governo legal, os houthis viraram a mesa, derrubaram o presidente Hadi e assumiram o poder.
Enquanto os houthis avançavam para o sul, atacando o importante porto de Áden, Hadi fugiu para a Arábia Saudita.
Foi bem recebido pela monarquia, que assumiu a defesa dos seus interesses. Liderando uma coligação de 10 nações árabes, os sauditas iniciaram a guerra com sucessivos bombardeios que já mataram mais de mil civis e desalojaram 150 mil.
Além disso, navios sunitas e egípcios estão bloqueando os portos dominados pelos houthis com o fim de impedir a entrada de armamentos.
Para a maioria dos países da coligação, o Irã é um autêntico fantasma. Temem o longo braço do islamismo xiita.
Muitos deles dependem dos empréstimos e da ajuda financeira que recebem dos ricos sauditas.
Além da bandeira anti-Irã, essa coalizão alega estar defendendo a democracia, a restauração de um presidente eleito.
O que é verdade apenas em parte. O governo do presidente Hadi não era exatamente um modelo de garantia dos direitos humanos.
Antes que o movimento popular contra o ex-ditador Saleh saísse do controle, a Arábia Saudita e os EUA tinham acertado com os partidos a eleição de um candidato palatável: o general Hadi, então vice-presidente.
Para garantir a vitória desse cidadão, providenciou-se que ele fosse o único candidato. E assim o povo iemenita teve toda a liberdade para escolher o candidato que quisesse... Desde que fosse Hadi.
Não deu muito certo. A corrupção continuou igual, os seguidores de Saleh, instalados em importantes cargos públicos, sabotavam o governo.
Embora contando com apoio militar dos EUA, Hadi viu-se em dificuldades, pois tinha de lutar contra os houthis no norte, os separatistas no sul e a Al Qaeda, em toda parte.
Atacada pelos drones estadunidenses, os soldados iemenitas e os milicianos houthis, a Al Qaeda vinha passando um mau pedaço.
Mas, com a guerra, os norte-americanos fecharam (provisoriamente) sua base e os houthis concentram suas forças para enfrentar os partidários de Hadi.
Livres de ataques dos adversários, a Al Qaeda está deitando e rolando. Atacou a prisão de Mukalta, libertando 300 dos seus milicianos; tomou um aeroporto e um terminal de petróleo na região costeira; conquistou a cidade de Mukka, porto no mar Arábico; tomou um grande depósito de armamentos, apossando-se inclusive de muitos veículos blindados.
Enquanto a Al Qaeda vai acumulando vitórias, a guerra dos sauditas continua indefinida. Apesar dos bombardeios aéreos, a situação não mudou muito nessas quatro semanas que os ataques já duram.
Os soldados pró-Hadi e os houthis continuam lutando pela posse de Áden. O governo saudita já afirmou que só vai baixar as armas depois de derrotar seus adversários e repor Hadi na presidência.
Não será fácil. Além de sua eficiência comprovada, as forças houthis foram consideravelmente fortalecidas com as armas e equipamentos estadunidenses tomados do exército de Hadi.
Teme-se por uma longa guerra, talvez de guerrilhas, na qual o grande derrotado será o povo iemenita.
Mesmo em tempos normais, ele já vivia em péssimas condições.
Agora, piorou muito. Sendo grande parte do seu território formado por desertos, o Iêmen é obrigado a importar 90% dos alimentos que consome.
No bloqueio naval imposto pelos sauditas, os navios que se aproximam do Iêmen são sujeitos a rigorosas inspeções por tempo indeterminado. Que podem prolongar-se indefinidamente.
Com isso, muitas empresas que costumam trazer alimentos ao Iêmen suspenderam seu trabalho até que o bloqueio termine.
Em consequência, o abastecimento torna-se cada vez mais precário. A fome se espalha por um país que em desnutrição crônica classifica-se em penúltimo lugar em todo o mundo. As perspectivas de paz não são boas.
Pelo contrário, como os houthis resistem, a Arábia Saudita pode incrementar suas operações, invadindo o Iêmen por terra.
Embora amigo dos houthis, o Irã dificilmente entrará na guerra, sequer fornecerá armamentos. O grande objetivo de Teerã é concluir o acordo nuclear para conseguir o cancelamento das sanções que estão empobrecendo o país.
Não vai arriscar tudo, malquistando-se com os EUA, amigo e protetor da Arábia Saudita. A ONU poderia intervir, forçando um acordo entre as partes.
Dependeria de uma decisão do Conselho de Segurança, sem o veto norte-americano. Por enquanto, não parece haver muita chance. Os sauditas parecem certos da vitória e os EUA não vão querer desagradar seus aliados.
Luiz Eça é jornalista
Website: Olhar o Mundo.