Congo: 20 anos de guerra e caos
- Detalhes
- Luiz Eça
- 08/06/2015
Quase sem espaço na mídia, desconhecida pela opinião pública internacional, prossegue na República Democrática do Congo a maior e mais sangrenta guerra desde a segunda grande guerra.
Tendo começado há 20 anos, os conflitos já fizeram entre 5 a 6 milhões de mortos ou desaparecidos e destruíram virtualmente a economia do país.
A história do Congo tem sido marcada pela tragédia desde fins do século 19.
Em 1885, ao final da Conferência de Berlim, as potências europeias entregaram o país ao rei Leopold II, da Bélgica, com a missão de “civilizá-lo”.
E ele a cumpriu, organizando um exército mercenário que escravizou o povo congolês, obrigando-o a trabalhar à força na extração de borracha.
Torturas, massacres, esquartejamentos, incêndios de vilas inteiras, assassinatos em massa foram largamente usados para elevar ao máximo os lucros do rei (ler Adam Hochschild e seu livro “O Fantasma do Rei Leopoldo”).
Em 1908, com as repetidas denúncias dessas atrocidades pela imprensa, a comunidade internacional acabou reagindo. O rei perdeu o Congo, que se tornou colônia da Bélgica com o nome de Congo Belga.
O segundo ato da tragédia congolesa começou em 1960, quando o país conseguiu sua independência, elegendo Patrice Lumumba para primeiro-ministro.
Lumumba era talvez o maior líder nacionalista africano. Defendia a união dos países do continente numa posição neutra e independente dos EUA e da União Soviética, então empenhados na guerra fria pela hegemonia global.
Como o Congo, todos os demais novos países que estavam se emancipando na África tinham sido colônias europeias. E ainda continuavam com laços que os ligavam a seus antigos senhores.
O objetivo do Ocidente era manter esses países em sua órbita de influência. Lumumba foi visto como um inimigo.
Com apoio da Bélgica e da Union Miniére, megaempresa que explorava os minérios locais, providenciou-se um golpe de estado.
Lumumba resistiu, pediu ajuda aos EUA e depois à ONU: ambos se recusaram a intervir.
Recorreu então aos soviéticos, que concordaram.
Mas logo em seguida foi sequestrado e assassinado em segredo. Há provas de que a CIA e a Bélgica estavam envolvidos até os olhos nessa operação.
Em 2001, a comissão de investigação belga concluiu por “responsabilidade moral (do governo) e uma inegável porção de responsabilidade nos eventos que levaram à morte de Lumumba”. Bruxelas admitiu e pediu desculpas ao governo congolês.
Documentos desclassificados (liberados) dos EUA mostram que os líderes que mataram Lumumba receberam armas e dinheiro diretamente da CIA.
A seguinte tragédia congolesa foi o governo do sucessor de Lumunba: o coronel Mobutu, um dos seus assassinos.
Ele ficou no poder durante 32 anos (1965-1997), saqueando as riquezas do país em benefício próprio e de sua família. Calcula-se que sua fortuna pessoal, toda depositada no exterior, chegava a 7 bilhões de dólares.
Enquanto deixava a precária infraestrutura do país ruir, Mobutu perseguia duramente seus opositores, violando direitos humanos à vontade.
Contava com o apoio dos EUA e das potências europeias por ser um fiel aliado contra a União Soviética e os movimentos nacionalistas africanos.
Mas a guerra fria acabou e Mobutu perdeu sua utilidade. Com sua péssima imagem internacional, ele era incômodo para o Ocidente.
Ainda aguentou dez anos depois da queda do muro de Berlim, sendo por fim derrubado por um movimento militar soi disant democrático, em 1997.
Dois anos antes de sair, uma grande guerra já estava pintando. Suas raízes estavam em Ruanda, no massacre de 800 mil tutsis pelo exército e milícias de hutus.
Derrotados na revolução que se seguiu, os hutus fugiram para o vizinho Congo, instalando-se em acampamentos justamente onde habitavam populações tutsis.
A chegada dos desses inimigos históricos da etnia tutsi desestabilizou a região. Eram um milhão de refugiados, incluindo milhares de milicianos hutus participantes no genocídio de Ruanda.
De lá eles passaram a lançar ataques contra esse país. Que não ficou vendo a banda passar. Logo um exército ruandês invadiu os acampamentos de refugiados, mas não parou por ali: continuou a avançar, ameaçando o governo central congolês.
E a guerra se expandiu com exércitos de Uganda e Burundi penetrando no território do Congo para ajudar Ruanda a derrubar o governo legal, que contava em sua defesa com exércitos de Angola e Zimbabwe.
Dezenas de milícias entraram na guerra dos dois lados. As mais poderosas eram o FDR, que dizia defender os refugiados hutus, e o M23, aliado às tropas ruandesas, contra o governo oficial.
Num país sem lei, onde as instituições estavam em frangalhos, o Estado absolutamente ausente e a exploração de suas riquezas sem controle, esses grupos armados dominaram regiões inteiras, roubando e praticando as maiores violências contra a população civil.
Oficialmente, a guerra terminou com um acordo de paz, em 2002, mas os conflitos não cessaram.
Para tentar salvar o Congo do caos, a ONU interveio com a missão de impor a paz pelas armas; 22 mil soldados seus uniram-se ao exército do governo para reprimir a ação selvagem das milícias.
O M23, então a mais forte, foi expulso da cidade de Gomba, que havia conquistado, e acabou se rendendo e encerrando suas atividades.
Até hoje a luta prossegue contra o FDR e mais cerca de 10 outras milícias, levando o terror ao leste do país.
Nos primeiros 10 anos de guerra, estima-se que 45 mil pessoas – metade crianças – morreram mensalmente, “a maioria devido a doenças infecciosas, má nutrição e partos em precárias condições, tudo relacionado a problemas econômicos e sociais causados pelo conflito, incluindo interrupção de serviços de saúde, falta de alimentos, deterioração das infraestruturas e deslocamento de populações” (pesquisa do International Food Police Research Institute, da Universidade Brook, Nova Iorque, e do Banco Mundial).
Essa pesquisa mostrou que, em 2007, 12% das mulheres já haviam sido estupradas, 1.152 diariamente, numa população de 70 milhões de habitantes.
Por sua vez, segundo a ONU, somente no período 2006/2007, na província de Kiwu, quando a guerra era mais furiosa, uma em cada três mulheres havia sido estuprada, sendo que 30% contraíram Aids.
Em 2014, o Human Rights Watch afirmou que tanto as milícias quanto as forças do governo usavam o estupro como arma de guerra para punir civis suspeitos de pertencer a grupos rivais.
Inúmeras crianças vêm sendo recrutadas para servirem como soldados pelas milícias.
Como resultado dos 20 anos de guerra, o Congo é um país miserável – com o segundo pior PIB per capita do mundo, de acordo com o Banco Mundial. E, no entanto, seu solo é um dos mais ricos do mundo em minérios. Tem 80% da reserva mundial de coltan – minério raro, essencial na fabricação de notebooks e celulares, 49% do cobalto, e ainda muito ouro, diamantes e cobre, num valor estimado de 24 trilhões de dólares.
Grande parte dessa riqueza mineral é apropriada pelas milícias, que usam sua venda para financiar os mais modernos e poderosos armamentos.
Numa iniciativa para cortar esse fluxo, o legislativo norte-americano proibiu que as empresas do país usassem minérios de minas artesanais controladas pelos milicianos.
Acreditava-se que, sem os lucros dos minérios, eles ficariam sem meios para se rearmar e acabariam se enfraquecendo. A intenção foi boa, mas o resultado foi desastroso.
Temendo violar a lei congressual (e suas penas), as empresas estrangeiras passaram a tomar os maiores cuidados ao negociar minérios do Congo, reduzindo ao máximo suas compras.
Com isso, o preço internacional do produto caiu drasticamente. As minas congolesas fecharam em massa, lançando milhões de trabalhadores no desemprego.
Muitos deles, para não morrerem de fome, se juntaram às milícias. Que, aliás, continuam ativas, saqueando vilas em busca de recursos para se manterem fortes.
No começo deste ano, as forças da ONU e do governo anunciaram uma ofensiva final para limpar o leste do Congo dos bandos de milicianos.
Meta difícil, pois são muitos os grupos armados, espalhados por uma enorme área de florestas que eles conhecem muito bem. O fim desta grande tragédia africana parece ainda não estar à vista.
Luiz Eça é jornalista
Website: Olhar o Mundo.