Correio da Cidadania

A volta do macarthismo

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Em 9 de fevereiro de 1950, o senador republicano Joseph McCarthy afirmou que o Departamento de Estado estaria infiltrado por comunistas. Ele teria mesmo uma lista com 250 nomes de “membros do Partido Comunista e dos membros de uma rede de espionagem”.

 

Esta denúncia foi bem recebida pela opinião pública, pois havia um temor generalizado nos EUA de que, dirigido pela União Soviética, o comunismo estivesse se expandindo nas terras norte-americanas, ameaçando a segurança nacional.

 

Formaram-se logo comitês no Congresso para investigar as chamadas atividades antiamericanas. Inicialmente focavam funcionários do governo, mas logo alcançaram também outros setores, principalmente os sindicatos, a mídia, o exército e Hollywood.

 

Até pessoas meramente suspeitas de simpatia com ideias comunistas ou mesmo socialistas eram alvo de investigações intrusivas. Acusadas de pertencerem a redes de espionagem ou de traição à América, muitas perderam seus empregos, foram presas, alvos de rejeição social e tiveram suas vidas destruídas ainda que nada de concreto se provasse contra elas.

 

Esse período sombrio da história estadunidense durou seis anos, entre 1950 e 1956, quando McCarthy acabou desmoralizado. 

 

O macartismo ressurgiu nos EUA, em 24 de novembro de 2016, quando o venerável Washington Post publicou na sua primeira página artigo do jornalista Craig Timberg, sob o título: “A propaganda russa ajudou a espalhar notícias falsas durante a eleição, dizem os experts”.

 

O texto baseou-se principalmente numa pesquisa do PropOrNot, grupo desconhecido, que se proclamava formado por “cientistas de computação, estatísticos, profissionais de segurança nacional, jornalistas e ativistas políticos”, todos mantidos no anonimato. O PropOrNot afirmava que os russos produziam notícias falsas, divulgadas como verdadeiras por 200 sites. Seu objetivo seria prejudicar a campanha de Hillary Clinton e valorizar Donald Trump, cuja vitória, segundo o PropOrNot, serviria aos interesses do governo Putin.

 

Informava-se ainda que os sites envolvidos nessa autêntica conspiração teriam claras ligações com Moscou, ou na melhor das hipóteses seriam “inocentes úteis”. Embora o artigo do Washington Post não citasse os nomes dos sites e blogs envolvidos nessa tenebrosa ação russa para influenciar as eleições, eles poderiam ser encontrados no site do PropOrNot.

 

A maioria dessas publicações segue uma linha independente das políticas do governo norte-americano. Mas há também sites para todos os gostos: liberais, de apoio a Trump, conservadores, libertários e até de análise financeira como o Zero Hedge, além de alguns notoriamente financiados pelo ouro de Moscou: o Sputnik e o Russia Today.

 

Entre os sites independentes, estão Anti War, Truthdig, Truthout, Consortium News, Counter Punch, Foreign Policy e Ron Paul Institute; todos eles dirigidos por jornalistas conhecidos, de reputação irretocável.

 

O PropOrNot não apresenta uma única prova concreta do alinhamento de qualquer dessas publicações com os interesses de Putin. Para dar crédito às suas conclusões ele explica detalhadamente sua metodologia supostamente “científica”, qualificada por artigo do New Yorker como “a mess” (uma bagunça).

 

O item mais importante é a indicação dos critérios adotados para colocar um site na lista negra. Inicialmente, verificar se ele tem uma história “de constantemente ecoar a linha de propaganda dos russos”, mais explicitamente:

 

– se elogia Putin, Trump, Assad, a Síria, o Irã, a China e os “partidos políticos radicais nos EUA e na Europa”;

 

– se critica os EUA, Obama, Hillary Clinton e os conservadores europeus.

 

Como era comum nos tempos de McCarthy, o misterioso website pede que todos os 200 da lista negra sejam investigados pelo governo federal e processados sob a Lei de Espionagem como agentes a Rússia por, consciente ou inconscientemente, disseminarem propaganda russa no país de Tio Sam. O artigo do Washington Post causou o maior escândalo entre os jornalistas norte-americanos.

 

Artigos o condenando como uma expressão de neomacartismo apareceram em muitos dos jornais políticos, como o The Nation, e de sites de tendências diversas. Os jornais da grande mídia limitaram-se a apresentar reportagens informativas, sem tomar partido.

 

Houve uma exceção: a revista New Yorker que publicou um artigo devastador, mostrando o ridículo da lista negra, sua clara filiação ao macartismo e a falta de ética do Washington Post, a endossar um grupo fascista que pretende sufocar a liberdade de expressão, sem nem provar algo que a justifique.

 

Alguns comentaristas liberais usaram as acusações do PropOrNot para comprovar, em seus twitters, que estavam certos quando divulgaram a versão da influência russa na eleição de Trump.

 

Seria este o motivo do Washington Post dar amplo espaço às calúnias do PropOrNot. Nenhum outro jornal fora tão agressivo e pertinaz nos ataques a Trump, divulgado diariamente durante a campanha presidencial.

 

Não creio que Hillary Clinton concorde com o tom macartista das denúncias do misterioso PropOrNot. Mas é inegável que a lenda da conspiração russa para colocar na Casa Branca um fantoche da Rússia foi criada e divulgada com o maior impacto pela propaganda da democrata à presidência. 

 

Acreditavam que seria um poderoso míssil, capaz de destruir Putin e beneficiar a candidatura de Mrs. Clinton. Ela própria entrou nesse cordão, insistindo na influência russa em favor de Trump. Enfatizando o escândalo e a vergonha do maior inimigo de Tio Sam, interferindo na campanha eleitoral, em benefício do “amigo Trump”.

 

A grande imprensa colaborou, informando sem provas que esta torpe ação dos sucessores de Stalin era real. A CIA, que é sempre a mesma CIA, também entrou no jogo, falando em indícios, sem dizer quais, é claro. A certas alturas, Obama foi obrigado a intervir para sossegar os ânimos, admitindo que havia suspeitas das interferências do atrevido Putin, mas nada estava provado.

 

No Congresso, parlamentares pró-Hillary afirmavam que “todo mundo sabe” que era verdade. Finalmente, na semana passada, portanto depois das eleições, Obama cedeu às pressões e ordenou uma investigação profunda a ser concluída antes do seu adeus.

 

Estimular, consciente ou inconscientemente, o ressurgimento do macartismo é um pecado que o Washington Post cometeu na sua ânsia por sujar Trump. E não parou mesmo depois de ele já estar eleito.

 

Hillary Clinton e o establishment democrata, por sua vez, podem ser responsabilizados pela demonização de Putin e de falsamente alardear sua crescente força dentro do próprio governo eleito dos EUA.

 

Possivelmente, essas histórias da carochinha foram tidas como verdadeiras pelo povo. Com isso, os seus divulgadores ajudaram a criar um clima de medo de traiçoeiros agentes do eterno inimigo número 1, a Rússia (soviética ou não), ideal para o florescimento do macartismo. Cuja semente foi plantada pelo grupo misterioso do PropOrNot, com a colaboração prestimosa do Washington Post.

 

Nomeando para altos postos generais inimigos dos islamitas e partidários de mais intervenções militares na Síria e na Ucrânia, apoiados pela CIA e pelo Pentágono, Trump dificilmente terá boas relações com a Rússia. Os partidários do macartismo celebrarão como uma vitória essa eventual mudança da rota anti-intervenções militares e pró-amizade com a Rússia, exposta por Trump durante a campanha.

 

Isso acontecendo, eles ganharão forças para perseguir aqueles que, numa eventual orientação imperial da política externa americana, ousarem criticar o novo governo. Daí, para a implantação dos Comitês de Atividades Anti-Americanas seria um passo.

 

Talvez o ex-presidente dos EUA, James Madison, tivesse razão quando declarou: “se a tirania e a opressão chegarem a este país será com o disfarce de uma luta contra um país inimigo”.

 

 

Luiz Eça é jornalista

Website: Olhar o Mundo.

 

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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