Com o roubo de terras legalizado, anexação avança
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- Luiz Eça
- 17/02/2017
Quando Netanyahu anunciou a construção de mais 6.000 assentamentos os chefões da extrema-direita reclamaram. Queriam que o premier aproveitasse as declarações de amor de Trump para uma expansão mais maciça, ciclópica.
A resposta chegou em questão de dias. O Knesset (câmara federal), estimulado pelo governo, aprovou, por 60 a 52 votos, uma lei que é para radical israelense nenhum botar defeito.
Ela dá direito ao governo de Telavive de se apropriar de terras pertencentes a palestinos, tornando-as propriedade estatal para, em seguida, as usar na construção de assentamentos.
Automaticamente ficam legalizados cerca de 53 postos avançados e mais de 3.800 unidades residenciais ilegais em assentamentos existentes, conforme a organização Peace Now.
Quaisquer terras da Cisjordânia (a Palestina ocupada) possuídas por palestinos em qualquer parte da região poderão agora ser confiscadas pelo Estado e usadas para construção de assentamentos. E todos os postos avançados antes ilegais passam a ser perfeitamente legais.
A criação do fato consumado
Durante décadas, muitos assentamentos foram criados sem autorização legal – os chamados postos avançados. Apesar de ilegais, o governo lhes proporcionava água, energia elétrica, escolas e outros serviços. Só em raríssimas ocasiões os ocupantes foram expulsos assim mesmo quando a justiça decidiu intervir.
Ao justificar a ocupação de terras de palestinos para a construção de novos assentamentos, Telavive usava expedientes como desenterrar leis do antigo Império Otomano (ao qual a Palestina pertenceu até o fim, após a 1ª Guerra Mundial), que determinavam a estatização de terras deixadas incultas.
Num processo de 1979, a justiça israelense declarou ilegais os assentamentos em terras claramente de propriedade privada palestina, limitando essas construções a necessidades militares.
Agora, com a legalização do confisco de terras de palestinos, a expansão dos assentamentos será radicalmente acelerada.
Muitos grupos de judeus israelenses se sentirão estimulados a antecipar a ação confiscatória do Estado criando “postos avançados” nas regiões que escolherem, certos de que o governo logo os legalizará.
Este autêntico roubo de uma nação inteira ecoou em todo o mundo.
A ONU, a União Europeia, os movimentos de direitos humanos, a Liga Árabe, até a Inglaterra” de Tereza May (de forma muito amigável) entre outros, censuraram mais esta violação da Israel às leis internacionais.
Cito as manifestações da França e da Alemanha. Falando à rádio do exército de Israel, Héléne Le Gal, ministro do Exterior da França, assim se expressou: “Israel está num caminho que não leva à paz... A comunidade internacional se pergunta se deve confiar em Israel quando Israel diz estar pronta para discutir com seus vizinhos, os palestinos, para buscar um acordo para a “solução dos dois Estados”.
Frank Walter Steinmeier, ministro do Exterior da Alemanha, cujas críticas aos israelenses costumam ser moderadas, desta vez subiu o tom: “a confiança no compromisso do governo de Israel com a solução dos dois Estados foi fundamentalmente abalada”.
Os movimentos israelenses B’Tselem e Peace Now também foram duros. B’Tselem: “(A nova lei) prova uma vez mais que Israel não rem intenção de terminar seu controle sobre a Palestina ou seu roubo das terras dessa nação”.
Peace Now: “Netanyahu está disposto a permitir o roubo de terras (palestinas), a expor os oficiais do exército israelense e a arrastar Israel à Corte Internacional de Justiça, em Haia, tudo em favor da sua sobrevivência política”.
E a organização Kerem Navot, que monitora o uso das terras na Cisjordânia, preveniu que a nova lei viola a quarta convenção de Genebra, a qual estipula que um poder ocupante só pode tomar propriedades privadas por necessidades militares. Políticos, oficiais do exército e assentados podem ficar sujeitos a processo na Corte Internacional de Justiça, em Haia”.
Trump, o moderado
Já os EUA se omitiram. Antes da aprovação da lei de confisco, Trump já se mostrara insatisfeito pela aprovação dos 6.000 novos assentamentos. Ele advertiu Israel a não tomar mais esse tipo de decisões unilateralmente e em prazo curto. Temia, disse o presidente dos EUA, que novos assentamentos pudessem não ajudar o processo de paz.
Portanto, Netanyahu deveria se conter até se reunir com ele em 15 de janeiro. Trump não negou que poderia ser a favor dos assentamentos, mas deixou claro que os dois estadistas ainda não haviam tomado em conjunto uma posição oficial. Como ambos continuavam a ter esperanças nas negociações de paz, deveriam evitar ações que pudessem complicá-las.
Aparentemente, Trump não gostou da iniciativa de Netanyahu que o colocava na obrigação de lhe levar seu apoio, numa posição de simples aderente ao voluntarismo do outro. Trump considera que ele deve ser o protagonista, não um ator secundário no roteiro da questão palestina.
Daí sua leve censura à sofreguidão de Netanyahu e também seu conselho ao aliado Bibi de se abster de ações individuais até vir a Washington em busca das luzes do líder do Ocidente.
Dessa reunião com Trump, sairiam então as grandes linhas a serem seguidas pelo governo de Israel.
Já no episódio da aprovação da lei do confisco, Israel novamente tomou sozinha uma decisão importante, que tem tudo a ver com a questão palestina.
Trump lembrou que foi antes da hora. Inquirido sobre a posição do presidente norte-americano diante do confisco, o porta voz, Sam Spicer, limitou-se a dizer que seu chefe se reuniria com Netanyahu na Casa Branca, em 15 de janeiro. E que não poderia antecipar nada.
Fim da tese dos dois Estados?
É difícil prever o que sairá deste encontro de amigos. Não se sabe que argumentos Netanyahu usará para justificar a legalização do roubo de terras palestinas. E se Trump lhe dará seu nihil obstat.
Provavelmente, afirmarão que os assentamentos não prejudicam a solução dos dois Estados, da qual eles seriam ardorosos defensores.
Digam o que disserem, a verdade é que com a nova lei foi dado um gigantesco passo em direção da anexação total da Palestina. Ou quase isso.
Agora, com o apoio total de Trump, os assentamentos poderão entrar num ritmo de expansão fortemente acelerado. E dentro da lei.
Dessa maneira, a tendência que se espera é que os assentamentos, em breve, deverão ocupar a maior parte da Cisjordânia. Mais exatamente, tudo o que Israel quiser, o que não parece ser pouco.
E como ninguém espera que Netanyahu jamais concordará em entregar aos palestinos o território de um único assentamento (como já jurou), um Estado Palestino reduzido à expressão mínima jamais poderia ser viável.
Antes desse amargo fim, diversas negociações bilaterais, israelense-palestinas, mediadas pelos EUA, serão abertas e fechadas. Enquanto esse processo for se repetindo, Netanyahu e Trump continuarão proclamando seu apoio exuberante à solução de dois Estados. Sempre lamentando a intolerância dos negociadores palestinos, que impediriam qualquer acordo por não aceitarem a existência de Israel...
Aos palestinos restam poucas opções.
1 - Ou aceitam que Israel um dia lhes acabará concedendo o que sobrar do território roubado pelos assentamentos, onde poderiam criar um Estado independente, porém miserável, incapaz de viver sem a caridade internacional.
2 - Ou partem para um caminho radical, agora ainda mais difícil do que nunca, porque terão de enfrentar também os EUA de Trump, de corpo e alma apoiando Israel.
Há uma outra saída, excessivamente otimista, é verdade: a queda de Netanyahu e a assunção em Israel de um governo progressista e moderado.
Que negociaria com os palestinos uma paz justa, garantindo a fundação de um Estado Palestino independente e viável e a segurança de Israel.
Espiral de morte
Para isso, a atitude do povo israelense diante dos palestinos teria de mudar. E vice-versa. Não é fácil, os “lobos solitários” palestinos não vão parar de atacar militares (e mesmo civis), especialmente depois da “lei do confisco” e da provável formação da frente Trump-Netanyahu. E a repressão das forças de segurança israelenses se processará de forma ainda mais brutal.
Assim, o ódio e o medo dos israelenses tenderá a crescer, beneficiando Netanyahu e os partidos radicais. Os mesmos sentimentos alimentarão a agressividade da resistência, podendo gerar uma nova intifada.
Haverá uma saída para esse diabólico ciclo vicioso? Alguma coisa pode mudar. A violência, que vai fatalmente crescer entre as partes, pode levar amplos setores do povo de Israel a sentirem que isso não é jeito de se viver.
Quem sabe se as vozes que falam na justiça da causa palestina e nos seus sofrimentos passem a ser ouvidas?
Quem sabe ambos os lados acabem exauridos por tanta violência, tantas guerras, tanto ódio?
Há indícios que autorizam esperanças. São poucos, mas começam a existir. A lei do confisco foi aprovada por uma diferença de apenas 8 votos; 52 deputados foram contra. Trata-se de um número animador. A oposição que luta pela paz foi fortalecida pelo ingresso do Partido Yesh Adit, de orientação centrista.
Visualiza-se uma frente de centro-esquerda em condições de encarar a coalizão de extrema-direita nas próximas eleições.
E o povo começa a desaprovar as decisões belicosas do governo Netanyahu. Pesquisa do StatNet Institute: 53% dos judeus israelenses são contra a anexação de grande parte da Cisjordânia – 40%, a favor; 50% dos judeus israelenses acham que não se deve criar mais assentamentos – 45% acham o contrário.
Noticia o Haaretz: a pesquisa mensal “Índex da Paz”, publicada pelo Instituto da Democracia de Israel, mostra que, em janeiro, 54,6% opunham-se à anexação – 50% dizem que não é inteligente tirar vantagem do apoio de Trump para fazer mais construções nos assentamentos;
62,9% querem a volta das negociações de paz com os palestinos.
Estas pesquisas foram realizadas pouco antes de o Knesset legalizar o confisco indiscriminado de terras de palestinos.
Seus resultados serão mais valorizados caso a Suprema Corte de Israel aprove o cancelamento dessa lei.
O próprio procurador-geral de Israel, o general Avichal Mandelbilt declarou não ter condições de defender a lei perante a Corte Suprema porque ela corta abertamente direitos de propriedade de palestinos na Margem Ocidental (Cisjordânia), de um modo que contradiz a proteção garantida à população sob ocupação exigida pela Quarta Convenção de Genebra.
Acho que vale a pena lembrar um pensamento do grande Albert Einstein: “se não formos capazes de encontrar um meio para termos honesta cooperação e honestos acordos com os árabes, então nós não aprendemos absolutamente nada durante nossos 2.000 anos de sofrimentos e merecemos tudo que acontecerá conosco”.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.