Correio da Cidadania

Nos Estados Unidos, direitos humanos atrapalham

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Nenhum presidente norte-americano, mesmo George W.Bush, admitiria ser cúmplice em violações de direitos humanos por países aliados. Pelo menos publicamente.

Na maioria das situações, os interesses da política externa de Tio Sam costumam falar mais alto. E o presidente de plantão procura justificar apoios a regimes desumanos, porém amigos, com desculpas e interpretações de credibilidade duvidosa.

O presidente Obama via as coisas de outro modo. Diante de uma ovelha negra do seu rebanho de aliados, ele aconselhava moderação, protestava e, por fim, condicionava apoio militar e econômico a reformas ou, pelo menos, a alguns avanços no caminho das garantias desejadas.

Menos quando se trata de Israel. Obama até que criticou muitas vezes os assentamentos e outras práticas ilegais de Telavive. Mas ameaçar cortar ajudas... Jamais!

Bahrein e armas químicas

No caso do Bahrein, o ex-presidente dos EUA, embora um tanto complacente, não fugiu a seus princípios. Esse pequeno país do Golfo Pérsico é governado autocraticamente por uma monarquia sunita, apesar de 70% da população ser xiita.

Discriminados e reduzidos a um papel político insignificante, os xiitas animaram-se com a Primavera Árabe e foram pra rua em grandes manifestações, que exigiam mais direitos. O governo as reprimiu com extrema dureza.

Para se ter uma ideia, a organização Médicos Sem Fronteira denunciou: “desde fevereiro de 2011, o governo do Bahrein vem lançando uma torrente de agentes químicos tóxicos contra homens, mulheres, crianças, velhos e até mesmo enfermos”. O que teria provocado casos de cegueira, mutilação e morte.

Ora, Bahrein é um amigo estratégico de Washington, que ali estaciona sua 5ª esquadra para impor respeito ao vizinho Irã.

Vária vezes, Obama criticou os maus modos do regime monárquico. Sugeriu, e mesmo exigiu, que o reino parasse com isso e promovesse reformas democráticas, além de humanizar seus sistemas de segurança e de justiça.

Tendo, em retorno, conseguido promessas de emenda, o presidente estadunidense amenizou sua posição. Dispôs-se a ajudar o Bahrein com os armamentos solicitados pelo regime monárquico. Precavido, manteve o respeito aos direitos humanos como condição para lhes vender novas armas.

Infelizmente, as garantias de reformas e leis humanas do reino não passavam de palavras ao vento.

A polícia e o exército continuaram deitando e rolando no tratamento dos rebeldes. No ano passado, o governo do Bahrein dissolveu o maior partido de oposição de então, o al-Wefaq, e revogou a cidadania do principal clérigo xiita.

Neste ano, o ministro da justiça criou uma lei que fechou o Wa’ad, partido que se tornara a principal força oposicionista, depois da queda do al Wefaq.

E a câmara alta do parlamento, livre dos incômodos adversários do establishment local, aprovou uma emenda constitucional que autoriza o governo a dirigir o país sob lei marcial ainda que não declarada. O que permitirá que civis sejam julgados por militares. Como a maioria dos oficiais do Bahrein apoia cegamente o regime, é fácil adivinhar o que pode acontecer àqueles que ousarem bater bumbo contra o rei.

Liberando o vale tudo

Todas estas medidas, digamos, um tanto autoritárias, não batiam com as condições impostas por Obama para atender aos insistentes pedidos de armas do governo do rei. Daí a manutenção do bloqueio à venda dos armamentos solicitados aos EUA.

Que funcionou até agora. Agora é Trump. Uma das prioridades básicas dele e do seu ministro da Defesa, o general Mathis, é confrontar o Irã, impedir que sua influência contamine o Oriente Médio, com suas ideias subversivas adversas da hegemonia norte-americana na região.

Nesse contexto, um Bahrein bem armado convém, e muito, aos interesses geopolíticos de Tio Sam, especialmente devido a sua proximidade ao Irã.

Trump deve ter analisado a situação mais ou menos assim: o que vale mais, defender os direitos humanos de uns tantos desagradáveis xiitas ou fortalecer e agradar o Bahrein, fiel aliado contra o inimigo Irã?

Se a exigência de direitos humanos impedia os EUA de atender às necessidades militares do país amigo, alguma coisa teria de mudar.

E mudou. Em 29 de março, o departamento de Estado notificou o Congresso, que decidira remover as condições impostas ao Bahrein por Obama para a venda de 19 aviões de combate, no valor de 2,8 bilhões de dólares, além de outros equipamentos militares.

O senador republicano Bob Cocker, presidente da comissão de relações exteriores do Senado, aplaudiu ruidosamente.

Emocionado, ele doutrinou que as vendas de armas devem ser ligadas a questões estratégicas, não a direitos humanos. Ao New York Times, justificou-se: “há maneiras mais efetivas de conseguir mudanças nas políticas de nossos parceiros do que publicamente condicionar transferências de armas a essas exigências”.

Talvez orações, apelos aos sentimentos dos violadores ou mesmo conselhos estariam entre as “maneiras mais efetivas de conseguir mudanças”, que Cocker garantiu existirem.

Mais felizes ainda ficaram as indústrias de armas que veem na retirada da cláusula dos direitos humanos uma abertura ampla, geral e irrestrita dos seus negócios com países que tratam a porrada “fanáticos controlados pelo Irã” ou a outras “potências do mal”.

Os generais Mattis, secretário de Defesa, e Votel, chefe do Comando Central, já tinham manifestado sua preocupação com a política restritiva que vinha do governo Obama.

Temiam que condicionar a venda de amas ao respeito aos direitos humanos poderia lesar os laços de amizade entre os EUA e diversos países islâmicos.

Pior para o Iêmen

Livres agora da barreira dos direitos humanos, eles esperam que os EUA possam participar mais da guerra da Arábia Saudita contra os houthis, no Iêmen. Coisa que, na verdade, Washington vem fazendo há muito tempo. Além de terem fornecido enorme volume de armamentos e bombas ao reino de Riad, os EUA reabastecem no ar a aviação saudita, tendo ainda sua marinha ajudado a bloquear a entrada de navios de carga em portos iemenitas.

Durante a guerra já dura, a aviação do reino tem bombardeado alvos civis em território sob domínio houthi. Hospitais, escolas, mesquitas e mercados foram implacavelmente destruídos ou pelo menos seriamente danificados.



A ONU já protestou. Sucedem-se apelos das ONGs de direitos humanos para que os estadunidenses interrompam sua colaboração nesses massacres promovidos pelos sauditas.

Obama fez-se de surdo até que determinado ataque sensibilizou particularmente a opinião pública mundial: o bombardeio de um funeral, causando a morte de 140 pessoas.

Foi demais para o presidente democrata, que decidiu suspender novas vendas de armamentos à Arábia Saudita.

Agora, estando os EUA sob nova direção, essa medida acaba de se tornar letra morta. Justificando sua posição a favor da participação na guerra, o general  Votel alegou que o Irã estaria “desestabilizando a região” e os EUA teriam de enfrentá-lo militarmente, mesmo que isso implicasse em atacar diretamente os houthis, a quem os iranianos estariam apoiando.

Ainda que não provado, esse apoio não poderia estar “desestabilizando a região”, pois a ação dos houthis não se qualificada como ilegítima.

Eles lutam contra uma invasão saudita que pretende repor no poder o presidente Hadi, pretensamente de direito, que fora derrubado pelas forças houthis.

Ora, o governo Hadi estava longe de ser legal. Patrocinado por Riad, Hadi foi eleito em 2012, para suceder ao ditador Saleh, num pleito em que foi o único candidato. O que não parece muito democrático.

O período do seu mandato seria de dois anos, mas em 2014 ele o aumentou unilateralmente, uma atitude, evidentemente, nada democrática. Tirado do poder pelos houthis, Hadi fugiu para a Arábia Saudita.

Em 2015, o governo do reino lançou uma guerra contra os houthis, em favor de seu pupilo, Hadi, a qual já dura mais de dois anos.

Pode-se questionar a forma com que os houthis mantêm-se no governo do Iêmen (eles cancelaram o parlamento), mas, por outro lado, Hadi, ao se conceder mais tempo no poder, perdera legitimidade para continuar presidindo o país.

Portanto, o apoio militar iraniano, se é que existe, não pode ser rotulado como ilegal. Pelo contrário, estaria ajudando a estabilizar um governo de fato, contra forças que lutam para restaurar um ex-presidente ilegítimo.

Aumento da ingerência

Se os EUA realmente entrarem na guerra com ataques aéreos, navais ou tropas de terra, não estarão defendendo a democracia ou as leis internacionais.

Parece lógico que, lutando contra possíveis parceiros do Irã, teriam como alvo o fortalecimento de seus interesses hegemônicos no Oriente Médio.

E, é claro, agradar a Arábia Saudita, mais um bom aliado afeito a violar direitos humanos, que não serão mais perturbados pelas preocupações éticas do antecessor de Trump.

O que contribuirá para a melhoria do relacionamento dos EUA com o reino de Riad e uma efetiva coordenação na luta para prevenir a expansão do Irã e reafirmar o poder norte-americano de ditar regras na região.

Há quem ache que, dessa maneira, os verdadeiros interesses da megapotência não estariam sendo atendidos. Até pelo contrário.

Diz o senador Chris Murphy ao Defense News: “Se você falar com iemenitas-americanos, eles lhe dirão que no Iêmen não existe uma campanha de bombardeios sauditas, mas uma campanha de bombardeios norte-americanos. No interior do Iêmen, cada morte de um civil é atribuída aos EUA”.

Está mais do que provado que o terrorismo é alimentado pela reação dos jovens árabes às intervenções e ajudas norte-americanas em favor de regimes ditatoriais e repressivos dos movimentos populares.

Atuar preventivamente nessas, que são as causas reais do terrorismo, não tem estado nos planos estratégicos de Washington, ainda que os presidentes Jimmy Carter e Barack Obama tenham feito alguma coisa.

Às favas com os escrúpulos

Esvaziando a importância do tema dos direitos humanos na sua política externa, o governo Trump radicalizou uma posição que vinha dos tempos de Nixon (talvez até de antes): defender os países aliados, ainda que seus governos não sejam propriamente dignos de beatificação, e reprimir com tudo os movimentos terroristas.

Talvez fosse mais racional e mesmo eficiente a médio e longo prazo reavaliar as relações ianques com aliados pouco exemplares e não tratar como inimigos regimes que buscam saídas próprias, fora da constelação estadunidense.

Washington prefere o caminho da força. Atacar o terrorismo com recursos sem limites e as técnicas e armas mais modernas. Para isso, os órgãos de segurança dos EUA dispõem de uma verba anual que gira em torno de 100 bilhões de dólares.

Por outro lado, vale colocar na linha os governos que ousam desafiar os interesses imperiais dos EUA, contando com o poder dissuasório do exército mais poderoso do mudo e a colaboração dos diversos países amigos.

Princípios que possam prejudicar essa estratégia devem ser desconsiderados, como agora fez Trump ao tirar o respeito aos direitos humanos da frente da prestação de armas a países aliados.

O Bahrein e a Arábia Saudita serão os primeiros beneficiários. Mas não devemos esquecer de incluir a al-Qaeda e conexos, onde políticas como as novas decisões aqui tratadas motivam a entrada de novos recrutas no Terror e garantem sua sobrevivência a longo prazo.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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