Correio da Cidadania

Foi justa a saída dos EUA do Conselho de Direitos Humanos?

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Depois de várias ameaças, os norte-americanos acabaram saindo do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Acusado de afrontoso “viés anti-israelense” por Nikki Haley, a embaixadora dos EUA na ONU, supostamente provado pelo enorme número de vezes com que o Conselho condenou Israel, superando qualquer outro país nessa desconfortável estatística.

Aliás, por larga margem. Nikki acrescentou outros motivos para a retirada: o não atendimento dos interesses dos EUA e o sinal verde para a entrada na entidade dos maiores violadores de direitos humanos do orbe.

Em parte, ela tem razão. Israel é mesmo o líder destacado em matéria de infrações, conforme o Conselho de Direitos Humanos.

Cabe uma pergunta: haveria justiça nessas acusações? Bem, o fato é que Israel tem promovido habitualmente uma notável variedade de ações e leis desumanas, algumas até definidas como crimes de guerra, de acordo com o Direito Internacional.

O mau comportamento dos governos israelenses vem se repetindo, especialmente na ocupação militar da Palestina, na chamada Cisjordânia.

Em um bom número de ocasiões, Israel tem desrespeitado os deveres das potências ocupantes, estabelecidos na Convenção de Haia, de 1908 (arts.42 a 36), na IV Convenção de Genebra (arts.27 a 34 e 47 a 48) e pelo Direito Internacional Humanitário consuetudinário.

Há um ano, relatório do Human Rights Watch (HRW) informa que Israel é culpado em “pelo menos cinco categorias das principais violações dos direitos humanos internacionais: execuções ilegais, deslocações forçadas de palestinos, detenções abusivas, o bloqueio de Gaza, o desenvolvimento dos assentamentos, as políticas que discriminam os palestinos e outras restrições desse calibre (The Guardian, 12-6-2017).

Não dá para duvidar da imparcialidade do HRW. Inimigos de Israel – como a Síria, o Irã, a Venezuela e o Hamas – também já foram alvo das flechadas da entidade.

Em 12/2/2002, o exército israelense já tinha merecido a mesma reprimenda de 2017. Por 40 votos contra cinco, resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU condenou “energicamente a guerra do Exército israelense contra as cidades e campos de palestinos, na qual já causou a morte de centenas de civis, inclusive mulheres e crianças”.

A resolução denunciou também detenções ilegais em massa pelos militares, execuções extrajudiciárias e “tortura aos palestinos nos interrogatórios”. E mais: “disparos do Exército israelense contra as ambulâncias e o corpo médico e as restrições aos veículos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha”.

Em 2015, uma pesada acusação veio – surpresa – dos próprios EUA! No governo Obama, o relatório anual do Departamento de Estado, criticou o excesso de força do exército de Israel contra os palestinos nos territórios ocupados. Metade dos palestinos mortos por terem presumivelmente atacado militares ou civis israelenses, na verdade, não haviam atacado ninguém. De acordo com o relatório, entre as 149 vítimas das balas das forças israelenses, apenas 77 lançaram ataques. Todos os demais foram assassinados em manifestações ou durante “operações de rotina”.  

Nesse relatório, o Departamento de Estado dos EUA denunciou ainda a existência de uma política israelense de prisões arbitrárias, seguidas de torturas e outras violências, frequentemente impunes.

Os assentamentos também entram na relação de malasartes israelenses. Eles são mais de 200, a maioria concentrada nas melhores terras da Cisjordânia, sendo que há também um grande número dos chamados postos avançados.

Os assentamentos e postos avançados foram construídos em terras de palestinos, algumas compradas, mas a maioria simplesmente tomada à força dos antigos proprietários.

Os assentamentos israelenses são ilegais sob a lei internacional, A IV Convenção de Genebra proíbe a transferência de populações civis para territórios ocupados militarmente.

Por isso mesmo, o Conselho de Segurança da ONU aprovou no fim do ano passado uma resolução que condena os assentamentos e exige que Israel ponha fim à construção de novas unidades em territórios de palestinos.

Todos os países membros do Conselho votaram a favor (inclusive o Reino Unido e a França), com exceção dos EUA, que se absteve.

Mas Netanyahu bocejou, cheio de enfado, e não parou de criar novos assentamentos.

Como também não deu a menor importância às acusações de maus tratos praticados contra as crianças palestinas.

Cerca de 70 menores, encarcerados em 2017, relataram terem sofrido da parte dos soldados uma série de violências e abusos físicos.

Eles citaram tapas, chutes, beliscões, golpes com diversos objetos, empurrões. Foram ainda forçados a se sentarem em posições dolorosas durante muito tempo. Tudo isso consta de relatório de outubro de 2017, publicado pelo Military Court Watch, um grupo de advogados e ativistas que monitoram o tratamento das crianças nas detenções militares de Israel (Haaretz, 21-21-2017).

A discriminação dos palestinos foi estabelecida de modo definitivo em 4 de junho deste ano, quando o Praesidium (formado pelo presidente e os vices do parlamento de Israel) desqualificou proposta de lei que, definia “Israel como um Estado de todos os seus habitantes”, visando introduzir na lei constitucional o princípio de igualdade na cidadania.

Como consequência, esse projeto que declara judeus e árabes iguais perante a lei, não será sequer discutido pelos parlamentares. Foi solenemente engavetado. Na verdade, ele tinha mais a ver com sonhos do que com a realidade.

O relatório sobre direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA, de 2010, afirma que, em Israel, o milhão e setecentos mil árabes com cidadania israelense enfrentam “discriminação institucional, legal e da sociedade”.

Veja a seguir alguns exemplos da desigualdade que caracterizam os árabes israelenses como cidadãos de segunda classe:

1) a Lei dos Comitês de Admissão, de 2011, permite que os moradores de pequenas cidades impeçam de mudar para lá “quem não apresenta o estilo de vida e o tecido social da comunidade”. Evidentemente, essa lei privilegia moradores judaico-israelenses. Não se imagina que os habitantes de um bairro árabe pretendam impedir a mudança de judeus para suas vizinhanças;

2) depois de tomar e ocupar Jerusalém, em 1967, o exército de Israel não garantiu os direitos de cidadanias aos habitantes árabes palestinos. Eles receberam apenas cartões de residência na cidade, que poderiam ser revogados por uma autoridade, caso os palestinos não provassem ser Jerusalém ou Israel o “centro de suas vidas”;

3) palestinos não podem viajar em certas estradas de rodagem. São reservadas exclusivamente a judeus israelenses;

4) o Jerusalem Post (21-3-2015) publicou entrevista da ONG israelense Mossawa Center, relatando fatos da maior gravidade.

Entre março de 2015 e março de 2016, aconteceram em Israel 38 atentados, sendo 33 contra árabes, incitados por autoridades públicas. Foram registrados no período 465 incidentes desse tipo, mais do dobro do que nos dois anos anteriores. Aconteceram também 103 incidentes de origem racista em empresas, instituições do Estado e organizações privadas.

As transferências forçadas são mais uma forma de discriminação. Em 12 de junho de 2018 o Middle East Eye e o Al Monitor publicaram uma carta aberta, assinada por 300 personalidades ilustres do mundo inteiro, inclusive Israel. Eles protestavam contra uma política israelense, que já transferiu milhares de camponeses palestinos para fora de suas terras e casas.

A carta explica que o exército de Israel usou de força física direta, obrigando os palestinos a abandonarem seus lares e propriedades rurais. O que representaria um crime de guerra.

Entre 1947 e 2017, centenas de milhares de palestinos foram desalojados à força dos seus lares e terras

Muitas dessas casas foram demolidas para a construção de assentamentos judaicos na Cisjordânia ou como punição a familiares de terroristas, ainda que eles não tivessem qualquer relação com a atividade criminosa de um dos seus membros.

Clássico caso de punição coletiva, firmemente proibida pelo Direito Internacional.

De acordo com relatório do Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), agora entre 1967 e 2017, Israel já havia demolido um total de 48.743 casas e outras construções de propriedade de palestinos. Não se inclui aqui as 20 mil residências destruídas por ataques israelenses, na última guerra de Gaza.

Nishant Pandey, da OXFAM, lembra que o Quarteto do Oriente Médio (EUA, Reino Unido, ONU e Rússia) já publicou 39 condenações do governo de Israel por violação das leis internacionais nas demolições de casas palestinas. Como sempre em situações análogas, o governo de Telavive não se tocou. Continuou demolindo.

A última e das mais graves transgressões israelenses aconteceu há poucas semanas, durante protestos em massa de dezenas de milhares de palestinos na fronteira Israel-Gaza.

O exército de Telavive compareceu com aparato bélico: tanques de guerra, metralhadoras e 100 snipers (atiradores). Estes especialistas tinham ordens de alvejar quem chegasse perto da cerca e também os chamados “provocadores”.

Foi o que eles fizeram, matando 115 civis e ferindo um número indeterminado, entre 1000 e 2000 pessoas. Crianças, velhos e mulheres não foram poupados. Nem mesmo médicos que atendiam aos muitos feridos. O governo de Israel justificou-se alegando seu “direito de defesa”.

O major Danny Sjursen (professor em West Point) contesta: “para respeitar a moral e a lei internacional é permitido matar somente combatentes e usar apenas a força necessária para remover uma ameaça. Uma olhada no vídeo (sobre a repressão) fala por si: os soldados de Israel pensam que estão acima da lei, de qualquer lei”.

Fotos e vídeos mostram claramente que os snipers de Israel mataram civis a tiros, usando força excessiva contra um certo número de estilingues.

A ONU foi chamada a se pronunciar. Sua assembleia geral aprovou resolução, condenando Israel por usar “força excessiva, desproporcional e indiscriminada”. O placar foi: 120 pró-resolução, contra 8 defensores de Israel.
Matança com o mesmo nível de barbaridade do massacre da fronteira aconteceu em Sabra e Shatila, acampamentos de famílias de refugiados palestinos.

Durante uma das suas invasões do Líbano, o exército israelense bloqueava os acessos a esses acampamentos. Só os liberou para que seus aliados falangistas pudessem penetrar. E matar 2.100 refugiados.

Em 16 de dezembro de 1982, a assembleia geral da ONU condenou o massacre, declarando-o um ato de genocídio por uma maioria de 123 votos a favor, 0 contra e 22 abstenções.

Neste ano de 2018, falando sobre possível novo ataque ao Líbano, Yisrael Katz, ministro dos Transportes de Israel e membro do gabinete de segurança do governo Netanyahu, fez previsões sombrias: “o Líbano voltará para atrás muitos, muitos anos, alguns dizem que até a Idade da Pedra e outros dizem que até os tempos dos homens das cavernas”.

Outro front onde uma guerra israelense está pintando é as colinas de Golã.
Essa região sempre foi parte da Síria. Conquistando-a pela força das armas, Israel a anexou formalmente em 1991 por Israel.

A comunidade internacional protestou, afinal o direito de conquista deixou de ser aceito há vários séculos.

E a ONU vetou a anexação, por se tratar de um desacato ao Direito
Internacional.

Israel não ligou. Tratou de fazer uma limpeza étnica, expulsando os 131 mil moradores sírios – drusos, islâmicos e cristãos. Deixou apenas 20 mil em 6 pequenas aldeias, a maioria drusas.

No lugar dos expulsos, foram implantados assentamentos onde atualmente vivem 31 mil israelenses. Mais uma vez a IV Convenção de Genebra foi ignorada.

Vou terminar, lembrando a anexação formal de Jerusalém, mais um desrespeito à decisão da ONU.

Os EUA foram o primeiro país a reconhecer o feito. Os países da ONU, reunidos em assembleia geral da entidade, manifestaram-se radicalmente contrários: 120 a 9.

Criticaram os estadunidenses: a Europa, quase toda a África, a América do Sul e o Oriente.

No outro lado, estavam um punhado de arquipélagos e minúsculas ilhas do Pacífico, mais Honduras, Guatemala, o Togo e Israel (claro).

Se você se espantou com essas violências e violações, saiba que existem muito mais fartos desabonadores ao governo de Telavive.

Diante de um cardápio com tanta abundância e versatilidade, é natural que Israel seja um assíduo frequentador da lista de infrações reportadas pelo Conselho de Direitos Humanos.

Se o Conselho de Direitos Humanos não fosse pródigo nas condenações aos israelenses, estaria sendo omisso ou mesmo cúmplice nas transgressões do Direito Internacional e das decisões da ONU.

Quanto aos outros dois argumentos em favor da retirada dos EUA, pondere-se que, de fato, o Conselho insiste em ignorar os interesses, não exatamente dos EUA, mas do governo Trump.

No momento, a política externa de The Donald concentra-se numa ligação cada vez mais estreita com Israel. Seja para agradar aos bilionários judeus norte-americanos, poderosos no Congresso e nos financiamentos que Trump espera receber na sua campanha de reeleição, seja para reforçar Israel como ponta de lança do ataque ao Irã, que disputa a hegemonia no Oriente Médio com os EUA e seu satélite saudita.

Tomar partido nessa briga não me parece função de uma entidade criada com fins totalmente diferentes.

A outra reclamação de Nikki Haley é até louvável. Valeria a pena proibir que os maiores abusadores dos direitos humanos fossem proibidos de fazer parte do Conselho.

O problema é que, se a ideia fosse levada ao pé da letra, Israel correria o risco de ser barrado.
 

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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