Correio da Cidadania

O Império voltado para seu umbigo

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O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado para julgar indivíduos acusados dos mais graves crimes internacionais: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e também os chamados crimes de agressão, aqueles cometidos por pessoas ou grupos que, tendo o controle das forças armadas de uma nação, planejam e/ou promovem um ataque a outro país, prejudicando sua independência política, sua condição territorial ou violando sua soberania.

O TPI foi criado formalmente em 2002. Ele só entra em ação quando o país dos possíveis culpados se omite por fraqueza das suas instituições ou falta de interesse do seu governo.

Centro e vinte três nações participam do TPI. Algumas, como a China, a Arábia Saudita, a Rússia, Israel e os Estados Unidos, não aderiram ao Tratado de Roma, que instituiu o TPI. Preferem preservar seus militares e políticos do risco de terem de se sentar no banco dos réus de crimes internacionais.

Por enquanto, o TPI condenou à prisão somente líderes africanos, além de uns poucos sérvios.

Mas, há processos e investigações em andamento, também contra cidadãos da Europa e da Ásia, inclusive relativos às malasartes israelenses em Gaza e na Cisjordânia ocupada.

Mudança de patamar?

Neste ano, atos de representantes dos EUA no Afeganistão entraram no foco do TPI.

A promotora-chefe levou à consideração do tribunal um milhão e duzentas mil
denúncias contra indivíduos do Taliban, das forças do governo de Cabul e da coalizão da OTAN, liderada pelos EUA, que foram especialmente protagonizadas pela CIA nos seus centros de detenção.

A perspectiva de ver militares e políticos norte-americanos acusados de crimes de tortura, genocídio e semelhantes alarmou altas figuras do governo Trump. Mais do que isso, irritou, deixou-os loucos de raiva.

John Bolton, o principal conselheiro em segurança de The Donald, foi o primeiro a reagir.

Não se dignou em alegar inocência de militares e agentes da CIA. Seria colocar-se no nível dessa atrevida organização, que – imagine – não dispõe sequer de um lança-mísseis ou tanque de guerra.

Preferiu considerar inominável a ideia de um tribunal estrangeiro processar algum militar ou político dos EUA. Onde estava o respeito à excepcionalidade da “terra dos bravos?”

Erguendo a voz em muitos decibéis, Bolton proclamou guerra ao TPI, a seus membros e a qualquer pessoa que ousasse assessorar o tribunal nessa ímpia empreitada. Os EUA usariam os meios necessários para defender seus cidadãos, de Israel e de outros países aliados, impedindo que fossem processados (sempre injustamente, na ótica de Bolton) por uma corte que ele declarou ilegal.

De sanções em punho, o feroz falcão bradou que o governo Trump retaliaria ante qualquer processo ou investigação que o TPI movesse contra americanos.

Mencionou algumas armas do arsenal do seu governo, como a proibição desses juízes e procuradores entrarem nos EUA, o congelamento dos fundos que possuíssem no sistema financeiro norte-americano e o seu processamento nos tribunais dos EUA (com base em quais crimes?).

Tomado de santa fúria, o conselheiro de confiança de Donald Trump proferiu esta vibrante apóstrofe: “nós não cooperaremos com o TPI. Nós não ofereceremos qualquer assistência ao TPI. Nós não entraremos no TPI. Nós deixaremos que o
TPI morra por si só. Afinal, por todos os seus intentos e propósitos, o TPI está morto para nós”. E também para todos os aliados, pois Bolton informou que seu governo fará acordos bilaterais com outros países para que jamais se submetam ao TPI (Washington Times, 11 de setembro).

Resumindo: a América está acima das leis internacionais. Os seus interesses devem ser colocados em primeiro lugar pelos países aliados. Os atos dos representantes dos EUA no exterior, mesmo sendo criminosos, gozam de impunidade total. Cabe aos países aliados e liderados acompanharem as decisões da Casa Branca.

Afirmou-se assim, com clareza ainda não vista, a natureza autoritária da liderança mundial estadunidense, conforme entende o governo do presidente Donald Trump. Para ele, o cru significado do América, first é: os interesses norte-americanos veem sempre em primeiro lugar. Isso também vale para qualquer país do mundo.

O imperialismo de sempre

Os argumentos que justificam esse postulado são fortes: os EUA de Donald Trump possuem as força armadas mais poderosas, o maior mercado consumidor, imensos recursos financeiros e o controle da banca internacional.

Em consequência, o país de Tio Sam pode impor sua vontade ao resto do mundo, quando bem entender.

Trata-se de uma aplicação da Lei das Selvas. Coerente com ela, o morador da Casa Branca já rasgou diversos tratados, ignorou direitos internacionais e renegou compromissos assumidos com outras nações.

É, em suma, o América, first funcionando a todo vapor. The Donald começou a mostrar suas intenções na reunião do Acordo de Paris, em 2017.

O compromisso de executar as ações necessárias para minimizar as consequências do aquecimento global já fora assumido por 195 países (inclusive os EUA), por ser vital para proteger o futuro de todos.

The Donald simplesmente riscou a assinatura de seu país. Alegou que não cumpriria as disposições do acordo porque seriam danosos para as empresas estadunidenses. Elas se viriam forçadas a trocar os combustíveis fósseis por energia limpa, reduzindo-se sua lucratividade.

Entre a segurança da humanidade e os interesses pecuniários das empresas da América, Trump não vacilou. Saiu fora, deixando frustrados os demais países signatários, já que sua ausência vai dificultar o enfrentamento de uma séria ameaça ao bem estar do planeta.

Mais tragédia para os palestinos

Nova decepção foi causada por The Donald, quando ele fugiu ao compromisso tradicional dos presidentes norte-americanos de mediarem as negociações sobre a crise na Palestina, com isenção.

Até agora nenhum deles conseguiu algo de concreto, mas o morador da Casa Branca prometeu que com ele seria diferente. Faria o “Acordo do Século”, que, aplaudido por palestinos e israelenses, resolveria esse grave e secular problema.

As negociações foram iniciadas e aos poucos os palestinos foram percebendo que não deviam esperar muito das promessas do morador da Casa Branca.

A prova definitiva da parcialidade de Trump surgiu quando ele reconheceu Jerusalém, sem partições, como capital de Israel, anunciando a instalação da embaixada norte-americana na cidade. Com isso, ele vetou a ideia de Jerusalém Oriental capital da Palestina Independente, um dos principais sonhos do povo palestino. Jerusalém fora tomada pelas forças armadas israelenses em 1967.

Como o direito de conquista é rejeitado internacionalmente desde fins do século 19, a ONU condenou a usurpação israelense. Todos os países se comprometeram com essa decisão, prometendo não instalar suas embaixadas em Jerusalém, até que Israel aceitasse dividir a cidade com os palestinos.

Esse compromisso foi firmado e aceito pelos EUA. The Donald o tornou letra morta. Seus interesses e os do seu império falaram mais alto.

Veja por que: Israel é o posto avançado do EUA no Oriente Médio. Uma pedra no sapato de países que não aceitam a hegemonia norte-americana.

Os lobbies israelenses nos EUA exercem grande poder sobre os congressistas, financiando as campanhas de muitos senadores e representantes e os pressionando através dos seus milhares de adeptos.

Vários bilionários judaico-americanos são importantes contribuintes das campanhas eleitorais de Trump e ainda influenciam a mídia de todo o país graças a seus gastos em propaganda.

Os 25 milhões de evangélicos, que apoiam The Donald, defendem Israel por ter sido seu povo escolhido por Deus, como diz a Bíblia.

Todas estas razões pesaram muito mais do que os compromissos com a ONU e as posições dos aliados europeus.

Talvez para surpresa do presidente, os palestinos protestaram além do esperado, clamando que um mediador não pode ter parcialidade. Não mais aceitariam negociar com quem provou nítido viés favorável às propostas do governo de Telavive.

Claro, a dura negativa palestina sofreu pronta retaliação por parte do governo Trump.

As vítimas foram as famílias dos refugiados palestinos, expulsos de sua pátria pelo exército de Israel, durante as guerras de 1948 e 1967.

São hoje cerca de 5 milhões de pessoas, habitando campos de refugiados em Gaza (principalmente) e diversos países do Oriente Médio.

Elas contam com a atuação da UNRWA (agência da ONU), que, com financiamento de vários países, proporciona empregos, alimentação, serviços de saúde e educação a seus filhos.

Os EUA costumam responder por um terço dessas contribuições. Para forçar os líderes palestinos a voltarem a aceitar sua mediação na crise da Palestina, Trump ordenou o corte de toda a ajuda norte-americana.

Armando a próxima intifada

O efeito dessa tesourada foi deixar em situação precária gente que vive em campos de refugiados, alguns verdadeiras favelas.

Mas The Donald aumentou sua pressão. Cortou também a ajuda aos habitantes de Gaza e das áreas da Cisjordânia administradas pela chamada Autoridade Palestina.
Por enquanto, os líderes palestinos continuam resistindo, recusam-se a negociar sob sua mediação.

Como os dois principais movimentos rebeldes, o Hamas e o Fatah, seguem desunidos e inimigos, a luta pela independência se circunscreve a ações isoladas de protesto.

Nos últimos meses circularam diversas informações off the record sobre itens do chamado “Acordo do Século”, elaborado por The Donald.

Tudo indica que está sendo coautorado pelo primeiro-ministro de Israel, o nacionalista de direita Benjamin “Bibi” Netanyahu.

Sabe-se que, para ele, o melhor é deixar as coisas como estão na Palestina ocupada. Só aceitaria a criação de um Estado palestino dividido em bantustões não contíguos, sob a vigilância de forças israelenses instaladas nas áreas-chave. Quase todos os assentamentos deveriam ser anexados a Israel. E quanto à volta dos refugiados (ou sua indenização), nem pensar.

A aposta é que tudo isso está sendo levado em alta conta pelo presidente norte-americano.

Quando o “Acordo do Século” for formalmente anunciado, prevê-se uma reação agressiva dos movimentos rebeldes palestinos.

Seria uma chateação para The Donald. Nada de grave, pois Israel conta com uma superioridade militar, digamos, absoluta, inclusive com os mais modernos armamentos fornecidos pelos EUA.

Outro desprezo do presidente pelos justos interesses de povos europeus, fiéis aliados que Washington lidera desde o fim da 2ª Grande Guerra, é sua rejeição do Acordo Nuclear com o Irã.

Os EUA e as principais potências mundiais – Alemanha, França, Reino Unido, China e Rússia – levaram muito anos negociando um acordo para impedir que o Irã produzisse armas atômicas.

Por fim, conseguiram e o Acordo Nuclear foi solenemente firmado, obrigando-se o Irã a respeitar uma série de exigências.

Apesar de estar cumprindo todas elas, o morador da Casa Branca alardeou que se tratava de um péssimo acordo.

Não deu atenção ao empenho dos aliados e amigos da Europa, simplesmente retirou os EUA do acordo. Netanyahu exigia. Agradar Israel convinha, e muito, ao presidente republicano.

Também valeu fazer a vontade da Arábia Saudita, principal compradora de amas norte-americanas e aliada preciosa pela sua feroz inimizade com o rebelde Irã.
É simples assim.

Foi um verdadeiro escândalo, o antigo brocardo romano pacta sunt servanda (os pactos devem ser respeitados) é uma norma internacional que nenhum país civilizado costuma contrariar, não havendo motivos incontestáveis..

Mas Trump não ficou nisso: imperialmente, decretou o bloqueio econômico do Irã, impondo a pena de fechamento do riquíssimo mercado a quem ousar desafiar seu diktat.

E ainda deu prazo até novembro para que país algum comprasse petróleo e gás de Teerã.

Tensões geopolíticas e econômicas

Caso seja obedecido, será vibrado um golpe devastador na economia do Irã e na estabilidade do seu governo moderado.

Depois dos iranianos, quem sai mais prejudicado com o bloqueio norte-americano são, novamente, os bons amigos da União Europeia. Suas empresas, que haviam começado a investir no Irã e planejavam ampliar pesadamente sua participação, estão sendo forçadas a ceder a Washington e assim renunciar a rendimentos promissores. Muito importantes, especialmente para países como o Reino Unido, a França e a Itália, que anda não se recuperaram da grande crise econômica de 2008.

Se as sanções deixarem o Irã a pão e água, as coisas poderão ficar pretas para o governo local. Lutando pela sobrevivência, os iranianos poderão tomar medidas extremas, como o fechamento do estreito de Ormuz, por onde passa o petróleo produzido no Oriente Médio. O que poderá detonar uma guerra em toda a região com reflexos incalculáveis nos preços do petróleo e do gás, que a Europa precisa importar.

O Velho Continente se verá, assim, profundamente prejudicado. Os EUA nem tanto. Estão muito longe do teatro dessa eventual guerra. Não dependem do petróleo e do gás, pois são grandes produtores e podem comprar o que faltar na América Latina e na África.

Sendo forçados a entrarem no conflito armado, não irão arriscar as vidas dos soldados da infantaria, as ações ficariam por conta da força aérea (teria pouco a temer dos velhos aviões iranianos) e de mísseis, lançados por seus vasos de guerra.

Mais uma vez os interesses dos EUA poderão ser promovidos às custas dos prejuízos que seus aliados da União Europeia poderão sofrer.

Mirando seus interesses, justos ou não, os EUA de Trump retiraram-se também do TTP (Acordo Econômico Transpacífico), que fora criado graças ao empenho do governo Obama, deixando na mão os demais 10 países signatários.

Como protesto contra um suposto viés anti-Israel, o governo Trump também se retirou do Comitê de Direitos Humanos da ONU.

É verdade que esse organismo tem emitido um número recorde de condenações a Israel. Motivos não faltaram: assentamentos ilegais, demolição de casas e aldeias de palestinos, massacres de manifestantes pacíficos, leis racistas, deslocamentos forçados de populações palestinas, bombardeios de quarteirões residenciais, mesquitas, hospitais, escolas e usinas elétricas em Gaza.

Há um ano, relatório do Human Rights Watch (HRW) informa que Israel é culpado em: “pelo menos cinco categorias das principais violações dos direitos humanos internacionais... Execuções ilegais, deslocações forçadas de palestinos, detenções abusivas, o bloqueio de Gaza, a expansão dos assentamentos, as políticas que discriminam os palestinos e outras restrições desse calibre (The Guardian, 12-6-2017).

Qual será o limite?

Com o forfait norte-americano, não sei se o morador da Casa Branca pretende desmoralizar ou apenas enfraquecer o Comitê de Direitos Humanos da ONU. Seja como for, os EUA estão renegando sua responsabilidade pela promoção mundial dos direitos humanos. Ato que se torna ainda mais repreensível em função da sua liderança mundial.

O desprezo por acordos, que os EUA vinham respeitando antes de Trump, apareceu ainda nas ameaças do seu governo abandonar a OTAN e o NAFTA, caso suas exigências (discutíveis) não fossem aceitas.

Essa autêntica fobia por acordos internacionais mostra que The Donald pensa poder conformar o mundo à sua vontade.

É uma lógica típica de ditadores. Vários deles viveram no século passado. E todos sabem como acabaram.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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