Correio da Cidadania

Obrador: populismo levado a sério

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Quando presidente do Uruguai, José Mujica recebia pouco mais do que o equivalente a 22 mil reais mensais. Mas ficava apenas com 30% do seu salário. Os demais 70% iam para seu partido, a Frente Ampla, e um fundo para construção de casas populares.

Mujica desdenhou o luxuoso palácio presidencial, preferindo continuar vivendo numa chácara, nos arredores de Montevidéu, onde cultivava flores e hortaliças.

Ia para o trabalho no governo dirigindo seu velho fusquinha. Esse exemplo está sendo seguido por um novo presidente de esquerda: Lopez Obrador, recentemente eleito no México.

Obrador é um líder esquerdista surpreendente, que inova mesmo antes de começar a governar.

Na véspera de sua posse, Obrador chegou ao palácio do governo dirigindo seu carro, um modesto compacto Volkswagen.

Durante a festa da posse, ele abriu o palácio presidencial ao povo, que pôde visitar todas as salas, à vontade. Mas Obrador não vai morar nessa requintada habitação, prometeu transformá-la num centro de cultura popular.

Como Mujica, o novo mandatário mexicano decidiu reduzir o salário a que teria direito como presidente da República. Vai ganhar quase três vezes menos do que seus antecessores, o equivalente a cerca de 22 mil reais. E nenhum funcionário ocupando um cargo oficial poderá passar desse limite.

Os altos funcionários perderão uma série de mordomias e regalias (pagas pelo povo), incompatíveis com as dificuldades financeiras do país.

Como, atualmente, são muitos os que ganham elevados salários e gozam de privilégios, os cortes devem gerar recursos para o governo poder, inclusive, aumentar os baixos ganhos da faixa pobre do funcionalismo.

Obrador também pretende cortar as pensões dos próximos ex-presidentes, o que atingirá também ele.

Todas essas medidas são parte do plano de “austeridade republicana”: corte dos gastos do governo e venda dos ativos desnecessários. Como a venda do luxuoso avião presidencial, um Boeing 787-8, com 57 metros de comprimento e lugares para 80 passageiros. Foi comprado pelo ex-presidente, Felipe Calderón, por 218,7 milhões de dólares.

Em breve, também serão vendidos 60 outros aviões e 70 helicópteros de propriedade do governo.

Nas suas viagens, o presidente mexicano vai usar aviões comerciais. Será acompanhado por uns poucos assessores, dispensando guarda-costas. “Eu me sinto protegido e defendido pelo povo mexicano”, o presidente explicou.

Há quem considere as ações de Obrador como populistas, que objetivam agradar ao povo, sem grandes vantagens sociais, já que não trariam economias públicas substanciais.

No México de hoje, a corrupção e o favoritismo são generalizados e os governantes, políticos e magistrados, de quem mais se espera um comportamento republicano, buscam manter e mesmo obter novos benefícios, ainda que prejudiciais ao equilíbrio das finanças públicas.

O exemplo de Obrador pode influenciar positivamente a sociedade, despertando os valores éticos que se acham adormecidos no inconsciente da população.

No entanto, de pouco adiantará o desapego, a coragem e o espírito republicano do novo presidente, se não conseguir resolver os gravíssimos e desafiadores problemas da realidade nacional.

Logo depois da posse, Obrador tomou decisões para encarar questões que pressionam a administração.

É necessário fazer alguma coisa pelos milhares de migrantes da América Central que acampam em frente à fronteira com os EUA.

No seu primeiro ato oficial, o presidente mexicano assinou acordo com seus colegas de Honduras, Guatemala e El Salvador para criar um plano de desenvolvimento desses países, com um fundo gerador de empregos.

Seria uma forma para reduzir a pobreza nas três repúblicas, que se acredita ser o principal motivo que impele os três mil migrantes a buscar o “paraíso americano”.

Esse plano, porém, não terá efeitos significativos de uma hora para outra. Leva tempo para que possa dar frutos.

Espera-se de Lopez Obrador algumas soluções emergenciais para aliviar a sorte dos migrantes.

O assassinato de 43 jovens professores em treinamento, na cidade de Iguala, ainda não foi solucionado.

Sabe-se que o tenebroso crime foi praticado por um grupo de pistoleiros do cartel do tráfico e policiais corruptos, com cumplicidade eventual de políticos.

Os jovens foram atacados a tiros pelos criminosos que, em seguida, os sequestraram. Nunca mais se soube deles.

O inquérito oficial, claramente omisso, sustentou que os corpos dos jovens haviam sido incinerados. Foi contestado por comissão de especialistas forenses independentes que afirmou não haver qualquer evidência a favor dessa conclusão (The Guardian, 3 de dezembro).

Obrador não perdeu tempo. Já nomeou uma “comissão da verdade” para reexaminar o caso, que se tornou um símbolo da impunidade e a injustiça da guerra militarizada contra o crime organizado, promovida pelo governo do ex-presidente Peña Nieto.

“Eu garanto que não haverá impunidade neste triste e doloroso caso, nem em qualquer outro”, afirmou o novo presidente.

É uma promessa audaciosa. Embora não sendo fácil de ser cumprida, mais difícil ainda será encontrar uma saída para os três grandes problemas que afetam há anos o México: o poder das gangues de drogas responsáveis pelos altos índices de assassinatos; a corrupção endêmica e a pobreza persistente, alimentada pelos baixíssimos salários.

Os chamados cartéis e traficantes são verdadeiras multinacionais, que faturam 20 bilhões de dólares anuais. Isso lhes confere tanto poder que controlam regiões inteiras, incluindo políticos, oficiais, governantes e membros do judiciário.

Vários governos anteriores tentaram vencer os cartéis, adotando diferentes táticas. Nenhum foi bem sucedido.

Os cartéis travam verdadeiras guerras entre si e contra os soldados e policiais do governo. Calculam-se as perdas humanas nessa guerra civil em 355 mil mortos e 17 mil desaparecidos, dos quais a grande maioria é constituída por civis, alheios ao tráfico de drogas.

Somente nos primeiros 10 meses de 2018, registrou-se um trágico recorde no México: foram cometidos 80 homicídios diários, em média.

A corrupção mexicana é uma verdadeira doença que atinge especialmente as classes políticas e empresariais, que mantêm negócios com o Estado.

Em 2017, o índice de corrupção da Transparência Internacional colocou o México numa posição lamentável: 135º entre 180 nações. Entre todos os países das Américas apenas a Venezuela, Guatemala e Nicarágua ganharam notas mais baixas.

As dimensões extremas da pobreza são a causa principal do verdadeiro êxodo de trabalhadores mexicanos para os Estados Unidos.

Apesar de o México ser a segunda economia da América Latina, seu PIB per capita é atualmente o 69º do mundo. No continente americano fica atrás do Uruguai, Chile, Argentina, Brasil e Costa Rica; 46% das pessoas vivem abaixo da pobreza, sendo que 25% estão ameaçadas de baixar para esse status.

As desigualdades refletem também a situação precária de uma grande parte do povo mexicano.

Informa Alícia Bárcena, secretária executiva da CEPAL (entrevista na Telesur), o México é um dos países mais desiguais do mundo. Dois terços de toda a riqueza do país estão concentrados em 10% das famílias, sendo que um terço cabe a apenas 1%.

Nos últimos governos neoliberais do país, houve uma preocupação especial em favorecer o crescimento das empresas. Leis desse período tiveram por alvo a maximização da eficiência, da lucratividade e das exportações. O mandatário anterior a Obrador foi chamado por alguns economistas de “o salvador do México”.

Não, porém, dos trabalhadores, que tiveram de pagar a conta dos planos governamentais, vendo seus rendimentos rebaixados, ano após ano.

Em 10 anos, enquanto a produtividade das indústrias cresceu 18%, o salário médio real ficou bem para trás, não passando de 7,5% (El País, 12 de junho).

Afirma Boltvnik, economista do Colégio de México, que os salários reais durante o período Peña Nieto foram inferiores aos pagos em 1970. Com isso, chegamos a um dado brutal: quase 49 milhões de cidadãos mexicanos não têm condições de satisfazer suas necessidades básicas, com seus rendimentos mensais. Obrador comprometeu-se a reverter este quadro sombrio.

Por este resumo dos três principais problemas mexicanos no nosso tempo, dá para sentir o tamanho do desafio que o governo López Obrador tem de enfrentar. Ele tem demonstrado ser um esquerdista moderado e pragmático.

Já está construindo uma relação de respeito com os empresários do país. Muitos se confessaram agradavelmente surpresos depois de se reunirem com o presidente.

Em política internacional, por enquanto não há conflitos à vista.  Historicamente, o México tem uma relação difícil com os EUA, que lhe tomaram no século 19 o Texas, Novo México, Califórnia, Nevada, Arizona e Utah, além de partes do Colorado, Wyoming, Kansas e Oklahoma (Tratado de Guadalupe-Hidalgo, 1948).

Hoje, graças ao NAFTA, os EUA são o maior importador de produtos mexicanos.

Como disse Obrador: “o negócio é ser Mexico, first, não anti-gringo”. Não vale a pena brigar com um parceiro comercial tão vantajoso.

Só que, na política internacional do governo Trump, os outros países estão sujeitos a sofrerem o peso do America, first. Sempre que The Donald resolver.

Numa situação assim, ninguém duvida que Obrador se recuse a bater continência para ele. Mexico, first.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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