A América, ainda mais first
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- Luiz Eça
- 12/01/2019
Para a imprensa internacional, o secretário da Defesa, general James Mattis, era a voz lúcida que procurava conter os desatinos do presidente Trump.
Como os dois tinham muitas vezes posições opostas, a renúncia do secretário teria de acontecer mais dia, menos dia. Esta visão comporta algumas considerações.
Acredito que ambos queriam os EUA hegemônicos no mundo, enfrentando as pressões malignas da China e da Rússia, que forcejavam em impor seus modelos autocráticos às demais nações.
Os EUA seriam a “nação indispensável”, habilitada a “fornecer liderança a nossos aliados (texto da renúncia de Mattis)” para defesa e realização dos objetivos do chamado mundo livre.
Por sinal, quais seriam mesmo esses objetivos? Mattis conta, ao se despedir do governo: “Temos de fazer todo o possível para avançar uma ordem internacional que seja o mais favorável possível à nossa segurança, prosperidade e valores”.
Em algumas das mais importantes questões que agitaram a política internacional nestes últimos anos, o presidente e seu secretário de Defesa mostraram compartilhar esse conceito.
No entanto, divergiam na forma de tratar seus aliados na hora de encarar os desafios da política internacional.
Para o América, First de Trump, os EUA deveriam olhar apenas os seus interesses, ignorando seus aliados. Ele procura cumprir esse princípio, agindo unilateralmente e descumprindo acordos e tratados. E os outros que se lixem.
Mas há exceções. Os raros países, cuja amizade interessa aos EUA, recebem vantagens e agrados, de que só amigos especiais usufruem.
Israel, por exemplo, recebe 3 bilhões de dólares todo ano para fortalecer suas já fortíssimas forças armadas. Tio Sam protege o governo sionista na ONU, garantindo que suas inúmeras violações das leis internacionais não sejam punidas.
Além de defender sempre os interesses israelenses ainda que deixem os palestinos na pior. Como a inauguração da embaixada em Jerusalém, por exemplo, que anulou a reivindicação palestina de fazer Jerusalém Oriental a capital do seu futuro Estado.
Em troca, o país de Netanyahu é um posto avançado dos EUA no Oriente Médio, um elemento com que os norte-americanos contam no traçado e execução da sua política externa na região.
Fidelíssimo aliado, está sempre pronto a atacar o Irã (inimigo dos EUA de Trump) a um aceno de Washington.
Já o general Mattis preza ações multilaterais. Os EUA deveriam defender seus interesses, sim, porém, agindo em comum acordo com seus aliados. Ouvir suas posições, levar em conta seus problemas. Se fosse o caso, até fazer concessões, para evitar prejuízos maiores a esses países.
Pois, diz o general no seu adeus, na construção de uma ordem internacional sob as asas de Washington, “nossos esforços são fortalecidos pela solidariedade das nossas alianças”.
Era inevitável, a coabitação do globalismo de Mattis com o America, first de Trump tinha mesmo de dar em rusgas.
Foi o que aconteceu vezes demais. Para agradar os produtores de carvão e de petróleo, The Donald tirou os EUA do Acordo de Paris, deixando indignados os 175 países signatários.
Mattis tentara evitar a decisão presidencial tomada sem ouvir os aliados, principalmente europeus, que a veriam como um obstáculo à defesa da própria sobrevivência da espécie humana, ameaçada a médio prazo pelas mudanças do aquecimento global.
Novamente os europeus foram alvo do comportamento autocrático do presidente norte-americano quando, contra a opinião do secretário de Defesa, afirmou que os EUA sairiam da OTAN, caso os demais membros não contribuíssem para a entidade com 2% dos seus orçamentos, como era devido.
Os países da Europa, que consideravam a OTAN uma barreira aos ímpetos expansionistas de Putin, sentiram sua segurança a perigo pelas ameaças de Washington.
Por estas e por outras, os europeus foram se conscientizando de que não deveriam esperar muita coisa dos EUA de Trump. Que, por sua vez, não parou de lesar seus aliados.
Irritado com os constantes déficits no orçamento do país, ele resolveu elevar as tarifas sobre as importações de aço e alumínio, elevando assim a receita dos EUA.
As empresas norte-americanas do setor atingido também sairiam ganhando, pois teriam melhores condições de concorrência com os produtos estrangeiros, encarecidos pelas tarifas maiores.
Mattis fez o possível para barrar mais essa ideia presidencial. Para ele, a redução de importações, consequente do aumento das tarifas proposto, não seria significativa no contexto do imenso orçamento estadunidense.
Por outro lado, pesaria bastante nas finanças da maioria dos exportadores (quase todos bons aliados).
Por fim, a posição de Trump venceu, porém, deixando alguns fora do aumento das tarifas.
Na guerra do Iêmen, um caso raro: o presidente e seu secretário de Defesa queriam o mesmo.
Apoio total à Arábia Saudita, inclusive na guerra devastadora que ela movia no Iêmen.
Paris vale bem uma missa. Afinal, o sanguinário governo saudita prometia comprar centenas de bilhões em armas e outros produtos, além de ser um aliado agressivo e inestimável na guerra santa contra o Irã.
Mattis, esquecendo os “tradicionais valores humanitários dos EUA”, foi em companha do falcão Mike Pompeo, secretário de Estado, pressionar os congressistas republicanos a votarem contra uma proposta que proibia o governo norte-americano de continuar auxiliando militarmente a monarquia do deserto na guerra do Iêmen.
Apesar dos esforços dos dois ilustres secretários e dos fogosos tuites de The Donald, a maioria do Senado decidiu que os EUA deveriam deixar os sauditas praticarem suas violações dos direitos humanos sem a cumplicidade estadunidense. E ainda foi aprovada uma resolução condenando o príncipe saudita pelo brutal assassinato de um jornalista oponente num país vizinho da Arábia Saudita.
A posição de Mattis se explica: na luta contra o Irã, obstáculo à supremacia norte-americana no Oriente Médio, não se podia abrir mão do inestimável apoio dos sauditas. Portanto, seria necessário continuar os ajudando militarmente na guerra do Iêmen, ainda mais porque seu objetivo era enfraquecer o Irã, expulsando os houthis, aliados de Teerã.
Quanto ao massacre dos civis por bombas de procedência estadunidense, lembro que o ex-secretário da Defesa havia, há tempos, sentenciado que “na guerra morre muita gente mesmo...”
Destruir o regime do Irã é, na verdade, uma obsessão dos dois líderes.
The Donald não para de rogar pragas, ruge como se ameaçasse armar complôs contra o regime dos aiatolás.
Mattis, além dos motivos políticos, influencia-se por fatos de ordem pessoal na justificação de sua inabalável hostilidade.
Na luta contra a ocupação do Iraque, militantes do Hizbollah, grupo patrocinado por Teerã, matou soldados dos EUA. Furioso, o general Mattis propôs retaliar com um ataque ao próprio território iraniano.
Seu chefe, o então presidente Obama, achou que isso poderia detonar uma guerra. Algo inaceitável para os EUA.
Não vacilou em demitir o belicoso cabo de guerra. A iranofobia de Mattis ficou patente ainda em declarações como esta: “o Irã não é na verdade um Estado-Nação, mas uma causa revolucionária devotada ao caos (Político, 4-12-2016). ”
Foi o valoroso general autor de um mantra muito repetido nos EUA: “O Irã é o maior promotor do terrorismo no mundo”.
Causou espanto esta outra afirmação: “O Irã não é inimigo do Estado islâmico (EI), eles têm muito a ganhar com o caos que o EI provoca”.
Perguntado quem ele considerava o maior inimigo dos norte-americanos, ele respondeu: “Irã, Irã, Irã”.
Claro, o general Mattis tem as mesmas más intenções de Trump em relação ao Irã. Colaborou com o presidente na formação de uma frente, unindo EUA, Israel, sauditas e satélites, para puxar o tapete dos governantes de Teerã.
Mas, discordou da retirada dos EUA do pacto nuclear com o Irã e do diktat de Trump, proibindo qualquer outro país de negociar com os iranianos, sob pena de perder o mercado norte-americano e, indiretamente, o uso da rede bancária internacional.
Tudo porque, fiel a seus princípios, Mattis achava que o acordo nuclear era eficiente. Seria injusto sabotá-lo.
Além disso, tratava-se de um acordo internacional assinado pelos EUA, cujo presidente (Obama) fora seu principal fautor.
Já diziam os juristas romanos: Pacta sunt servanda (os acordos têm de ser cumpridos). A não ser que ocorressem fatos novos que os desautorizasse.
Não era o caso, Mattis lembrou que o Irã vinha cumprindo fielmente com o que havia se comprometido.
Para ele, impedir outros países de lucrarem fazendo bons negócios com os iranianos era ultrajante e os prejudicaria. Não era modo de tratar aliados. Especialmente os europeus se sentiriam lesados e também ofendidos por esse desrespeito à sua soberania.
Seria mais um incentivo para o Velho Mundo se colocar contra as orientações de Washington e até se aproximar da Rússia e da China
Pesando essas coisas, Mattis bateu de frente com Trump. Como se sabe, perdeu.
Sua última derrota aconteceu agora, na Síria. O general não aceitou a retirada das tropas da Síria, nem a alegação de que seu objetivo fora realizado, com a destruição do Estado islâmico.
Acredita-se que o general renunciou por várias razões. Para ele, a retirada seria uma vitória da Rússia, na sua disputa da hegemonia mundial com os EUA. Inaceitável para os adeptos do América, first também no mundo.
Além disso, a decisão de Trump foi tomada sem ser discutida com os 78 aliados da coalizão anti-EI. Mais uma vez, os EUA agiram unilateralmente, deixando seus parceiros de lado.
E os curdos, fiéis aliados dos EUA na guerra ao Estado islâmico, foram traídos. Abandonados à fúria da Turquia, poderão ser destroçados pelas forças superiores dos turcos. O presidente Erdogan tem lançado tenebrosas ameaças contra o povo curdo e suas aspirações de independência.
O affair retirada na Síria foi a gota d´água. Lembramos ainda duas importantes posições de Mattis, moderadoras do reacionarismo agressivo da suprema autoridade estadunidense.
O governo George W. Bush fizera vistas grossas ao uso de torturas pelas forças de segurança de seu país. Seu sucessor, Barack Obama proibiu terminantemente, inclusive o waterboarding (que produzia na vítima a sensação de afogamento). A opinião de Trump era diferente, ele admitia torturas contra terroristas. Foi o secretário de Defesa quem conseguiu convencê-lo de que estava errado.
Quando o presidente ordenou que transgênicos fossem impedidos de entrar nas forças armadas, o general Mattis liderou os principais comandantes para conseguir cancelar essa preconceituosa posição.
Depois de uma série de decisões opostas, antepondo The Donald aos generais, o bom senso, por fim, prevaleceu. E o entendimento do secretário de Defesa tornou-se lei.
Com a saída do general Mattis da Secretaria da Defesa, não se deve esperar mudanças básicas na política externa dos EUA.
Sem perder seu norte, ela tende a se tornar mais grosseira, mais nacionalista, mais personalista.
Em suma, à imagem e semelhança do presidente, livre do freio que moderava seu comportamento imaturo.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.