Mulheres em fuga da Arábia Saudita
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- Luiz Eça
- 08/02/2019
Rahaf al-Qunun
A caminho da Austrália, a jovem saudita Rahaf al-Qunun foi detida pela polícia do aeroporto de Bangkok, Tailândia, sendo seu passaporte confiscado por um membro da embaixada do seu país. Ela declarou estar fugindo das violências brutais praticados por sua família depois de ter cortado seu cabelo bem curto, o que é um pecado mortal para o Islã radical.
Criou-se um caso internacional e, apesar dos esforços do governo saudita, Rahaf acabou ganhando status de refugiada pelo governo do Canadá e pôde continuar sua viagem.
O chefe da Sociedade Nacional por Direitos Humanos, criada pelo governo saudita, mostrou-se “surpreso porque algumas nações incitavam alguma ‘mulheres delinquentes sauditas’ a se rebelar contra os valores da família”.
Parece que esses valores são questionados pelas mulheres que aquela honorabile societá chama de delinquentes.
Apenas alguns dias depois, outra jovem saudita, Njoub al-Mandeel, também fugiu de casa, escondendo-se na casa de amigos.
Num vídeo, que logo viralizou nas mídias sociais, ela revelou: “estou sofrendo de abusos físico e sexual nas mãos do meu pai. Hoje ele me ameaçou de me jogar no fogo”.
O procurador-geral assumiu a questão e afirmou que iria investigar e agir rápido (acredite quem quiser).
Foi uma postura que contradiz os anteriores procedimentos sauditas em casos similares.
Fugas são comuns
Em abril de 2017, em Manila, Filipinas, três cidadãos sauditas, sob olhares complacentes das autoridades locais, forçaram a jovem Dina Ali Lasloon a embarcar num avião de volta a Riad, de onde ela fugira por sofrer barbaridades nas mãos de familiares.
No mês seguinte, a história se repetiu. As gêmeas Ashwaq e Arij Hamoud viajaram para a Turquia em busca de asilo. Fugiam de abusos físicos e por serem tratadas como escravas. Atendendo a solicitação familiar, endossado pelo embaixador saudita, os turcos as devolveram a seu não propriamente doce lar.
Estas são apenas as fugas mais recentes. Estima-se que, até hoje, já aconteceram mais de mil (Middle East Eye de 14-1-2019).
As protagonistas demonstraram grande coragem, pois fugir de lares, onde violência e abusos são praticados por familiares, é crime na Arábia Saudita. Punido com detenção, de acordo com interpretação estrita da Sharia (código de leis islâmicas, de 1400 anos atrás) hoje só é observada pelas seitas mais extremistas.
Esta pena não destoa do que sofrem as mulheres da Arábia Saudita, pois lá elas são consideradas cidadãs de segunda classe.
O relatório Desigualdade de Sexos Global, de 2016, do Fórum Econômico Mundial, classificou o reino do deserto num desconfortável 141º, em um total de 145 países.
Um dos motivos desta performance é certamente o Sistema de Guardiães.
Esse sistema milenar estabelece que, para uma série de decisões do dia a dia, como casar, estudar, obter um emprego, receber tratamento médico e viajar, a mulher precisa ser autorizada por seu guardião, o qual pode ser o pai, irmão, o marido ou até mesmo um filho (The Guardian, 22-5-2018).
A mulher é considerada uma pessoa relativamente incapaz, como se fosse um menor de idade. Alguém sem direito de levar uma vida autônoma, pois tem de se submeter ao arbítrio do seu guardião, que dispõe de autoridade absoluta sobre ela. Caso desobedeça a ele, a mulher saudita está sujeita a detenção.
Depois de presa por esta ou outra razão, ela só pode ser libertada depois da autorização do seu pai ou do guardião.
Diz o New York Times que a mulher saudita não tem garantido um julgamento justo. As suas testemunhas tem metade do valor das testemunhas de um homem.
A segregação é regra no transporte público, parques, piscinas, praias e parques de diversão, na maior parte do país. Considera-se ilegal a mistura de sexos, tanto o homem quanto a mulher infratores podem ser processados, mas as penas mais duras costumam ser aplicadas no chamado sexo fraco.
Nos divórcios, elas, são, em geral, prejudicadas por juízes que aqui chamaríamos de machistas, mas lá apenas estão respeitando milenares tradições.
Em 2013, o governo lembrou-se de que mulheres também são suas súditas e promulgou leis criminalizando a violência sexual. Maravilha!
Claro, havia exceções: a violência tinha de ser exagerada e injustificada. Ou seja, o homem pode dar uns tapas na mulher, desde que não a machuque... Muito. No entanto, não se fala em crime se a esposa tiver merecido o corretivo, ainda que mais severo.
Seja como for, foi um avanço.
Infelizmente, os juízes, muito apegados a princípios patriarcais anteriores à Idade Média, quase sempre aplicam penas pouco severas nos infratores. Em geral, apenas pecuniárias.
Essa parcialidade frequente no julgamento de atritos entre homem e mulher, causou um problema internacional para o reino saudita.
O governo indonésio fez um protesto oficial pela execução, em 29 de outubro de 2018, de Tuti Tursilawati, uma trabalhadora migrante cidadã da Indonésia.
Ela foi condenada por ter assassinado seu patrão, em autodefesa, conforme alegou, já que estava sendo abusada sexualmente por ele. (Feminist Newswire, 5-11-2018)
Falsas concessões do déspota
Enfrentando os costumes e regras tradicionais de uma sociedade retrógrada e totalmente submetida ao poder real, as feministas sauditas fazem o que podem em defesa da sua causa.
Quando o príncipe Mohamed bin-Salman, governante efetivo do reino, anunciou um plano de modernização e humanização da Arábia Saudita, as coisas pareciam que iam mudar.
De fato, ele não demorou muito para revogar a proibição de mulheres dirigirem carros.
Era uma luta antiga das feministas sauditas, a decisão principesca foi saudada com enorme entusiasmo pelas integrantes do movimento. Mas o príncipe insiste em ter o papel principal, aliás único, nos avanços reformistas.
Como não quer compartilhar seu palanque, Mohamed bin Salman (MBS, para os amigos) passou a tratar as feministas como inimigas. Ainda mais porque essas rebeldes ousam atacar o Sistema de Guardiães, tão caro à família real.
Em maio de 2018, pouco antes do anúncio oficial do fim da proibição das mulheres dirigirem, as forças de segurança sauditas prenderam 10 das mais conhecidas ativistas. A explicação policial é que, não contentes em manter contatos com entidades estrangeiras suspeitas, ainda ofereciam apoio financeiro a inimigos d’além mar. Depois da primeira onda, as prisões prosseguiram.
Diz o Human Rights Watch que atingiram 17 feministas, todas com grande participação em campanhas pelos direitos humanos em seu prontuário. Algumas ficaram atrás das grades por 100 dias, outras ali permaneceram por tempo indefinido.
Num relatório de novembro de 2018, a Anistia Internacional denunciou que várias ativistas detidas na prisão Dhaban sofreram estupros, torturas e outras ações violentas, durante interrogatórios a que foram submetidas.
Três dessas mulheres testemunharam à Anistia que seus algozes as açoitaram e lhes aplicaram eletrochoques, deixando algumas incapazes de andarem ou ficarem de pé. Uma outra foi pendurada do teto pelo pescoço.
Houve quem tentasse o suicídio, em desespero diante dos brutais sofrimentos que lhe eram infligidos.
O que, talvez, provocou o maior choque na opinião pública, foi a pena de morte, pedida pela procuradoria de justiça, para a jovem feminista Israa al-Ghonghan, culpada (imagine!) de ativismo pacifista.
Segundo o pedido, participar de protestos, cantar slogans hostis ao regime, tentar influenciar a opinião pública, filmar manifestações de protesto e publicar na mídia social seriam crimes gravíssimos, clamando pela morte da autora (The Guardian, 22-8-2018).
As perspectivas de condenação da jovem saudita à pena capital eram bastante sombrias. No entanto, possivelmente diante do assassinato do jornalista Kashoggi ter jogado no esgoto a já baixa imagem internacional saudita, Issa al-Ghomgham escapou do cadafalso.
Considera-se que, por influência desse brutal evento, o reino do deserto tende a amenizar o modo com que suas mulheres são tratadas.
Graças à internet, elas estão cada vez mais conhecendo e invejando o status das mulheres no mundo moderno.
A comparação com as violências e discriminações, que algumas têm de amargar até em casa, estimula sua coragem para buscar uma vida melhor fora do seu país.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.