Poliana no governo brasileiro
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- Luiz Eça
- 26/03/2019
Poliana é uma personagem da literatura norte-americana água com açúcar. Por ser terrivelmente (como diria a adverbial ministra Damares) otimista tornou-se um símbolo universal desse exagero.
Parece que Poliana assumiu o governo brasileiro, considerando os elogios desmedidos dos seus líderes e acólitos aos resultados do encontro Trump-Bolsonaro.
A esquerda pronunciou-se de modo radicalmente oposto: o presidente teria vendido o Brasil a Trunfo (tradução portuguesa da palavra trump).
Não foi bem assim.
Para ter venda, é necessário pagamento em dinheiro ou espécie. Não foi o que aconteceu em Washington.
O Brasil ofereceu uma série de vantagens reais e atuais recebendo em troca abstrações e promessas vagas.
De concreto, pouco, muito pouco. Foi, propriamente, uma doação.
Renunciamos a exigência de vistos aos estadunidenses e aos 60 milhões de dólares de taxas que nos pagam anualmente por eles.
A bizarra explicação de Bolsonaro é que eles não viriam para cá em busca de trabalho... E daí?
Seria motivo para o Brasil desistir de uma exigência que põe algumas dezenas de milhões de dólares nos minguados cofres do país?
Seja como for, não houve reciprocidade: impassíveis, os EUA continuam exigindo visto dos passageiros brasileiros. Pouco diplomático e nada gentil.
Desistimos das vantagens especiais que gozamos como membros da OMC, a entidade do comércio internacional dos países em desenvolvimento (os BRICS).
Recebemos em troca a promessa de que Washington irá defender nosso ingresso na OCDE, a organização de comércio dos países ricos. Dizem, sem provas, que isso trará a confiança e bilhões em novos investimentos do exterior.
Desde que sejamos aceitos o que, aliás, deverá levar uns três ou quatro anos, talvez mais (who knows?), pois temos 18 países na nossa frente, esperando pelo ok da OCDE, inclusive a Argentina que, também apoiada por Trump, já grama dois anos de fila, conforme o jornalista Guga Chacra, da Globo News.
Na área da agricultura o Brasil foi particularmente generoso. Concedeu uma quota de 750 mil toneladas às importações de trigo dos EUA, que serão, inexplicavelmente, isentas de taxas. E ainda abriu o mercado brasileiro de suínos para esse país, embora sejamos autossuficientes e grandes exportadores de carne suína.
Com estas duas concessões, o governo Bolsonaro deu condições vantajosas aos produtores norte-americanos na concorrência deles com nossos produtores de trigo e carne suína.
Para tais privilégios qual foi a o pagamento recebido? Ninharias, promessas e vaticínios.
Os EUA nos oferecem maior inspeção no sistema brasileiro de processamento de carne, o que poderia permitir a exportação de carne bovina brasileira para os EUA, atualmente proibida, por questões sanitárias, levantadas por nossos vizinhos do norte.
Se tudo der certo, os volumes exportados não deverão ser dos mais expressivos uma vez que os norte-americanos não precisam da carne brasileira, seu rebanho de gado é um dos maiores do mundo.
Seja como for, as vantagens que virão dos EUA serão futuras, incertas e de volume imprevisível.
Talvez por isso, Tereza Cristina, ministra da Agricultura do Brasil, não gostou nada das concessões agrícolas presidenciais. Considerou uma troca insuficiente.
Quanto à cessão da base de Alcântara para o lançamento de satélites norte-americanos, o que os EUA pagarão é pouco.
Afinal, graças à sua localização, a base vai garantir redução de 30% no gasto de combustível nos lançamentos. Daí, a alegria transbordante celebrada por The Donald, afirmando que o negócio irá poupar muito dinheiro ao Tesouro de seu país.
Afinal, os 10 milhões de dólares anuais a serem pagos pela cessão de Alcântara, para eles, são uns trocados.
A possibilidade de o Brasil ganhar “centenas de milhões” arrendando o uso de Alcântara também a outros países, existe. Mas independe do acerto com os EUA. Não é uma vantagem relacionada às negociações dos dois líderes de extrema-direita.
O saldo do encontro presidencial foi negativo para nós e positivo para eles. No entanto, o lucro dos EUA e o prejuízo do Brasil não seriam de grande porte, não pesariam substancialmente nos interesses políticos e econômicos das duas nações.
Isso de um modo geral. A exceção foi a formalização do alinhamento automático do Brasil com a política externa de Tio Sam.
Para ganhar essa desigual parceria, os EUA guindaram nosso pais à categoria de aliados preferenciais extra-OTAN. O que permitiria que nossas forças armadas ganhassem condições especiais para adquirir armamentos dos EUA.
Não foi dito em que consistiriam estas “condições especiais” – talvez descontos e prazos de pagamento mais extensos. Notamos que outros países poderão eventualmente oferecer condições melhores e mesmo produtos mais adequados às nossas especificações militares, o que relativiza o valor dessa vantagem.
De outro lado, a retribuição brasileira é grave. Renunciamos ao direito de possuir uma política externa independente, de acordo com os interesses nacionais que, aliás, podem não ser iguais aos dos EUA.
Já tivemos um bom exemplo do que isso significa na semana que terminou: em reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil votou várias vezes contra os palestinos e a favor de Israel. E se absteve uma vez.
Recusou-se a aprovar resolução pedindo que Israel fosse levado à Justiça pelo massacre a tiros de manifestantes palestinos pacíficos, na fronteira de Gaza, matando 189 civis (inclusive muitas crianças) e ferindo seis mil, a maioria com gravidade. Ignorou assim a comissão de investigação independente da ONU, que apontou fatos qualificados como crimes de guerra.
A resolução nesse sentido foi vitoriosa por 28 versus apenas oito votos contra. Até o Chile e o Peru, governados pela direita, ficaram ao lado dos palestinos.
O Brasil também se opôs à condenação do Estado de Israel pela repetida violação dos direitos humanos da população árabe de Golã, região da Síria, que foi conquistada e anexada pelos israelenses. A comunidade internacional e a ONU não reconhecem essa anexação, pois se trata da conquista de uma região por um país estrangeiro, toleradas até o século 19, mas desde então universalmente repudiado pelas nações civilizadas.
A resolução nesse sentido referia-se especificamente à expulsão dos habitantes de Golã e a consequente ocupação de suas casas e terras por colonos israelenses. Fato classificado como transferência forçada de populações (como os nazistas fizeram ao conquistar a região dos Sudetos, da então Tchecoslováquia) e condenado explicitamente pela Convenção de Genebra.
Finalmente, o Brasil mudou ligeiramente seu voto: absteve-se na condenação da expansão de assentamentos ilegais judaicos no Golã.
Como se sabe, os assentamentos judaicos já ganharam o repúdio da ONU e da maioria das nações. Até dos EUA, mesmo no governo do presidente Bush.
Nestas votações, o governo Bolsonaro conseguiu desprezar os direitos humanos, o direito internacional, a justiça e a ONU.
Assim está sendo perdida nossa imagem de país preocupado com a salvaguarda dos direitos humanos, construída durante os governos de Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer, que sempre defenderam os direitos humanos nos foros internacionais, além de justiça para os palestinos.
A “nova era” prefere privilegiar o alinhamento político e automático com os EUA.
Suas posições na última reunião da Comissão de Direitos Humanos da ONU começam a ter efeitos.
A imagem do Brasil já está declinando no plano internacional. Particularmente nos países árabes, com quem temos mantido vantajosas relações econômicas, ora ameaçadas.
Sobre os frutos do encontro, diz Matias Spektor, na Folha de S. Paulo de 21 de março, que “Jair Bolsonaro trouxe uma grande vitória para seu governo”.
E completou: “a soma dos benefícios constitui o maior pacote de apoio já dado pelo incumbente norte-americano ao mandatário brasileiro numa visita inaugural desde 1995”.
Aparentemente, foi bem o contrário.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.