Correio da Cidadania

Biden, a carta do establishment do Partido Democrata

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Os setores – mescla de liberais de direita e conservadores - que ainda controlam o Partido Democrata dos EUA sempre resistiram à candidatura de Bernie Sanders à presidência.

Sendo ele o líder dos progressistas, sua eventual escolha para disputar a sucessão de Trump nas próximas eleições significaria uma guinada do partido para a esquerda.

Isso não é aceitável pelo establishment partidário, que considera as ideias de Sanders perigosas, capazes de afetar negativamente os interesses nacionais.

Depois da derrota de Hillary Clinton, em 2016, ventos de mudança passaram a soprar com intensidade no Partido Democrata.

A antes frágil tendência progressista – a esquerda do partido – cresceu rapidamente, passando a disputar o domínio da agremiação com as lideranças tradicionais, algumas comprometidas por ligações perigosas com grandes corporações.

Uma vitória importante dessa facção foi a redução do poder dos chamados superdelegados.

Trata-se de um grupo formado por detentores de mandatos públicos, membros de diretórios partidários e figuras de expressão nacional que gozavam de um estranho privilégio: nas convenções de escolha do candidato democrata à presidência, tinham direito a votar, ainda que contra a posição do seu estado.

Eles foram decisivos na escolha de Hillary Clinton. Entre os então 714 superdelegados, 572 votaram nela, contra apenas 47 favoráveis a Sanders.

Já era esperado. Durante a fase dos cáucus (modalidade de prévias internas que conduz à escolha do candidato a presidente), dirigentes do comitê democrata da campanha, do qual se exige imparcialidade, agiram em favor da senhora Clinton. Algo deplorável, especialmente para um partido que diz prezar padrões éticos.

Em 2017, o establishment partidário marcou outro gol. Na eleição do novo presidente do diretório nacional, conseguiu emplacar seu candidato, Tom Perez, derrotando Keith Ellison, que fora apoiado por Bernie Sanders.

Em março do corrente ano, no Congresso, uma representante de esquerda, Ilhan Omar, atacou a influência do dinheiro dos grupos pró-Israel sobre muitos parlamentares. Usou inclusive uma expressão, logo rotulada de antissemita, provocando a fúria até dos seus colegas democratas. Embora tivesse fornecido explicações corretas, exigiu-se de Nancy Pelosi, a democrata que preside Casa dos Representantes, um ataque formal a Ilan.

Depois de uma acirrada discussão entre os representantes democratas, por pressão do grupo mais à esquerda, acabou saindo uma simples condenação ao racismo, nas suas diversas manifestações.

Apesar das controvérsias entre as duas tendências, o Partido Democrata acabou adotando os principais pontos da plataforma progressista de Bernie Sanders: saúde para todos, universidade grátis, salário mínimo de 15 dólares por hora, redução das desigualdades e corte radical das despesas com armamentos (o orçamento militar dos EUA – quase 700 bilhões de dólares – é igual à soma dos orçamentos militares das demais 10 potências que mais gastam em armas).

A maioria dos 21 postulantes à candidatura presidencial democrata vem defendendo todas ou muitas destas posições.

No entanto, existe no partido um receio generalizado de que Sanders seja avançado demais para os estadunidenses médios. Ele se declara socialista, mas não na teoria tradicional. É, na verdade, um socialdemocrata, que não prega socializações dos meios de produção, mas um Estado que priorize os interesses dos mais necessitados.

Mesmo assim, há quem tema o peso negativo da palavra “socialista” na mente do povo dos EUA.

Além disso, para alguns, o momento do líder progressista já passou, teria acontecido logo depois da eleição de Trump, quando a fraqueza da candidatura Hillary tornou benvinda a ideia de mudança.

No caso dos democratas progressistas e mesmo de muitos liberais mais ousados, o objetivo seria renovar o partido, norteando-o para a defesa dos mais pobres, das minorias e do meio ambiente, tendo como meta final a criação de uma sociedade mais justa.

Trump no poder deu mostras abundantes de que o “novo” nem sempre era bom, podia mesmo ser desastroso.

A sucessão das trapalhadas de The Donald, apimentadas por sua desmedida vaidade e arrogância, contribuiu para estimular o receio geral do povo em relação a candidatos associados a mudanças radicais.

O desconhecido tornou-se preocupante. Foi nesse clima que surgiu a candidatura centrista de Joe Biden, o inexpressivo vice-presidente de Barack Obama.

Por seu passado, dele não se esperava muito, mas, pelo menos, não assustava ninguém.

Biden é um político conhecido e experiente que, além de vice-presidente, foi senador entre 1973 e 2009. Transmite a segurança de quem vai melhorar, mas não alterar nada de forma substancial. Surpresas potencialmente arriscadas não viriam dele.

Logo após o lançamento de Biden, os resultados das pesquisas deixaram o pessoal do establishment possuído de intensa euforia.

Na pesquisa de 29 de abril, realizada pela Morning Consult, Biden apareceu na liderança com 36% das preferências, deixando Sanders bem atrás, escolhido por apenas 22%.

E o que foi talvez a cereja do bolo: no mesmo período, pesquisa da Suffolk University mostrava Biden bem à frente do seu rival no estado de New Hampshire, onde Sanders contava vencer folgado. O candidato de centro obteve 22% das intenções de voto, contra 12% do progressista.

Por sua vez, The Donald deu uma forte ajuda ao ex-vice de Obama, concentrando ataques no rival. O que passou a ideia de que seria ele o adversário realmente perigoso.

Isso, é claro, reforçou a posição de Biden nos eleitores democratas. Como derrotar The Donald é uma obsessão (aliás, justa), sentem-se estimulados a não desperdiçar votos, optando pelo candidato mais capaz de desalojar da Casa Branca o seu atual morador.

A ideia do voto útil está, portanto, vitaminado a candidatura Biden. Pesquisa da Hill/Harris X, realizada em 25 e 26 de abril, prova que ele tem mesmo força para derrotar o republicano: 43% das pessoas ouvidas disseram preferir Biden, contra apenas 37% pró-Trump.

Apesar do ex-vice ter largado com vários corpos à frente dos seus concorrentes no partido, é temerário julgar que a fatura já está liquidada.

A corrida mal começou, ainda temos muitos meses antes do dia em que o Partido Democrata decidirá quem será seu candidato a destronar The Donald.

Biden vai sofrer muitos ataques. Terá de encarar muitos debates. Nos seus quase 50 anos de política não brotaram apenas flores.

Esperto, ele tem negado ser um candidato do establishment (The Hill, 28 de abril de 2019). Pelo contrário, jura ser um político afinado com as tendências avançadas do novo Partido Democrata.

Segundo seu porta-voz, Andrew Bates, informou ao Washington Post, Biden acharia ser necessário que os Estados Unidos pulassem fora da guerra do Iêmen. Que o feliz esposo da maravilhosa Melania Trump cancelasse o cheque em branco que deu à Arábia Saudita, devido à conduta brutal do reino na guerra do Iêmen.

E tem mais: diz antigo alto funcionário do governo, próximo a Biden: “se o Irã continuar cumprindo suas obrigações no acordo (com o Irã), penso que ele visualiza a volta (dos EUA) ao acordo (Al Monitor, 25 de abril de 2019)”.

Posições que não tem muito a ver com certas posturas alinhadas aos interesses de Telavive.

Em 1986, Biden, afirmou no Senado: “os EUA teriam de inventar um Israel para proteger nossos interesses”.

Diante de reações indignadas na mídia social, ele produziu um vídeo explicando a importância de Israel para os EUA, empregando frases entusiasmadas, como esta: “é o melhor investimento de 3 bilhões de dólares que já fizemos”.

Em muitas ocasiões, Biden se referiu ao próprio primeiro-ministro Bibi Netanyahu como um “grande amigo”.

Em 2012, já vice-presidente dos EUA, notou que Bibi vinha sendo seu amigo há 30 anos. Possivelmente, para não ficar mal com o presidente Obama, então irritado com o premier de Israel por sabotar as negociações de paz com os palestinos, Biden tascou: “Bibi, eu não concordo com uma maldita coisa que você diz, mas eu te amo”.

Esse love affair não enganou o Jewish News Syndicate, que, em abril de 2016, denunciou aos seus leitores: “O vice presidente culpou as políticas de Israel por sabotarem o processo de paz.”

E ainda citou Biden, em tom crítico: “eu condeno a decisão do governo de Israel de dar continuidade aos planos de novas unidades residenciais em Jerusalém Oriental (majoritariamente habitada por árabes). Precisamos construir uma atmosfera de apoio às negociações, não complicá-las.”

Em 2016, na conferência anual da AIPAC (maior lobby pró-Israel dos EUA), ainda de acordo com o Jewish News, Biden teria atacado Netanyahu: “o processo firme e sistemático do governo de Israel de expandir os assentamentos, legalizar postos avançados e tomar terras (palestinas) está corroendo as chances da solução dos dois Estados”.

Não parece o mesmo homem que, 20 anos atrás, defendeu com unhas e dentes o acordo que obrigou os EUA a fornecer a Israel armamentos no valor de 3,1 bilhões de dólares. Algo como jogar dinheiro fora, pois Israel há muitos anos já possui o mais poderoso e moderno exército do Oriente Médio.

Há motivos para se supor que Biden talvez assuma posições de acordo com as tendências da moda.

Diversos buracos negros em sua carreira política estão começando a ser explorados por seus adversários na conquista da candidatura democrata, em 2020.

A imprensa alternativa tem pegado pesado. O Truth Out, de 26 de abril último, acusa o ex-vice de, em 2005, ter votado a favor de leis que privaram milhões de consumidores da proteção que recebiam da Lei das Falências (nos EUA, as pessoas podem falir).

Ele teria sido fundamental na fixação de pesadas sentenças de prisão a meros consumidores de drogas.

Foi um dos três senadores democratas no comitê que, em l978, promulgou a proibição dos estudantes se beneficiarem da proteção prevista na Lei da Falência, durante um período de tempo após sua graduação.

A atuação de Biden como senador foi tão valiosa para as empresas financeiras que as publicações desse setor frequentemente o citavam como: “elemento-chave na aprovação da lei”; “um firme apoiador”; “um forte proponente”; “decisivo”; “possivelmente o mais firme defensor da Lei das Falências”; “o mais ardente democrata na defesa da legislação da falência”.

Estas e outras posições de teor semelhante serão citadas contra o candidato centrista, inclusive nos debates com seus concorrentes. Podem eventualmente prejudicar sua performance nas pesquisas.

Há dois fatores com potencial de elevar Sanders ao primeiro lugar. Sendo os jovens seu principal contingente eleitoral, o grande número de pessoas que, nos próximos 18 meses, vão atingir idade para serem eleitores, devem, em massa, votar no candidato progressista.

Acredita-se também que, entre os demais candidatos com ideias semelhantes às de Sanders, muitos vão desistir diante da sua falta de chance que deve ficar evidente no decorrer do período pré-eleitoral.

Nesse caso, Elizabeth Warren, O´Rourke e Kumala Harris, que no momento não chegam a 10 pontos, podem apoiar Sanders para que sejam vitoriosas as posições políticas que compartilham com ele. Em consequência, é de se crer que a maioria absoluta dos eleitores desses três senadores democratas acabaria votando em Sanders.

Tudo isso é incerto como o futuro costuma ser para todas as pessoas que habitam este planeta.

O certo é que a esquerda do Partido Democrata ainda não jogou a toalha no ringue.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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