Correio da Cidadania

Trump não nos ama

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Ele segue fielmente o princípio de John Foster Dulles, secretário de Estado dos EUA, depois da Segunda Guerra mundial: “os EUA não têm amigos, tem interesses”.

Pode parecer cínico, mas é natural. Afinal, o líder de um país tem de buscar o que é bom para seu país e seu povo.

Não é por compartilharem com a Arábia Saudita os valores democráticos de respeito às liberdades que os EUA são aliados do reino do deserto.
Trump já deixou muito claro que o apoio intransigente ao rei Salman e seu filho coroado são necessários para os sauditas continuarem gastando bilhões em armas estadunidenses.

Tampouco Putin salvou o regime Assad na Síria para defender a paz na Síria. Para o presidente russo o que realmente interessa é fortalecer a presença de Moscou no Oriente Médio e garantir um governo que forme a seu lado.

Apesar de John Foster Dulles ser dos mais rígidos conservadores de todos os tempos, não só direitistas, mas até estadistas de esquerda agem de acordo com sua lição.

O papel do Brasil

É verdade que alguns raros governantes pensam que, por simpatia ou identidade ideológica, um país beneficia outro. Em geral, são casos de rematada ignorância ou incurável insanidade.

Tememos que o governo brasileiro se insira numa destas categorias (ou em ambas).

Ernesto Araujo, seu ministro de Relações exteriores, esboçou uma, digamos, teoria para justificar a política externa da nova era. O mundo se dividiria em dois blocos. O Ocidente civilizado e terrivelmente cristão, ameaçado pelo Oriente bárbaro e um bando de globalistas culturais que, infiltrados disfarçadamente, estavam solapando as bases dos regimes ocidentais.

The Donald, como presidente dos EUA, seria o grande líder que comanda a luta dos países do Bem contra as forças do Mal (China, Rússia, Irã, Coréia do Norte, Cuba, imigrantes islâmicos na Europa e centro-americanos nos EUA).

As premissas ministeriais estão furadas. Não existe esta guerra fria, vislumbrada pelos delírios de Ernesto.

O Ocidente não é um bloco monolítico, unido sob Trump para derrotar os pérfidos orientais marxistas.

Merkel e Macron, os principais chefes de governo da Europa, são ásperos críticos das diabruras do errático ocupante de Casa Branca. Somam com algumas posições de Trump, sim, mas divergem em outras.

Às vezes este desacordo evolui para o lançamento de retaliações, como as sanções que impedem empresas europeias de comerciarem com o Irã – país inimigo para Washington, mas não para a França e a Alemanha.

Outros países, embora tratem de forma extremamente cuidadosa suas relações com os EUA, por temerem o imenso poder econômico-militar de Washington, muitas vezes apoiam teses mal vistas por Trump - a independência dos palestinos, boas relações com a China, paz com os iranianos, direitos humanos dos árabes, entre outras.

Posicionam-se nesse nicho Portugal e Espanha, dirigidos por partidos socialistas, os países escandinavos, onde a socialdemocracia encabeça ou participa dos seus governos. E até a Itália, agora que uma coalizão de centro livrou a nação da influência perturbadora do populista de direita, Matteo Salvini.

Incondicionalmente, os Estados Unidos de Donald Trump só contam com Israel e algumas ilhotas perdidas no Oceano Pacífico.

O Canadá, a Austrália, Israel, a Arábia Saudita, os países do Golfo Pérsico, a Hungria, os países bálticos, o Japão e a Coréia do Sul costumam bater continência a The Donald por que seus governos têm interesses específicos a defender.

Não se pode dizer que esses grupos de países vassalos ou quase isso sejam o Ocidente.

No entanto, a ideologia da nova era, perdida em ilusões, está cega para a realidade do nosso tempo.

Em consequência da sua bizarra visão do mundo, eles clamam que o Brasil deve alinhar-se automaticamente aos EUA, aplaudindo de olhos fechados a política externa e os interesses econômicos norte-americanos.

Os líderes do governo acreditam piamente que, assumindo o papel de fiel seguidor de The Donald, os EUA, agradecidos, derramariam abundantes mercês sobre o Brasil.

A realidade é bem outra. Em março deste ano, realizou-se o primeiro encontro Trump-Bolsonaro, do qual se esperava choverem as primeiras vantagens que os paternais norte-americanos ofereceriam a seus emotivos e dóceis liderados.

O presidente, seu filho Eduardo, o ministro Ernesto e outros menos votados voltaram eufóricos, trombeteando grandes ganhos.

Deviam estar de brincadeira. Os ganhos foram todos dos EUA. O Brasil ofereceu uma série de concessões reais, recebendo em troca abstrações e promessas vagas.

De concreto, pouco, muito pouco. Foi, propriamente, uma doação. A generosidade brasileira certamente encantou os representantes estadunidenses na reunião.

A realidade

Renunciamos à exigência de vistos aos norte-americanos e aos 60 milhões de dólares de taxas que eles nos pagavam anualmente.

A bizarra explicação de Bolsonaro é que eles não viriam para cá em busca de trabalho... Seria motivo para o Brasil desistir de uma exigência que punha algumas dezenas de milhões de dólares nos minguados cofres de Brasília?

Seja como for, não houve reciprocidade: impassíveis, os EUA continuam exigindo visto dos passageiros brasileiros.

A cessão da base de Alcântara para lançamento de foguetes (ainda dependendo de aprovação no Senado) deve ser analisada sob dois focos.
Nos termos do acordo entre nós e os EUA, capítulo especial é reservado às salvaguardas, onde às obrigações brasileiras correspondem a direitos... norte-americanos.

Lembremos que o acordo de cessão da base dispõe que ela está autorizada a lançar apenas foguetes de uso pacifico.

No entanto, o artigo VII das salvaguardas diz que os equipamentos lançadores dos EUA serão transportados ao Brasil em containers fechados e lacrados. As autoridades brasileiras só terão conhecimento do seu conteúdo, através de declarações das autoridades dos EUA.

Se, por exemplo, circunstâncias lhe aconselharem o disparo de foguetes de Alcântara com bombas nucleares ou químicas The Donald poderá ir em frente, sem que as autoridades brasileiras saibam desta altamente indesejável transgressão (Outras Palavras, 11-10-2019).

Provavelmente, o ministro Ernesto dirá que o digno Trump jamais cometeria tal abuso...

Quanto à parte financeira, é pouco o que pagarão pelo uso de Alcântara. Graças à sua localização, a base vai garantir uma redução de 30% no gasto de combustível nos lançamentos. Daí, a alegria transbordante do presidente republicano, ao celebrar uma pechincha que irá poupar muito dinheiro ao Tesouro dos EUA.

Afinal, os 10 milhões de dólares anuais, que serão desembolsados anualmente pela cessão de Alcântara, não passam de uns trocados para eles.

A possibilidade de o Brasil ganhar “centenas de milhões”, como se anunciou, arrendando o uso de Alcântara também a outros países, existe, independentemente do acerto com os EUA.

O chato é que um certo número desses possíveis fregueses já está excluído pelas salvaguardas. O artigo III nos impede de firmar acordos com países que uma das partes considere terroristas. Como a história prova, os EUA já aplicaram este epíteto a quem não merece, como o inocente Iraque em 2002. Quem nos garante que novos erros deste tipo venham a acontecer num futuro?

Agora vamos falar algo sobre um precioso mimo com que os norte-americanos nos brindaram.

Eles nos conferiram o galardão de “aliados preferenciais extra-OTAN”. Assim, poderíamos comprar avançados equipamentos militares ianques em condições especiais.

Receio que não sejam tão especiais assim. Sendo membro da OTAN, a Turquia teria até mais direito a estas vantagens na compra de sistemas antimísseis americanos. Bem, não foram de abafar o comércio, pois Erdodagn acabou optando pelo sistema S-400 russo, que considerou mais eficiente e barato.

Na agricultura também manifestou-se a tradicional generosidade brasileira. Pena que o governo Trump retribuiu com frieza, concentrado em promover os interesses do seu país.

Teresa Cristina, ministra da Agricultura do Brasil, não gostou nada das concessões agrícolas do nosso presidente. Considerou que houve uma troca insuficiente.

Na área do trigo, por exemplo, o governo Bolsonaro concedeu uma cota de exportação para os EUA de 750 mil toneladas isentas de taxas. Privilégio de que só gozavam nossos parceiros no Mercosul.

O mercado brasileiro de suínos foi aberto para os produtores norte-americanos. Seus concorrentes brasileiros não gostaram nada. O Brasil é autossuficiente em suínos e ainda exporta 20% de sua produção. Não precisa importar nada.

Diante da abertura do mercado, teme-se o contágio com os animais norte-americanos, que sofrem doenças não encontradas entre os nossos.

Uma retribuição a estas concessões seria uma possível exportação de carne bovina para os EUA, mercado atualmente fechado para o Brasil por questões sanitárias.

O governo prometeu enviar um grupo de técnicos para verificar como estão as condições do gado brasileiro. E também indicar algumas medidas que julgassem necessárias para a aceitação nos EUA da carne bovina brasileira.

Isso aconteceu em julho e o relatório dessa missão foi entregue ao secretário da Agricultura dos EUA. Espera-se que ele o aprove até o fim de outubro, permitindo o reinício das exportações para o mercado estadunidense.

Não se deve esperar grandes volumes, pois os EUA são um dos maiores produtores de bovinos do mundo. Não precisam importar. Eles reservam uma cota inexpressiva do seu mercado para ser distribuído entre os principais países estrangeiros produtores – além do Brasil, Austrália, Índia e Argentina.

A ministra da Agricultura tem feito de tudo para que o assunto se resolva logo. Infelizmente, parece ser muito trabalho por pouco fruto.

Mas foi um resultado brilhante, comparado com o resultado das negociações sobre o mercado do etanol. Há alguns anos, o Brasil criou uma cota para importação de etanol de 600 mil litros por ano com taxa zero.

Acima deste limite, as compras são taxadas em 20%. Seu motivo foi objetivo: “Nós não tínhamos nenhum tributo e o mercado brasileiro começou a ser invadido, dado o excedente do combustível nos EUA”, informou o diretor-técnico da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, Antônio Pádua Rodrigues.

Caso não fosse renovada até setembro, essa concessão perderia a validade e o país voltaria a taxar totalmente as importações.

Trump tinha interesse pessoal nesse assunto. Devido aos conflitos comerciais com a China, os produtores desse combustível, em região onde o republicano tem muitos adeptos, estavam em situação crítica. Ansiosos para recuperar suas vendas.

Como os EUA privilegiam seus interesses, seu governo vinha exercendo pressões para a isenção no Brasil ser renovada.

Nossos plantadores de cana de açúcar, de onde se faz etanol, se animaram, achavam que poderiam aproveitar a situação. “Usando isso (a crise norte-americana), o Brasil gostaria de fazer uma troca: seu etanol entra sem taxas em favor da entrada do açúcar no mercado norte-americano”, comentou Rodrigues.

Esperanças vãs. O governo Bolsonaro manteve as concessões, atendendo a Trump e aos produtores dos EUA, afinal amigo é para isso mesmo.

Quem foi escalado para pagar a magnanimidade do governo da nova era foram os sucroalcooleiros do Nordeste. Agora, arriscam-se a perder muitas vendas, pois, com subsídios locais e sem ter de pagar a taxa de 20%, o etanol dos EUA sai mais barato para o consumidor brasileiro.

The Donald está festejando estas benesses, dizem até foi buscar nas adegas da Casa Branca aquele bourbon vintage, de 30 anos, que ele guarda para ocasiões especiais.

Dizem que o morador do palácio do Planalto está estudando vantagens para compensar as perdas dos usineiros do Nordeste.

Vantagens incorrem obrigatoriamente em gastos com dinheiros públicos, o que tornaria nossa população solidária, no pagamento das beneficências do Planalto.

Há ainda mais outra perda decorrente da eliminação da taxa sobre o etanol estadunidense. Diz Enio Verri, professor universitário e deputado federal do PT: “Na medida que o Brasil deixa de cobrar essa sobretaxa sobre a importação desse produto, nós abrimos mão de receita, no momento em que o Brasil passa por uma crise gigantesca (The Sputnik- Brasil)”.

Mas tudo isso foi considerado secundário pelos cérebros do governo Bolsonaro, diante do presente que o paternal amigo, Donald Trump deu ao Brasil: o ingresso no OCDE, a organização de comércio dos países ricos.

Seria um verdadeiro maná, que traria para o Brasil a confiança e os mais volumosos investimentos internacionais (não foram fornecidos mais detalhes).

De concreto, The Donald apenas pediu que o Brasil renunciasse ao status de país em desenvolvimento da OMC, que nos garante uma série de benefícios em negociações com países ricos, como, por exemplo, mais prazo para cumprir determinações e margem maior para proteger produtos nacionais.

Bolsonaro topou, eufórico e agradecido pela sedutora troca. Não se sabe o que exatamente o presidente Trump disse a Bolsonaro, o fato é que o mito e seus próximos saíram confiantes, o Brasil estaria prestes a virar membro da OCDE graças à relação especial do governo da nova era com os EUA.

Grande frustração

Como disse Guilherme Casarões, professor de política internacional da Fundação Getúlio Vargas, “o presidente quis sugerir à sua base que sua relação especial com Trump faria milagres. Mas não existem milagres”.

Pouco antes de a OCDE informar quais seriam seus novos membros, o fantasioso Ernesto, ministro das Relações Exteriores, declarou em discurso que o Brasil estava pronto para entrar na organização.

Que pena, a OCDE não estava pronta para nos aceitar. Os EUA preferiram indicar a Romênia e a Argentina. O Brasil ficou para outra vez.

Em disputa com os países europeus, que queriam mais membros na OCDE, o interesse dos EUA era no sentido contrário. Daí a escolha de somente dois novos indicados, a quem Washington já fizera as mesmas promessas feitas ao Brasil.

Tentando sossegar a indignação diante deste fracasso em suas ações internacionais, nosso governo declarou que a opinião pública brasileira fora enganada pela imprensa (dominada por globalistas, petistas, socialistas e outros fantasmas conexos), que mentira, afirmando que o desesperado ingresso estaria para acontecer.

A verdade era que o ingresso na OCDE costumava demorar muito. No entanto, como amigos especiais, seremos beneficiados por Tio Sam, logo, logo estaremos na OCDE, ombreando com os 36 países mais ricos do mundo.

Para não deixar seu fã falando sozinho, o governo norte-americano também se pronunciou, dizendo que Trump exigiu que a pretensão brasileira fosse atendida rapidamente.

Quando? Ninguém sabe. Por enquanto, o suposto benefício não passa de uma abstração, como parece ser o maravilhoso acordo binacional Brasil-EUA, que dizem estar em vias de ser assinado, elevando-nos ao Everest da abastança.

Enquanto Papai Noel não vem, o Brasil segue sem os direitos que detinha na OMC.

Resumindo: nas concessões feitas, renunciamos a vantagens concretas, recebendo, em troca, pouco, nada ou gloriosas promessas. E mesmo tendo de amargar inevitáveis prejuízos, em alguns casos.

Em todas as situações prevaleceu o interesse dos EUA, defendido por Donald Trump, o ídolo do nosso presidente. Ele soube cumprir com eficácia o princípio de John Foster Dulles, aliás, expresso com clareza no América, first.

Não se pode culpar o morador da Casa Branca, que cumpriu seu papel. Errado foi nosso presidente que não soube entender que o America, first não inclui, necessariamente, o Brasil, first.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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