A impunidade dos Estados Unidos
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- Luiz Eça
- 05/12/2019
Para Donald Trump, o Direito Internacional só vale quando interessa a seu governo. Não que presidentes anteriores deixaram de seguir este princípio. Mas The Donald já excedeu a todos eles.
Enquanto os outros se preocupavam em apresentar justificações, com certo verniz de seriedade, a ações egocêntricas que lesavam direitos de nações estrangeiras, ele o faz às escâncaras, no máximo usando alegações ridículas.
Quanto a esse questionável preceito da política externa norte-americana, o morador da Casa Branca já foi muito além dos seus antecessores ao retirar os EUA de compromissos com o direito internacional, que vinham sendo mantidos há décadas.
Trump anulou a condenação dos assentamentos israelenses na Cisjordânia ocupada, que os EUA subscreviam desde 1978, violando assim o disposto na Quarta Convenção de Genebra, que proíbe explicitamente os Estados ocupantes de transferirem seus civis para os territórios ocupados.
Ao explicar esta mudança de rumos, o secretário de Estado, Mike Pompeo, lascou: “embora não esteja necessariamente tentando reinterpretar uma lei internacional, o Departamento de Estado (dos EUA) argumenta que a lei internacional não faz avançar a causa da paz, portanto, deveria ser ignorada”.
Segundo esse raciocínio, as leis internacionais só valem quando os EUA julgarem que servem a interesses importantes, aos deles, como normalmente acontece.
Neste caso, para os doutos juristas do Departamento de Estado, proibir assentamentos israelenses em terras tomadas aos palestinos não seria importante, pois isso nada teria a ver com a solução da crise na Palestina.
O pensamento da comunidade internacional é diferente. Ela, há dezenas de anos, considera a expansão dos assentamentos um obstáculo à paz na Palestina. Por isso mesmo, quase todos os países do mundo (inclusive os EUA, antes de Trump) rejeitam esse programa israelense.
Para a ONU, esta decisão é mandatória. Em 2017, seu Conselho de
Segurança determinou que o governo de Telavive parasse de criar assentamentos ilegais, pois só depois disso os palestinos topariam iniciar negociações de paz com israel.
Ao fazer seu espantoso anúncio, Pompeo também afirmou que questões entre palestinos e Israel referentes aos assentamentos teriam de ser tratadas nos tribunais israelenses. Para o iluminado prócer republicano, quem deve julgar questões entre ovelhas e lobos é, evidentemente, uma alcateia.
Não é a primeira vez que os EUA, sob The Donald, rasgam leis internacionais e resoluções da ONU.
Depois da fundação do Estado de Israel, em 1948, Jerusalém permaneceu dividida, a parte oriental, habitada majoritariamente por árabes palestinos, e a ocidental, por israelenses.
Na guerra de 1967, o exército de Israel tomou e ocupou Jerusalém Oriental, então sob administração da Jordânia. E o governo judaico declarou que toda a cidade passava a ser israelense.
Em 1980, Telavive anexou formalmente o setor oriental, através da Lei Básica de Jerusalém. Ora, o status da cidade deveria ser resolvido em conjunto por árabes e israelenses, como fora estabelecido pela ONU, em 10 resoluções do seu Conselho de Segurança. A entidade não vacilou em protestar contra esse ato unilateral.
Como, o governo judaico nem se tocou, o Conselho de Segurança da ONU aprovou resolução que condenava a anexação oficial como uma violação do direito internacional, conforme o expresso na Quarta Convenção de Genebra, solicitando que os países – membros retirassem suas embaixadas da cidade. Todos obedeceram – inclusive os EUA.
Trinta e oito anos depois, o presidente Trump resolveu se opor ao que era consenso nos próprios EUA e no mundo inteiro, reconhecendo Jerusalém como capital de Israel, sem se dar ao trabalho de justificar.
Protestos pipocaram nos quatro continentes. A Turquia e o Iêmen apresentaram moção à Assembleia Geral da ONU condenando a decisão norte-americana e propondo que a Casa Branca voltasse atrás. Como não foi aceito, a moção foi à discussão perante representantes de quase todos os países do mundo.
Sentindo-se todo-poderoso, The Donald resolveu ganhar no grito.
Primeiro, sua então embaixadora na ONU, a vociferante Nikki Haley, ameaçou: por ordem presidencial, anotaria os nomes dos insubmissos.
Logo em seguida, Trump rugiu, aí dos que nos desobedecerem: “eles (os ingratos) ganham centenas de milhões de dólares e mesmo bilhões de dólares, e então votam contra nós. Bem, estaremos de olho nesses votos. Deixem-nos votar contra nós. Nós economizaremos bastante... Não nos incomodamos (Middle East Eye, 21-12)”.
Não adiantou nada. O reconhecimento de Israel e a instalação da embaixada estadunidense na cidade foram condenados explicitamente por 128 membros da ONU, inclusive pelos países da Europa Ocidental, do Oriente Médio, do mundo islâmico, da maioria da América do Sul e dos principais países africanos.
A favor dos EUA apenas nove governos: além de Israel, um punhado de arquipélagos e minúsculas ilhas do Pacífico, mais Honduras, Guatemala e a ditadura do Togo; 35 nações ficaram em cima do muro e 9 fugiram da raia.
E, assim, os EUA, mais uma vez, ficaram contra o mundo, até contra seus tradicionais aliados da Europa e do Oriente. E deram uma banana para o
Direito Internacional e para ONU, que juraram prestigiar quando a organização foi fundada.
Comportou-se como um legítimo rogue state (país fora da lei). Claro, não sofreram qualquer penalidade, afinal ninguém ousa punir a mais poderosa nação do mundo.
Eis que, novamente ignorando a existência de leis internacionais, o morador da Casa Branca apoiou Israel, em mais uma transgressão.
Na guerra de 1967, o regime sionista tomou e ocupou militarmente as colinas de Golã, parte integrante do Estado sírio, habitadas somente por cidadãos dessa nacionalidade.
Em 1981, o Golã foi anexado formalmente. O governo de Telavive declarou que passava a ser território do Estado de Israel. comunidade internacional protestou, a ONU vetou a anexação, absolutamente ilegal pelo direito internacional, pois desrespeitava o princípio da soberania síria.
Israel respondeu, expulsando 131 mil moradores sírios (drusos, islâmicos e cristãos). Autêntica limpeza étnica, conforme o Human´s Rights Watch.
Permaneceram vivendo no Golã apenas uns 20 mil sírios, em pequenas aldeias, a maioria drusas. Enquanto isso, o governo de Telavive instalou 41 assentamentos, ocupados por 20 mil israelenses (CIA, World Facts, 2010).
Nenhum país do mundo reconhece a conquista de uma região parte de outro país. Isso não acontecia desde 1939, quando o exército de Adolf Hitler invadiu e ocupou a região dos Sudetos, na então Tchecoslováquia. Como se sabe, os líderes da Europa, que eram o Reino Unido e a França, aceitaram esta violência. Pensavam que garantiria a paz mundial. E deu no que deu.
Não caindo nesse erro, a ONU condenou a malfeitoria israelense. As resoluções 242 e 497 do seu Conselho de Segurança, apoiadas pelos EUA, afirmaram sem meias palavras que a anexação unilateral israelense do território sírio violava o direito internacional. Na Assembleia Geral da ONU, todos os países perfilharam esta decisão.
Mais tarde, descobriu-se petróleo em Golã. E a empresa israelense Afek Oil and Gas, subsidiária da Genie Israel, conseguiu autorização judicial para começar a perfurar na região.
A Genie é presidida pelo general aposentado Effi Eitam, autor da frase: “palestinos são criaturas que vieram das profundezas da escuridão”. Ele também predisse que Israel, um dia, teria de matar todos eles.
O corpo de aconselhamento estratégico é adornado por Cheney, ex-vice de Bush, um dos principais responsáveis pela guerra do Iraque, e pelo magnata da imprensa marrom, Rupert Murdoch.
Com essa honorabile societá, a Genie tem muita chance de tomar o petróleo do Golã para si.
Em 2018, ainda nos tempos de Obama, Netanyahu foi aos EUA, onde declarou que Israel pretendia conservar as colinas petrolíferas para sempre. Queria o nihil obstat da Casa Branca.
Obama não engoliu essa. E o Departamento de Estado tratou de informar que os EUA se recusavam a reconhecer a ocupação e anexação do Golã por Israel, por ser algo manifestamente ilegal.
Seu sucessor, o errático The Donald, está pouco ligando para leis internacionais, como o mundo já aprendeu. Em março deste ano, para agradar ao compadre Netanyahu, afirmou que os EUA passavam a reconhecer a anexação do Golã.
A explicação foi sucinta: “Isto já deveria ter acontecido há décadas”. Em dezembro de 2017, o Spiegel considerou que a atitude de Trump era como uma bomba no processo de paz na região e mancharia a imagem de Washington no Oriente Médio e nos outros continentes.
E daí? Trump não perde seu sono por causa disso. O seu America, first é pra valer. À sua política externa interessa manter Israel como ponta de lança do império norte-americano no Oriente Médio. Mesmo passando por cima de coisas como ética, direito internacional, decisões da ONU etc. – e assim indignando a opinião pública dos países civilizados, principalmente da Europa.
The Donald sabe que isso não vai lhe acarretar quaisquer punições. Ninguém tem coragem de amarrar o guizo no rabo do gato.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.