Correio da Cidadania

O excepcionalismo dos EUA não tem futuro

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O chamado “excepcionalismo americano” é definido pelo senador Mitt Romney, ex-candidato republicano contra Obama, no seu livro No apology: The Case for American Greatness (“Sem Pedir Desculpas: o Caso da Grandeza Americana”): “Eu sou um daqueles que acredita que a América está destinada a permanecer, como tem sido desde o nascimento da República, a mais brilhante esperança do mundo”.

O historiador Gordon Woods oferece uma noção mais ampla: “nossas (dos estadunidenses) crenças na liberdade, igualdade, constitucionalismo e bem estar das pessoas comuns vêm da era da Revolução. Assim como a ideia de que os norte-americanos são um povo especial destinado a liderar o mundo para a liberdade e a democracia”.

Afirmar que a América é “especial”, algo acima dos outros países e que, portanto, não pode ser julgada pelos mesmos padrões, está profundamente enraizado na sociedade dos EUA. A partir da escola, os norte-americanos são inculcados desse conceito incansavelmente repetido por políticos, jornalistas, professores, ministros religiosos e cineastas nas mais diversas manifestações.

Fazem coro a esta bombástica afirmação desde liberais progressistas, como Barack Obama, até direitistas, como o secretário de Energia de Trump, Rick Perry. Obama entoou com voz trêmula de emoção: “Eu acredito no excepcionalismo americano com todas as fibras do meu ser”. E Rick Perry foi categórico: “Nós somos a mais excepcional nação na face da terra”.

Sendo os EUA um “povo especial destinado a liderar o mundo para a democracia e a liberdade”, é lícito supor que o país esteja sempre com a verdade. No cumprimento de missão tão árdua, os EUA se autoatribuem exclusão de ilicitude para infringir leis e princípios universais, quando julgarem conveniente.

Por vezes eles se colocam acima das leis, nos casos em que as desrespeitam para atender a seus interesses, inclusive violando interesses justos de países pouco amigáveis. O governo Bush invadiu o Iraque com base em alegações falsas, tanto para satisfazer a indignação do seu povo pelo ataque às Torres Gêmeas, quanto para eliminar um regime que se opunha à hegemonia norte-americana no Oriente Médio. E assim a soberania do Iraque foi ignorada, apesar de garantida pelo Direito Internacional.

Depois de retirar seu país do acordo nuclear com o Irã, The Donald impôs sanções devastadoras a esse país, culpado por ousar expandir sua influência no Oriente Médio, contra os interesses políticos dos EUA. E as sanções estão espalhando a fome e as doenças entre os iranianos.

Quanto aos direitos humanos deles, que leis internacionais os protegem Mike Pompeo, secretário de Estado, deve ter bocejado de tédio. Limita-se a informar que o objetivo da ação é atingir os dirigentes do país, não o povo. Aliás, vinha dando certo. Tanto é que a economia do Irã fora tão arrasada que Teerã teve de aumentar em 50% o preço da gasolina, forçando manifestações de protesto em massa, reprimidas violentamente.

Os EUA apoiam de forma injusta e mesmo ilegal os países que lhes interessa agradar, especialmente Israel e Arábia Saudita. Israel porque representa uma autêntica ponta de lança dos EUA no Oriente Médio, pronto a agir de acordo com os rumos da política externa de Washington.

No governo Trump, os israelenses estão sendo extremamente beneficiados, pois o líder republicano precisa do apoio dos ricos doadores judaico-americanos e da influência dos poderosos lobbies pró Israel na imprensa de todos os EUA.

De olho nessas vantagens, The Donald tomou a mais decidida defesa dos interesses do governo Netanyahu em relação aos desejos dos palestinos. Além de ter retirado o apoio dos EUA às condenações dos assentamentos israelenses, aprovado a anexação das colinas de Golã, tomadas à Síria, e o reconhecimento de Jerusalém como capital israelense, embora todas estas posturas violem o direito internacional e as decisões da ONU.

Do alto de sua autoproclamada excepcionalidade, os EUA não hesitam em tomar atitudes marcadas por uma total falta de coerência, ao condenar nos outros países ações que eles, ou seus protegées, praticam impunemente.

Nos tempos de Obama, moveram céus e terras para forçar o Irã aceitar restrições ao seu programa nuclear, acusando o país de ter como alvo a produção de armas atômicas (o que não foi provado), o que violaria tratados internacionais para evitar a proliferação destas armas pelo mundo.

No entanto, Israel teve até a ajuda de um governo anterior (Richard Nixon) para desenvolver seu programa nuclear. Hoje já existem entre 80 e 200 armas nucleares israelenses, que continuam sendo produzidas sem qualquer objeção norte-americana ou dos países aliados. O morador da Casa Branca tem carinho todo especial pela monarquia da Arábia Saudita.

É que essa pródiga instituição realiza constantes compras bilionárias de armas que deixam as indústrias norte-americanas trêmulas de emoção. Não importa que o governo seja uma cruel ditadura, onde não existe liberdade de imprensa, de expressão de opiniões e de oposição, nem eleições, parlamento e judiciário independente.

Lá os direitos humanitários não são respeitados, as mulheres são tratadas como seres inferiores e os condenados à morte costumam ser executados por degola, como se fazia nos sultanatos durante a Idade Média. Sob The Donald, a América das liberdades e da democracia trata a bárbara monarquia saudita como um amigo dileto.

O presidente Trump chegou a proclamar a inocência do príncipe herdeiro do reino num rumoroso caso em que esse cidadão mandou matar na Turquia um jornalista que o criticava. Toda a opinião pública mundial o considera culpado, inclusive a própria CIA, mas o feliz marido da maravilhosa Melania não se incomodou em dissentir.

Enquanto faz vistas grossas às brutalidades sauditas, The Donald faz chover severas sanções sobre o regime autoritário da Venezuela (ou ditadura, como alguns querem), cujas malasartes são incomparavelmente menos graves do que as praticadas pelos bilionários que regem o país do petróleo. Todas estas incoerências mancham a tão celebrada excepcionalidade americana.

Não que sejam exclusivas dos EUA. A Rússia de Putin também as pratica com certa habitualidade. Enquanto censura a tomada do Golã sírio por Israel, faz o mesmo com a Crimeia que anexou ao país de Tolstói. As torturas praticadas pelo programa de “rendições extraordinárias” do governo Bush, que raptava na Europa terroristas ou suspeitos para serem torturados em países onde esta prática era até louvada, mereceram duras denúncias por parte do governo Putin.

Incoerentemente ele autorizou os terríveis massacres aplicados pelo seu exército na rebelde Chechênia. E ainda censurou asperamente os crimes de guerra praticados pelo exército norte-americano em Abu Ghraib apesar dos bombardeios russos de hospitais na guerra da Síria.

A diferença é que na Rússia pós-soviética jamais se ouviu falar em excepcionalidade russa. É possível que, antes desses tempos, o partido afirmasse que Stalin era excepcional... Não sabemos.

Atualmente, a excepcionalidade americana não parece ter muito futuro, pois em recente pesquisa do Eurasia Group Foundation apenas metade dos jovens estadunidenses na faixa de 15 e 29 anos (45,1%) consideraram a América excepcional. Para eles, é um país igual aos outros, que age de acordo com seus interesses.

Como daqui a alguns anos esses jovens serão os governantes dos EUA, podemos concluir que a excepcionalidade americana tem seus dias contados.

“Você pode enganar todo o povo por algum tempo, ou enganar parte do povo por todo o tempo. Mas não pode enganar todo o povo, por todo o tempo (Abraham Lincoln)”.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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