Isso não se faz, Ernesto!
- Detalhes
- Luiz Eça
- 20/12/2019
Por iniciativa do governo Trump, realizou-se no ano passado, em Varsóvia, uma conferência de países para discutirem questões do Oriente Médio. No duro mesmo, era uma iniciativa da campanha americana pró-isolamento do Irã. Tanto é que esse país não foi convidado, apesar da mais complicada questão do Oriente Médio ser exatamente o conflito da república islâmica com os EUA e seus satélites, Arábia Saudita e Israel.
Mike Pompeo, o secretário de Estado dos EUA, deixou tudo às claras, ao informar que o objetivo do encontro era lidar com “a influência do terrorismo do Irã”.
No decorrer dos trabalhos, sobraram críticas ao governo de Teerã, destacando-se a fala do vice-presidente dos EUA, Mike Pence, que classificou o Irã como “a maior ameaça à paz no Oriente Médio” e o acusou de estar planejando “outro holocausto”.
Não foi um evento exitoso, faltaram representantes da França, Alemanha, União Europeia, Rússia e Palestina, entre outros.
Anunciou-se que a próxima reunião será em fevereiro de 2020, no Rio de Janeiro. Segundo o governo norte-americano, o encontro terá a participação de 60 países.
Dizem que o nosso ministro das Relações Exteriores está inchado como um pavão por estar assinando o convite logo abaixo de Mike Pence.
Mas Ernesto Araujo deveria se envergonhar de estar patrocinando um evento tão grato ao duro coração de Donald Trump. The Donald tem sido um péssimo “amigo” do governo brasileiro.
Na famosa reunião do morador da Casa Branca com representantes do Brasil, o presidente Bolsonaro, acolitado pelo fiel Ernesto, fez nada menos do que seis generosas concessões aos EUA, a pedido do morador da Casa Branca, recebendo em troca algumas promessas medíocres, aliás descumpridas, seguidas, algum tempo depois, por uma autêntica porrada na nossa economia.
Na primeira concessão, renunciamos à exigência de vistos aos estadunidenses e aos 60 milhões de dólares de taxas que eles nos pagavam anualmente.
A bizarra explicação de Bolsonaro é que os norte-americanos não viriam para cá em busca de trabalho...
Seria motivo para o Brasil desistir de uma exigência que punha algumas dezenas de milhões de dólares nos minguados cofres de Brasília?
Seja como for, não houve reciprocidade: impassíveis, os EUA continuam exigindo visto dos passageiros brasileiros.
Logo a seguir, vem a cessão da base de Alcântara para os norte-americanos lançarem seus satélites. É um ponto privilegiado por sua localização, que garantirá 30% de redução no gasto de combustíveis deles. A grande alegria de Trump transbordou para seus famigerados tuítes, celebrando um negócio que irá poupar muito dinheiro ao tesouro de Washington.
Na área agropecuária, o altruísmo do governo da “nova era” ofereceu quatro benesses aos fazendeiros estadunidenses, grandes eleitores de Trump, que sofrem os efeitos da guerra econômica contra a China.
Os triticultores dos EUA ganharam uma quota de 750 mil toneladas às suas exportações que serão, inexplicavelmente, isentas de taxas, vantagem de que somente nossos irmãos do Mercosul dispunham.
O mercado brasileiro de suínos foi aberto aos suinocultores de lá. Nossos produtores não ficaram propriamente satisfeitos. Muito pelo contrário. O Brasil é autossuficiente em suínos e ainda exporta 20% de seu rebanho.
Não precisa importar porcos ianques. Nem quer. Teme-se que os animais norte-americanos importados contaminem os brasileiros com doenças ignoradas entre nós.
Há alguns anos, o Brasil criou uma cota para importação de etanol até 600 mil litros por ano com taxa zero. Acima deste limite, as compras eram taxadas em 20%. Havia bons motivos: “Nós não tínhamos nenhum tributo e o mercado brasileiro começou a ser invadido, dado o excedente do combustível nos EUA”, informou o diretor-técnico da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, Antônio Pádua Rodrigues.
Caso não fosse renovada até setembro, essa concessão perderia a validade e o país voltaria a taxar todas as importações de etanol, inclusive dos EUA.
Trump tinha interesse pessoal no assunto. Os agricultores norte-americanos estavam a perigo, ameaçados de redução de vendas com o aumento dos seus preços causado pela volta da taxa.
Como privilegia interesses desses seus fiéis eleitores, The Donald vinha exercendo pressões para a isenção do Brasil ser mantida.
Ansioso por agradar Trump, seu bem amado líder, Bolsonaro atendeu a seus desejos, mesmo em prejuízo dos interesses brasileiros. E ainda aumentou o limite de importações para 750 mil litros. Os maiores beneficiários serão os produtores dos EUA, pois nos vendiam 99% de todo o etanol importado (estatística de 2018). Livre de taxas, o etanol norte-americano será um concorrente insuperável do etanol brasileiro, especialmente do nordeste, região onde os custos de produção são mais altos.
Para não deixar os produtores nordestinos na pior, o governo brasileiro é obrigado a lhes garantir subsídios, onerando nossos esquálidos cofres.
Havia uma esperança de que os EUA retribuíssem essa sofrida generosidade nos presenteando com uma cota no seu mercado de açúcar. Sonhos desfeitos, não aconteceu.
Mas os norte-americanos ponderaram que não ficaríamos sem receber algo em troca, em outro setor da nossa economia. Há alguns anos, o mercado de Washington fora fechado para os bovinos brasileiros, em razão de falhas, ditas, no sistema brasileiro de processamento de carne. O governo dos EUA prometeu enviar, sem perda de tempo, técnicos para reexaminarem esse sistema.
Como os produtores brasileiros tinham trabalhado muito para acabar com as falhas anteriormente apontadas, acreditava-se que receberíamos um ok e os bois brasileiros poderiam voltar a frequentar o mercado norte-americano. É verdade que a quota a ser recebida não deveria ser das mais expressivas, pois os EUA não precisam da carne brasileira, seu rebanho de gado é um dos maiores do mundo.
Cruel surpresa! Os técnicos enviados por Washington continuaram torcendo o nariz para as condições sanitárias do processamento da carne dos nossos rebanhos.
As objeções eram mínimas, seria fácil atendê-las, e a nossa ministra da Agricultura partiu para Washington, anunciando que certamente convenceria as autoridades de lá a reverterem sua posição.
Ela voltou de mãos vazias. Como vazias foram duas concessões soi disant concretas feitas pelo governo do afável The Donald.
Uma delas, a outorga ao Brasil do ribombante título de “amigo extra da OTAN” nos permitiria adquirir atualizados armamentos dos EUA, em condições especiais.
Por enquanto, nada aconteceu, claro, ainda poderá acontecer. Só que tal promessa pode ser mais uma ação de marketing para promover a venda de armamentos made in USA. Possivelmente o Brasil encontraria melhores condições de outros países como, por exemplo, o presidente turco Erdogan as conseguiu da Rússia na compra do sistema antimíssil S-400, mais barato e eficiente do que seu concorrente, o americano Patriot.
A última concessão foi a cereja do bolo: Trump garantiu que os EUA promoveriam a entrada do Brasil na OCDE, a organização de comércio dos países ricos, o que traria confiança e bilhões em novos investimentos do exterior. A cereja estava muito verde.
The Donald desmentiu suas próprias promessas. Na hora de indicar novos membros à OCDE, ele optou pela Romênia e a Argentina, deixando Bolsonaro falando sozinho.
O ocupante do Palácio do Planalto ainda não tinha acabado de lamber suas feridas, quando seu amigo fraternal da Casa Branca (que consta colocaria o Brasil acima dos outros países), lhe aplicou outra pancada: anunciou uma sobretaxa na importação norte-americana de aço e de alumínio.
O governo de Washington se explicou. Fora necessário porque o Brasil teria desvalorizado artificialmente o real para reduzir seus preços externos e assim até mesmo fazer concorrência desleal aos EUA.
Sabe-se, aqui e nos EUA, que se trata de uma autêntica e deslavada mentira já que na nossa política econômica neoliberal o câmbio varia ao sabor dos mercados internacionais. Não da vontade de Paulo Guedes.
Foi injusto e doloroso. A exportação de aço do Brasil aos EUA tem grande importância para nossos produtores. Com a sobretaxa, somada a uma taxa já existente, nosso aço fica em más condições de concorrer no mercado norte-americano, já que sairia mais caro do que o aço de lá.
Assim, nosso presidente aprendeu que o alinhamento automático do Brasil com os EUA não implica no alinhamento automático dos EUA com o Brasil.
Resumindo: nas primeiras reuniões tête-a-tête com Trump, Bolsonaro ofereceu muito e recebeu ninharias em troca, perspectivas frustradas e promessas não cumpridas – tudo isso coroado por uma medida, tomada em nome de falsos pressupostos. Muito ruim para a economia brasileira, algo que não se faz entre amigos, tão afinados ideológica e emocionalmente.
Ainda atônito com a descoberta de que na política externa não há amigos, só interesses, Bolsonaro não cogitou de reagir.
Seu governo fez pior, através do ministro Ernesto Araujo das Relações Exteriores, e topou patrocinar uma conferência dirigida contra o Irã, na esteira das sanções de Trump que estão destruindo esse país, no interesse da hegemonia norte-americana no Oriente Médio.
Entendemos que Bolsonaro e Ernesto comunguem de muitas posições defendidas pelos EUA tais como apoiar Israel, mesmo quando os palestinos têm a justiça a seu lado (com exceção da abertura da embaixada brasileira em Jerusalém, que enfureceria os árabes, grandes compradores de produtos brasileiros); celebrar o golpe militar na Bolívia; liderar a campanha antiMaduro; festejar a derrota dos trabalhistas nas eleições britânicas etc.
Ideologicamente, Trump e Bolsonaro comem no mesmo prato. No entanto, quando agir de acordo com as posições de The Donald prejudica o Brasil... Aí, não! É burro e antipatriótico.
A conferência de fevereiro próximo no Rio de Janeiro vai criar problemas com o Irã, com o qual temos boas relações econômicas e superávits há um bom tempo.
O simples patrocínio, realçado pela assinatura do ministro Ernesto no convite aos demais países, vai pegar mal em Teerã. Indica cumplicidade com as tramas de The Donald para prejudicar o regime iraniano.
O panorama ficará ainda mais turvado diante das críticas e propostas que provavelmente aparecerão, condenando a política do país xiita.
Não creio que o governo de Teerã assista esses golpes estoicamente. Reclamações duras e exigências de explicações chegarão ao Brasil.
Isso na melhor das hipóteses. Na pior, e temo que na mais realista, o Irã retaliará cortando suas compras de milho (onde é nosso maior parceiro), bovinos, frangos, soja, açúcar e outros produtos nacionais.
Cerca de 4 bilhões de importações iranianas (previstas para 2019) tendem a voar para outros países.
O ministro Eduardo Araujo pode achar crucial engajar-se nas hostes do Ocidente, lideradas por Trump, na guerra contra os bárbaros islâmicos do Oriente, apoiados pela China, Rússia e intelectuais globalistas marxistas infiltrados. Tem direito de criar suas fantasias.
Porém, o Brasil está acima de tudo, não é mesmo? Sujeitar-se aos EUA, patrocinando evento internacional contra o Irã, cujas importações importam (e muito) para o Brasil, é dose.
Isso não se faz, Ernesto!
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.