Guantánamo, infeliz aniversário
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- Luiz Eça
- 31/01/2020
Guantánamo está completando 18 anos de vida. Foi uma infeliz ideia do governo Bush.
Naquele clima angustiante criado pelo atentado às Torres Gêmeas, ele resolveu criar uma prisão para investigar e processar suspeitos de terrorismo fora do território dos EUA, onde eles não estariam protegidos pelos direitos humanos garantidos pelas leis norte-americanas e internacionais.
Ou seja, poderiam sofrer violências, quando julgado conveniente.
Posteriormente, a Suprema Corte discordou, dizendo que os EUA mantêm soberania de fato sobre o território da prisão, mantido sob seu controle e jurisdição, portanto, os presos estrangeiros tinham direito de pedir à justiça a revisão de suas sentenças, como qualquer cidadão norte-americano. Até agora, muito poucos pediram.
A prisão de Guantánamo foi construída em uma base naval estadunidenses, em área no território de Cuba, cedida por esse país em 1901, quando estava submetido aos EUA, através de uma concessão perpétua, mediante o pagamento mensal de 4.000 dólares, jamais alterado, apesar da inflação.
No governo de Fidel Castro, os cubanos tentaram conseguir de volta esse pedaço de terra que tinham perdido por um contrato claramente leonino, mas não conseguiram nada.
A operação do presídio ficou a cargo de militares, que conduziriam as investigações até o processamento dos indigitados a cargo de comissões especiais de oficiais.
Durante os dois mandatos de Bush, os suspeitos foram tratados de forma extremamente brutal. Os interrogatórios se processavam com uso abundante de torturas e abusos, conforme relatórios da Cruz Vermelha, da ONU e até do FBI (2007) e denúncias de vítimas, advogados e associações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.
Conforme Baher Azmy, diretor do Center for Constitucional Rights, os oficiais de Guantánamo foram submetidos a um rigoroso programa de treinamento, o SERE.
Criado durante a Guerra da Coreia, o SERE destinava-se a preparar os soldados para, no caso de serem aprisionados, resistirem às torturas geralmente praticadas pelos norte-coreanos.
O SERE foi usado em Guantánamo, não para treinar a resistência dos investigadores a torturas, mas para treiná-los a usá-las nos detentos sem problemas emocionais.
No programa, aprendiam-se práticas como provocar sensações de debilidade, de desespero e de medo, para que os prisioneiros se sentissem impotentes diante dos interrogadores, induzindo-os a confissões, muitas vezes falsas (Democracy Now, 22-01-2020).
Os métodos de tortura mais comuns eram waterboarding (que reproduzia sensação de afogamento), espancamentos, exposição a temperaturas extremas, privação de alimentação, acorrentamento em posições de stress projetadas para provocar dor e manter os presos acordados dias seguidos.
Há casos comprovados de muitos prisioneiros que, depois de passarem anos recebendo este tipo de tratamento, acabaram liberados por falta de provas.
A falta de preocupação com direitos humanos pelos administradores de Guantánamo ficou mais clara depois de o site Truth Out ter obtido, através do Free Information Act, relatório do subinspetor geral de Inteligência da Secretaria da Defesa, em setembro de 2009, que conclui: “certos detentos, diagnosticados como tendo sérias condições de saúde mental, tratados continuamente com medicações psicoativas, estavam sendo interrogados”.
Com base nessa informação, Leonard Rubenstein, médico no John’s Hopkins Center for Public Health and Human Rights, disse: “esta prática adiciona mais uma camada de crueldade às operações de Guantanamo”.
Segundo o dr.Rubenstein, o relatório da Inteligência confirma que:
“detentos cuja deterioração mental e sofrimentos eram tão grandes que levara a psicoses e tentativas de se autoinfringirem ferimentos receberam medicação antipsicótica e foram submetidos a interrogatórios posteriores”.
Ele salientou que o problema não era sua ineficiência em produzir informações corretas, mas o uso de interrogatórios altamente abusivos contra homens que sofriam de graves deteriorações que poderiam ter sido causadas por esses mesmos métodos (Truth Out, 9-07-2012).
Eleito depois de 8 anos de Bush, Barack Obama, logo no primeiro dia do seu mandato, emitiu uma ordem executiva para o fechamento da prisão de Guantánamo, por ele chamada de “um triste capítulo da história americana“. No mesmo documento determinava que fossem revisados os casos de 250 presos que ainda estavam atrás das grades.
Não adiantou nada, Guantánamo continuou funcionando graças a uma série de obstáculos levantados pelo Pentágono e à oposição no Congresso do chamado war party, que aprovou medidas restritivas, não vetadas por Obama, especialmente depois de o Partido Republicano ter assumido o domínio na Casa dos Representantes e do Senado. Como Obama também havia proibido o uso de torturas, as violências reduziram-se ao mínimo, ocorrendo apenas em casos isolados.
Somente no último dia do seu segundo mandato, o presidente democrata conseguiu realizar seus intentos, determinando o fechamento da prisão, em 19-01-2017.
Nessa ocasião, ele declarou: ”Guantánamo contraria nossos valores e enfraquece nossa posição no mundo”.
No seu governo foram liberados e enviados para o exterior 179 detentos, continuando encarcerados 41, dos quais 10 estão sendo acusados de crimes de guerra e 29 ficarão presos por toda a vida. As autoridades militares decidiram que esses últimos não podem ser levados a um julgamento civil, pois provavelmente seriam libertados, por suas confissões terem sido feitas por torturas demonstráveis.
Trata-se de um bizarro procedimento, não acolhido por qualquer código, pois viola princípio da Magna Carta, respeitado por todos os países do mundo. Imposta pelos barões ingleses ao rei inglês João Sem Terra, na Idade Média, ela preceitua que “todo homem tem direito a um julgamento”.
A ordem executiva de Obama teve vida curta. Rapidamente, seu sucessor, Donald Trump, a revogou. Atualmente, os mesmos 41 suspeitos de terrorismo continuam em Guantánamo (muitos liberados há anos). Se estão sendo tratados de forma humana, é duvidoso. As perspectivas não são das melhores, considerando que The Donald já se manifestou favorável ao waterboarding.
Sobre isso a Anistia Internacional tem algo a dizer: “É muito fácil imaginar que Guantánamo continuará a existir como um local de contínuas violações de direitos humanos, quando um presidente mantém a crença cruel e errônea de que a tortura é aceitável. Aqueles que são inocentados devem ser transferidos imediatamente, e todos os outros prisioneiros devem ser julgados ou transferidos para permitir que esta instituição vergonhosa feche permanentemente”.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.