Correio da Cidadania

Os EUA colocam-se acima de qualquer suspeita

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Quando a promotora-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) requereu uma investigação formal dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade no Afeganistão, entre 2003 e 2004, o governo Trump protestou de forma atordoante.

Era novembro de 2017, tempo em que John Bolton, conselheiro especial do presidente e o mais feroz falcão do viveiro da Casa Branca, pontificava nas relações internacionais do país.

Falando em nome do chefe, ele expressou a raiva do seu governo diante da inaceitável audácia de uma simples promotora africana admitir a possibilidade de norte-americanos terem de se sentar no banco dos réus de um tribunal estrangeiro.
Onde estava o respeito à excepcionalidade da “terra dos bravos”, que enviara our boys ao Afeganistão defender a democracia e a segurança universal?

Bolton proclamou guerra ao TPI, a seus membros e a qualquer pessoa que ousasse assessorar o tribunal nessa ímpia empreitada. Os EUA usariam os meios necessários para impedir que seus cidadãos fossem processados por uma corte que ele declarou ilegal. E bradou que o governo Trump retaliaria diante de qualquer processo ou investigação que o TPI movesse contra americanos.

As ameaças foram pesadas: proibição de entrada nos EUA (adeus ao sonho de visita à Disneyworld), congelamento dos fundos que os elementos possuíssem no sistema financeiro norte-americano e o seu processamento nos tribunais dos EUA pelo crime de lesa-América.

Tomado de santa fúria, o conselheiro de Donald Trump terminou sua fala, apostrofando: “Nós não cooperaremos com o TPI. Nós não ofereceremos qualquer assistência ao TPI. Nós não entraremos no TPI. Nós deixaremos que o TPI morra por si só. Afinal, por todos os seus intentos e propósitos, o TPI está morto para nós” (Washington Times, 11-09-2018).

Parece que os juízes do TPI ficaram impressionados com a fúria de Bolton porque, em fevereiro de 2019, eles rejeitaram o pedido de investigação feito pela promotora Fatou Bensuada.

O texto de sua decisão começava admitindo as culpas ianques: “de acordo com a acusação, há uma base razoável para se acreditar que, desde maio de 2003, membros das forças armadas dos EUA e da CIA cometeram crimes de guerra de tortura e tratamento cruel, atrocidades sobre a dignidade individual e estupro e outras formas de violência conforme política aprovada pelas autoridades dos EUA”.

Mas, os doutos magistrados concluíram seu arrazoado negando a investigação da promotora, pois consideravam que uma investigação e um eventual processo não seriam bem sucedidos porque os implicados, EUA, Afeganistão e talibãs, não cooperariam.

Portanto, a ação não poderia chegar a nada, não servindo aos interesses da justiça. Houve quem considerasse este raciocínio, digno de Pilatos, um tanto bizarro. Lavar as mãos seria premiar os autores dos crimes de guerra.

Como afirmou Param-Preet Singh, da Human Rights Watch: “Isto (a decisão) envia uma mensagem perigosa aos perpetradores de que eles podem se colocar fora do alcance da lei, simplesmente negando-se a cooperar (The Guardian, 12-02-2019)”.

Aparentemente, os juízes esqueceram que o TPI foi criado para atuar em casos de crimes de guerra em Estados sem força ou vontade de processar eventuais acusados.

Por isso mesmo, a promotora-chefe tinha mesmo de interpor um recurso contra a omissão da corte. Desta vez ganhou.

Um novo grupo de juízes do TPI ordenou que fosse iniciada uma investigação formal de eventuais malfeitorias praticadas não só pelos EUA, mas também pelo governo afegão e pelos Talibãs.

Importante: a investigação deveria cobrir não apenas crimes cometidos na guerra afegã, mas também em outros países, que tenham ligação com aqueles praticados no Afeganistão, tais como Romênia, Polônia e Lituânia.

Referiam-se ao programa de rendições especiais do governo Bush, que raptava suspeitos de terrorismo no estrangeiro e os transportava via aérea para “lugares negros” em outros países, onde a CIA podia tortura-los sem ser perturbada por grupos de direitos humanos e pela imprensa.

Depois de eleito, Barack Obama mandou suspender esse programa, mas negou-se a processar os envolvidos, alegando que o passado tinha de ser esquecido em favor da união de todos os estadunidenses – coisa que ele não conseguiu devido à oposição sistemática dos republicanos.

The Donald foi mais ativo na defesa dos norte-americanos que praticaram crimes contra o Direito Internacional.

Quando soube das intenções finais do TPI, ele entrou de sola, garantindo que nunca submeteria a soberania da América a “uma burocracia global não eleita e irresponsável”.

Mais que depressa, Mike Pompeo, seu mesureiro secretário de Estado, ecoou o chefe, chamando o TPI de: “uma instituição política irresponsável, mascarada para parecer uma corte legal”. E ainda anunciou que os EUA tomariam “todas as medidas necessárias” para proteger as pessoas norte-americanas da investigação”.

Como, por exemplo, restringir os vistos aos funcionários que viessem à América fazer investigações necessárias. Isso para início da conversa.

Ao contrário do que dizem estas duas figuras do folclore internacional, o TPI é uma instituição altamente respeitável, à qual aderiram 120 nações. Os EUA, a China e a Rússia ficaram de fora, pois, participando de vários conflitos, temem que seus soldados possam ser condenados por crimes de guerra.

Até hoje somente africanos integraram o rol de malfeitores alvos da justiça internacional, além de uns poucos eslavos, gente que os ínclitos ocidentais costumam olhar de lado.

Ao negar que norte-americanos sejam processados, Trump parece se basear em ideias bastante discutíveis:

1- atos de representantes dos EUA no exterior, mesmo sendo criminosos, gozam de impunidade. Convém não esquecer que a economia e as forças militares norte-americanas são as mais poderosas do mundo;

2- os soldados estadunidenses estão acima do Bem e do Mal. Sua participação em guerras externas é sempre norteada pela justiça e os interesses da comunidade mundial. Portanto, as normas do Direito Internacional não são aplicáveis quando eventualmente os atingirem.

Seja como for, impedir que seus soldados sejam investigados por possíveis crimes contra o Direito Internacional depõe contra a “maior democracia do mundo”.

Esperava-se que o America, first não significasse EUA acima das leis, mas seu defensor, em qualquer situação.

Donald Trump demonstra que estavam errados.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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