Correio da Cidadania

Israel nas mãos da lei

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Depois de impunemente violar direitos humanitários e leis internacionais durante dezenas de anos, graças à proteção norte-americana, Israel, por fim, poderá ser imputado.

Fatou Bensouda, procuradora-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI) quer realizar uma investigação formal de crimes de guerra praticados por Israel na Cisjordânia ocupada, incluindo Jerusalém Oriental e a faixa de Gaza.

Ela afirma ter encontrado evidências de violações das leis internacionais e humanitárias cometidas por autoridades israelenses, no seu exame preliminar da denúncia feita pelas autoridades palestinas em 2015.

Esse exame, obrigatório nos casos do TPI, deve ter sido extremamente cuidadoso, pois durou nada menos do que cinco anos.

A procuradora quer agora investigar em profundidade graves incidentes e respectivos autores na Guerra de Gaza, de 2014, na qual foram mortos 2,251 palestinos, sendo 1,462 civis, além de 67 soldados e seis civis israelenses (BBC News,21-01-2019) e nas manifestações junto à fronteira Gaza/Israel, em 1998/1999, onde soldados israelenses mataram 117 civis palestinos, ferindo 11 mil.

Seria ainda objeto das investigações as responsabilidades pela transferência de milhares de cidadãos israelenses para terras palestinas. Transferir cidadãos de um país para viverem em outro, sob ocupação, é proibido pelas convenções de Genebra.

O lançamento de foguetes em áreas civis de Israel por militantes do Hamas e de diversos movimentos palestinos e o uso de civis como escudos humanos também seriam devidamente investigados, além de outros eventuais crimes.

Antes de iniciar a investigação pretendida, Fatou solicitou que os juízes encarregados do caso fornecessem sua opinião sobre as questões jurídicas envolvidas. Espera-se que eles enviem suas conclusões nos próximos meses.

Tomando conhecimento do documento firmado pela procuradora-chefe, o premier Bibi Netanyahu, furioso, vociferou uma série de chavões, denúncias não provadas e ofensas contra Bensouda e o próprio TCI, acusados de viés anti-Israel.

Na verdade, Israel já se acostumara a encarar censuras por práticas do seu variado menu de transgressões das leis internacionais. O premier nunca se incomodou. Afinal, as censuras, ainda que graves, ficaram nisso.

Desta vez é diferente. Quem põe em risco a impunidade israelense é um tribunal internacional, fundado por quase todos os países do mundo. E que até agora nunca teve suas decisões contestadas com seriedade.

O TPI já julgou e condenou à prisão 36 chefes de governo e líderes africanos e um sérvio, implicado no massacre de bósnios. Más companhias para autoridades israelenses (o TPI pune pessoas, não países).

Para o governo do premier, é algo inaudito e escandaloso ser investigado num processo que pode resultar em condenações de autoridades à prisão e a perda de impunidade, que Israel vem gozando.

Deixando de lado as reações emocionais de Bibi e outros chefes israelenses chocados pela desagradável surpresa, vamos focar seus principais argumentos contra as investigações e as respectivas contestações palestinas.

Os argumentos de Israel são, basicamente, os seguintes: 1) o TPI não teria jurisdição sobre o caso, pois seus regulamentos estipulam que só Estados poderiam peticionar. E a Palestina não era um estado; 2) No dizer do furibundo Netanyahu, o pedido de investigação não passava de puro antissemitismo.

Quanto ao primeiro item, evitamos a análise jurídica; trazer apenas alguns fatos que depõem em favor da causa palestina.

A posição da Assembleia Geral da ONU, em 2012, conferindo à Palestina o status de Estado observador lhe deu o direito de intervir em questões privativas de Estados. Que, aliás, já exerceu diversas vezes.

Depois de livre do domínio otomano, com a queda desse império, a Palestina foi tratada como um Estado pelo Tratado de Versalhes, em 1919. Durou pouco sua soberania, não mais de um ano, quando foi transformada num mandato da Inglaterra.

Desde então, esteve sob ocupação do país mandatário até 1948, quando a ONU recomendou a partição da Palestina entre “Estados judeu e árabe independentes,” respectivamente, Israel e Palestina.

Como se sabe, na guerra de 1948, o exército de Israel tomou a Cisjordânia e Jerusalém Oriental dos árabes e as vem ocupando desde então. A ONU inutilmente tentou obriga-lo a sair, através de 8 resoluções do seu Conselho de Segurança, a partir da resolução 242, de novembro de 1967, determinando ser inadmissível “a aquisição de territórios pela guerra e pela força”. Mas os EUA vetaram qualquer sanção aplicável à situação ilegal.

A Palestina foi admitida no TPI, em 2015, como Estado-membro. Ninguém contestou.

Lembramos ainda que a razão de ser do TPI é garantir que nenhum autor de crimes internacionais ou humanitários escape impune quando seu país não tiver vontade ou força para processá-lo e puni-lo.

Ora, todo mundo sabe que militares ou civis israelenses rarissimamente são condenados por ferir, torturar ou assassinar palestinos. Nas guerras, então, isso nunca aconteceu.

Acusar Bensouda de antissemita é o tipo de chantagem que Bibi e acólitos usam contra todos que denunciam os abusos israelenses. O objetivo é propagar a ideia de que Israel e os judeus são a mesma coisa. Portanto, se você diz que Israel toma terras dos palestinos estaria acusando os judeus por esse condenável ato.

Adotando o mesmo raciocínio, o povo alemão seria corresponsável pelas brutalidades de Hitler. No caso particular de Bensouda, a jogada de Bibi é particularmente absurda.

Quando os palestinos solicitaram ao TPI a investigação do assassinato pelos comandos israelenses de 10 ativistas turcos no ataque ao Mavi Marmara, que levava mantimentos a Gaza, Bensouda, como procuradora-geral, negou-se a investigar esses atos. Alegou que o caso estava fora da jurisdição do tribunal, pois 10 mortos era pouco para caracterizar genocídio.

Foi a vez de os palestinos se enfurecerem. Houve quem perguntasse, ironicamente: quantos mortos são necessários para haver genocídio?

Naquela ocasião, longe de acoimar a procuradora de antissemita, Israel louvou sua imparcialidade e correção jurídica.

Pregar em Fatou Bensouda a etiqueta de antissemitismo seria como fazer o mesmo nos EUA que, em 2010, no relatório sobre direitos humanos do seu departamento de Estado informou que o milhão e setecentos mil árabes cidadãos israelenses enfrentavam “discriminação institucional, legal e da sociedade”. Piada sem graça.

Israel recebeu e continua recebendo dos ianques apoio político total, defesa na ONU e 38 bilhões de dólares em armamentos durante 10 anos. Sem falar que Bibi Netanyahu e The Donald são amigões, de usar a mesma escova de dentes.

O governo de Jerusalém não ficou nos protestos. Se as investigações forem em frente, deverá proibir o ingresso dos investigadores no seu país e na Cisjordânia ocupada.

Enquanto isso, a Autoridade Palestina e o Hamas, que governa Gaza, já deram permissão para que Fatou e colegas entrem e investiguem à vontade.

O Hamas declarou que tudo bem, não tinha medo. Justificou os lançamentos de foguetes contra áreas civis israelenses como formas de defender Gaza dos ataques de Israel nas várias guerras e conflitos que travaram. Seu alvo seriam objetivos militares, mas, por imprecisão de sua tecnologia, os mísseis caíram também sobre propriedades civis.

Izzat Rishq, importante dirigente do movimento, explicou: “Nós estamos sob ocupação, sob ataques diários, e nossos guerreiros estão defendendo seu povo. Esses foguetes objetivam parar os ataques israelenses e é conhecido que foi Israel quem começou esta e outras guerras anteriores”.

Fiel à fraternidade Israel-EUA, Mike Pompeo, secretário de Estado e papagaio de pirata de Trump, não deixou de jogar a sua pedra nos palestinos: “os EUA reiteram sua objeção a qualquer investigação ilegítima do TPI. Se o TPI prosseguir no seu caminho atual, nós emitiremos consequências”.

Quando Pompeo fala em “consequências”, leia-se “pressões”. Vai ser duro para Fatou e os juízes do TPI aguentarem o peso desse tipo de coisas que vem dos EUA, a maior potência do mundo e uma das mais agressivas, agora que é Trump quem dá as cartas.

Mesmo contando com essa superforça, Bibi quer mais. Os mais servis aliados de Washington foram mobilizados a agirem.

E a Austrália, a Hungria (do déspota Orban), a Áustria (governada por uma coligação de direita e extrema-direita), o Canadá (dependente do Nafta), a Uganda e o Brasil (seguidor de olhos fechados de Trump) e a Alemanha já enviaram ao TPI suas posições contra a investigação de Bensouda.

Surpreendeu a presença da Alemanha nesse rol de yes, men, ela que tem defendido as posições dos palestinos face aos desmandos de Israel.

Bem, como disse Joe E. Brown, em Quanto Mais Quente Melhor. “Nada é perfeito”.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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