Anexação, apartheid indiscutível
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- Luiz Eça
- 14/07/2020
Apartheid é o sistema de governo que pratica atos desumanos com o objetivo de estabelecer e manter a dominação por pessoas de um grupo racial sobre qualquer outro grupo racial de pessoas e de oprimi-las sistematicamente.
Ele vigorou na África do Sul entre 1948 e 1994.
Garantia à população branca todo o poder político e econômico, cabendo aos não-brancos - especialmente os negros, maioria da população - direitos civis mínimos. Eles não podiam votar, nem adquirir terras em quase todo o país, nem se casar ou ter relações sexuais com pessoas brancas. Eram obrigados a viver em zonas separadas, carentes de serviços públicos. Estavam sujeitos à prisão caso flagrados em bairros reservados aos brancos depois das 17 horas.
Quase todo o território (87%) era destinado aos brancos. Cerca de 3,5 milhões de negros foram expulsos à força e transferidos a 10 bantustões, enclaves supostamente autônomos, na verdade, controlados pelo Estado.
A Lei do Passe obrigava, sob pena de prisão, todas as pessoas negras a portarem um documento com informações que, além dos dados normais numa carteira de identidade, continham endereço, anotações do imposto de renda, ficha criminal e registros profissionais.
Pela Lei de Reserva dos Benefícios Sociais, locais públicos, como praias, ônibus, hospitais, escolas e universidades eram reservados para cada raça.
Nos anos 1970, por exemplo, a educação de cada criança negra custava ao Estado apenas um décimo dos gastos com estudante brancos. Cursar uma universidade era praticamente impossível para jovens negros.
Qualquer protesto público dos negros era reprimido brutalmente pela polícia, que tinha mãos livres até para matar. Como aconteceu no chamado “massacre de Shaperville”, quando numa marcha pacífica de 5 a 7 mil pessoas, os serviços de segurança mataram à bala 69 e feriram 136. Nenhum policial foi preso.
A comunidade internacional demorou, mas acabou reagindo contra esse vergonhoso sistema.
A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 1761, em 6 de novembro de 1962, condenando as práticas racistas do regime sul-africano e pedindo que todos os países-membros da ONU cortassem as relações militares e econômicas com a África do Sul.
A brutalidade do sistema impressionou profundamente populações de todo o mundo. Formou-se um movimento transacional de protestos, boicotando produtos sul-africanos, pressionando as empresas a se recusarem a investir na África do Sul e a comerciarem com esse país.
Em 1973, o Conselho de Segurança da ONU declarou o apartheid um crime contra a humanidade e, em 1974, a África do Sul foi suspensa da Assembleia Geral.
Enquanto, isso, a resistência dos movimentos negros, liderados pelo Congresso Nacional Africano, multiplicava suas ações contra o regime.
Pressionado interna e externamente, o governo acabou desistindo, decretou o fim do apartheid e marcou eleições, com participação de todas as raças, para 1994.
O apartheid ficou com uma mancha vergonhosa na história, criminalizado pela ONU e pelo Tribunal Penal Internacional.
O apartheid contemporâneo
Apesar da maciça repulsa internacional, ele ameaça voltar com o plano de anexação por Israel de 1/3 da Cisjordânia, incluindo a maioria dos assentamentos, e o Vale do Rio Jordão.
Seu criador, o premiê Netanyahu, declarou que os habitantes palestinos das regiões anexadas não terão direito de cidadania, nem mesmo de residência permanente.
O líder sionista quer que eles se mudem para os territórios deixados para um futuro Estado Palestino, que seria constituído por uma série de bantustões, não contíguos, limitados por assentamentos judaicos das áreas anexadas.
Observadores sustentam que o apartheid já existe em toda a Cisjordânia, há 50 anos ocupada pelo exército de Israel, pois os seus habitantes palestinos não têm direito de cidadania.
E não só isso enquanto os habitantes judeus da Cisjordânia dispõem de todo os direitos gozados pelos judeus de Israel, os árabes palestinos da Cisjordânia sofrem uma série de medidas opressivas que demonstram a precariedade das suas condições de vida.
“Além das áreas anexadas, o exército israelense continuará a exercer autoridade total – algo que os palestinos dizem, tem privado gerações dos seus direitos civis básicos (BBC, 25-06-2020)”. Como na parte do vale do rio Jordão a ser anexada, onde o governo israelense já declarou mais da metade da região uma zona militar fechada. Os habitantes palestinos terão de abandonar seus lares sempre que o exército for praticar manobras militares no local.
Sustenta-se que a verdadeira razão desta postura é expropriar as terras dos palestinos para serem anexadas a Israel e, posteriormente, se tornarem assentamentos judaicos.
Desde o século passado, Israel vem demolindo habitações e construções de fazendas na Cisjordânia, especialmente por falta de autorização para a construção, atingindo, muitas vezes, famílias palestinas que lá moram há gerações.
Entre 2010 e 2014, 2.020 palestinos requereram permissão de construções na área C. Só 33 – 1,5% – foram aprovadas (site da OCHOA, organização da ONU).
As demolições na Cisjordânia são ilegais perante o direito internacional. A Quarta Convenção de Genebra dispõe, no artigo 53, que ”qualquer destruição pelo poder ocupante de propriedades individuais ou reais, pertencentes a pessoas ou coletividades... É proibida, a não ser quando tais destruições são absolutamente necessárias às operações militares (o que raramente ocorre)”.
Para o Comitê Israelense Contra Demolição de Casas (ICADH), o objetivo real é expulsar o maior número possível de árabes das suas terras ou casas na Cisjordânia, substituindo-os por colonos judeus, tendo em vista futuras anexações.
Trata-se de limpeza étnica, crime de guerra que, num passado recente, condenou sérvios e croatas, e, há algumas dezenas de anos atrás, nazistas alemães.
O B’Tselem (organização israelense de direitos humanos) publica em seu site (08-07-2020) os números que demonstram a extensão desta manobra do governo de Jerusalém:
– Entre 2006 e junho de 2020, foram demolidas 1.580 moradias, deixando 6.880 palestinos sem teto;
– Entre 2012 e 2020, as demolições somaram 1.706 unidades, incluindo casas e construções de fazendas.
O ICADH afirma que nos territórios ocupados é quase impossível um palestino obter permissão para construir, tais as dificuldades opostas pelas autoridades, inclusive o alto preço cobrado pelas permissões.
Como se vê, atualmente, ao contrário dos cidadãos judeus, os palestinos não têm direitos civis básicos e sofrem discriminações pelo regime israelense, fatos que configuram plenamente o crime de apartheid.
Portanto, o regime vigente na Cisjordânia já seria de apartheid: dois povos governados por um Estado no mesmo espaço geográfico com direitos desiguais.
Com a anexação haveria apenas uma alteração, passando o apartheid de facto a ser apartheid de jure, imposto oficialmente.
Observadores mais rigorosos discordam. Para eles, hoje, na Cisjordânia sob ocupação, o apartheid é apenas temporário, como é teoricamente a permanência dos ocupantes (Israel), enquanto, após a anexação, o apartheid se tornaria permanente.
O fato é que quando Israel, como prevê Netanyahu, vier a negar oficialmente os direitos de cidadania aos palestinos sua categorização como Estado de apartheid será indiscutível.
E o regime sionista se tornará passível da condenação da comunidade internacional pela prática desse horroroso crime. Isso se ainda houver dignidade nos governos dos países dito civilizados.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.