Sanções no Nord Stream2: tratar a Europa como colônia pode custar caro aos EUA
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- Luiz Eça
- 12/08/2020
“Se não agirmos agora, em breve o PCC (Partido Comunista Chinês) irá corroer nossas liberdades e subverter a ordem baseada em regras que a nossa sociedade trabalhou tanto para construir (South China Morning Post, 28-07-2020)”.
Foi assim que o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, apelou para os povos democráticos seguirem a liderança norte-americana contra a “maligna” China.
Esqueceu-se de que seu país acaba de “corroer as liberdades e a ordem baseada em regras” em prejuízo dos países da Europa, em especial a Alemanha. Nada menos do que a livre iniciativa, a mais importante regra do capitalismo, foi violada pelos EUA para garantir que o gás liquefeito estadunidense vença o gás natural russo na disputa pelo mercado europeu.
O gás russo está chegando à Europa através do Nord Stream 2, um gigantesco gasoduto em fase de construção final pela estatal russa Gazprom, com a participação das empresas a Royal Dutch Shell Plc, a Germany’s Uniper SE, a Wintershall AG e a Energie AS, que financiaram 50% do projeto.
Com 1.200 km de extensão, através do mar Báltico, o Nord Stream 2 vai transportar gás natural da Rússia à Alemanha. Um ramal do gasoduto irá se projetar até a Turquia. Quando concluído, o Nord Stream 2 dobrará o suprimento de gás à Europa, garantindo 80% das necessidades alemãs.
Em 2017, Donald Trump, ansioso por garantir ao gás liquefeito norte-americano a liderança nas vendas à Europa, passou a assestar suas baterias contra o Nord Stream2, “smoking gun” (peça-chave) do gás russo.
Inicialmente, ele se apresentou como se pretendesse defender os interesses da Europa, e da Ucrânia, em particular, ameaçados pelo diabólico gasoduto russo.
Tomando as dores dos ucranianos, o morador da Casa Branca advertiu: como o Nord Stream2 iria desestabilizar o antigo gasoduto que passava pela Ucrânia, deixaria sem gás esse país desafeto do governo Putin, condenando seu povo a praticamente morrer de frio no inverno.
Angela Merkel contestou: o gasoduto russo poderia suprir de gás toda a Europa. Os ucranianos não seriam lançados aos cães.
Trump não se tocou, disparou mais uma acusação: o novo gasoduto seria uma arma mortífera do insidioso Putin para tornar as democracias europeias dependentes do gás russo, o que as forçaria a se curvarem diante do diktat do Komintern... Quer dizer, do Kremlin.
Não assustou os europeus, não os deixou convencidos (BBC,21-12-19). Afinal, era a palavra de um presidente estadunidense com a credibilidade da cloroquina num congresso internacional de epidemiologistas, que costumava se esmerara em mimosear com desaforos os líderes do Velho Mundo e torpedear acordos multilaterais.
Irritado com tanta incompreensão, The Donald apelou para o jogo bruto: o lançamento de sanções.
Orientados por ele, seus acólitos republicanos no Congresso, estranhamente apoiados pela maioria dos democratas, aprovaram uma lei alvejando o Nord Stream2 com ameaças de sanções que obrigariam as empresas diretamente envolvidas no projeto a se retirarem, impedindo sua conclusão.
As que não obedecessem seriam proibidas de entrar nos EUA e teriam bloqueados seus bens e valores no território norte-americano. Assustado, o grupo suíço Allseas, que trabalhava na instalação dos dutos do Nord Stream 2, rapidamente fugiu da raia.
Os empresários europeus vacilaram, mas não arregraram. Além de não quererem perder o dinheiro já investido, havia outros bons motivos para ficarem firmes.
A produção de gás das empresas da Europa Ocidental vinha caindo. O continente tornava-se cada vez mais dependente do gás importado. E o Nord Stream poderia suprir toda a região de forma segura, como também, e principalmente, com preços tentadoramente vantajosos.
Os consultores em energia da Wood Mackenzie acham que depois dos russos começarem o bombeamento do Nord Stream2, o preço do gás natural cairá 25% - um maná para vitaminar os orçamentos europeus.
O resultado seria fatal para o gás liquefeito dos EUA, que perderia sua competitividade no mercado da Europa. Chato para as empresas produtoras, mas são coisas da livre concorrência, pedra basilar dos regimes capitalistas democráticos.
Trump teria de se conformar, afinal, os EUA são os guardiães mundiais desse princípio, não é?
Na visão de The Donald, não. Parece que para ele e seus áulicos, a livre concorrência é um valor incontestável, sim, mas só quando favorece os interesses de Washington.
Em julho deste ano, o congresso aprovou e Trump assinou a lei de autorização da Defesa Nacional em 2020 (NDDDA), com emenda que implica na multiplica do número de empresas sujeitas às sanções aos projetos russos de energia.
A emenda atinge empresas envolvidas na construção da parte offshore (ao largo da praia) do gasoduto, entidades prestadoras de subsídios e seguros de navios para colocar tubos ou que possibilitam a adaptação ou atualização desses navios; qualquer entidade que providencie serviços necessários para testes, inspeção ou certificação da operação do Nord Stream2; atinge também os reguladores na Alemanha, que terão de aprovar o gasoduto (Argus Media, 03-07-2020).
As proibições atingirão 120 empresas, de 12 nações europeias. Segundo um porta-voz do Nord Stream2: “em tempos economicamente difíceis, as sanções bloqueariam investimentos de cerca de 800 milhões de dólares na finalização do gasoduto”.
Após a publicação das sanções, Mike Pompeo, secretário de Estado de Trump, fulminou as empresas participantes na construção do gasoduto com um brado ameaçador: “Agora, ou vocês caem fora, ou sofram as consequências!”
A reação foi diferente da que ele esperava, partindo em especial da Alemanha, principal beneficiária do projeto.
De um modo geral, arguiam que a ameaça de sanções contra companhias da União Europeia representava interferência dos EUA nos assuntos domésticos da região.
Os Estados Unidos de Trump estariam tratando os países europeus como se fossem colônias, praticamente proibindo-os de fabricar produtos que pudessem concorrer com os da metrópole.
Um caso claro de desrespeito à soberania. Como disse o ex-primeiro ministro alemão Schroeder: as sanções são “um ataque à economia europeia, uma inadmissível usurpação da soberania da União Europeia e da segurança energética da Europa Ocidental”.
Nesse sentido, Heiko Maas, ministro do Exterior da Alemanha, clamou: “A política europeia de energia é decidida na Europa, não nos Estados Unidos”.
Olaf Scholz, ministro das Finanças alemãs, considerou as sanções “uma severa interferência nos assuntos europeus e alemães. É tempo de a Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética”.
Entre muitas outras manifestações, citemos as do ministro austríaco do Exterior (“Entre parceiros de confiança, acreditamos em conversações diretas, não em medidas unilaterais”) e de Claude Kern, relator do Comitê do Senado para Assuntos Europeus (“É tempo de a Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética”).
Mais significativo foi o pensamento de Angela Merkel a respeito das consequências da controvertida ação. “Nós crescemos no entendimento de que os Estados Unidos queriam ser um poder mundial. Se os EUA querem agora renunciar a esse papel por sua própria vontade, teremos de refletir sobre isso com muita profundidade (Modern Diplomacy, 13-07-2020)”. *
Justo quando o governo estadunidense pede que, sob sua liderança, os países democráticos formem contra a China. Parece que desta vez Trump exagerou.
Os EUA podem pagar por isso.
*A Gazprom assumiu a conclusão do Nord Stream2. Como faltavam só 160km do projeto, o gasoduto deve ficar pronto em janeiro de 2021.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.