Agora, a vítima assusta o chefe do esquadrão da morte saudita
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- Luiz Eça
- 11/09/2020
Ações do esquadrão da morte saudita voltam-se contra seu líder. O horror mundial pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi não paralisou as missões mortíferas do chamado “Esquadrão Tigre”.
Poucos meses depois do crime praticado no consulado saudita de Istambul, um grupo de executores foi enviado ao Canadá para eliminar Saad al-Jabri, ex-figura proeminente no contraterrorismo saudita. Faziam parte do grupo experts em limpeza de cenas de crimes, com Mishal Fahad al-Sayed, que trabalhou com al-Tubanchy, o autor do desmembramento do jornalista Khashoggi, em Istambul.
Eles chegaram a Toronto portando vistos de turismo, mas foram barrados pela alfândega canadense, que desconfiou de suas confusas explicações. E, assim, tiveram de voltar a Riad, com o rabo entre as pernas.
Formado por 50 elementos, o “Esquadrão Tigre”, foi criado pelo príncipe Mohamed bin Salman (apelidado de MBS e filho do rei Salman), com o fim de sequestrar e/ou eliminar inimigos e concorrentes à pretendida ascensão principesca ao trono da Arábia Saudita. Quem dá as ordens é o próprio MBS, secundado pelo antigo conselheiro real, Suad al-Qahtani, o ex-chefe de inteligência militar, Ahmed al-Asiri, e Bader Asaker, assistente do príncipe.
Para evitar que suas malasartes se tornem públicas, o esquadrão esmera-se em não deixar vestígios. Por isso, suas ações são cuidadosamente planejadas e executadas. Por exemplo: usando venenos, forjando acidentes ou até desmembrando o corpo das vítimas - para serem facilmente enterradas, como foi feito na execução do oposicionista Kashoggi.
Uma das primeiras operações bem sucedidas do “Esquadrão Tigre” foi o assassinato do príncipe Mansour bin Moqren, vice-governador da província de Asir, cidadão da mais alta nobreza pois era filho de um ex-príncipe herdeiro.
Esta honorabile societá eliminou um juiz de tribunal saudita, Suleiman Abdul Rahman al-Thuniyan, injetando um vírus mortífero, quando ele estava num hospital fazendo um check-up.
A equipe saudita de ação rápida e letal também atuou nos casos de Rami al Naimi, filho do ex-ministro do petróleo, acusado de corrupção e repatriado à força da União dos Emirados Árabes, em novembro de 2017. E de Faisal al Jarba, associado a um membro da família real, que sumiu de seu apartamento na Jordânia. A família não sabe nem porque, nem onde está preso.
Em 2018, o “Esquadrão Tigre” participou na detenção e abuso sexual de 12 ativistas direitos feministas. O crime delas foi defender o direito de mulheres dirigirem automóveis.
Algum tempo depois, em 24 de junho de 2018, o príncipe Mohamed bin Salman proclamou esse direito deixando claro que isso se devia somente a ele e a mais ninguém. Viu-se, então, que a punição aplicada às ativistas fora causada por elas terem, audaciosamente, pretendido ter influenciado a decisão de MBS em favor da tão desejada conquista feminina.
O feito mais divulgado do “Esquadrão Tigre”, sob responsabilidade do seu chefe, foi o assassinato do jornalista Khashoggi, em pleno consulado saudita em Istambul, em 2 de outubro de 2018.
A responsabilidade de MBS foi inquestionavelmente provada, até a própria CIA concordou.
O “Esquadrão Tigre” não poderia ter ficado de fora. Cinco dos seus membros tiveram papel destacado no evento, inclusive Saud al Qatani e Aher Abdulaziz Mutrib, ambos assessores diretos do príncipe.
Como consequência, imenso clamor ergueu-se em todo o mundo, durante muitos meses, exigindo punições severas aos executantes e, principalmente, a quem ordenou o crime.
Mas o príncipe herdeiro ficava tão acima dos mortais que sequer foi censurado pelos governos do seu país ou mesmo dos países mais civilizados.
Al-Jabri, o antigo espião-mor refugiado no Canadá, teve o azar de se malquistar com o herdeiro do rei Salman.
Em 2015, no exercício de suas funções, Jabri recusou uma solicitação de MBS ao Mahabit (polícia secreta) para trazer da Europa, por meios não exatamente legais, um príncipe real que ousara criticar o rei Salman.
Nessa ocasião, bin Salman ainda não dispunha de poderes para forçar Jabri a obedecê-lo sem resmungar. Foi então, dizem, que ele teve a ideia de criar o “Esquadrão Tigre”, para resolver, sumariamente, problemas causados por elementos inconvenientes a suas ambições de mandar no país (Middle East Eye, 06-08-2020)
Sendo filho do rei Salman, MBS era tão querido que o papai lhe deu algo muitíssimo mais saboroso do que o filé mignon que Bolsonaro dá a seus filhos. Promoveu-o, em 2017, a príncipe herdeiro e ministro do Interior, desalojando o príncipe bin Nayef, ocupante desses altíssimos cargos.
Sobrinho do rei, Nayef tivera destacada atuação, organizando as forças antiterroristas da Arábia Saudita e as dirigindo na campanha de esfacelamento da Al Qaeda no país.
Para tampar a boca desse parente chato, o rei mandou que fosse colocado em prisão domiciliar, no próprio palácio real.
Incidentalmente, Jabri era o braço direito do príncipe Nayef. Resultado: também ele foi posto na rua.
Isso apesar de dispor das melhores relações com os serviços de inteligência dos EUA e do Reino Unido, países aliados, clientes e patronos do reino saudita. Na CIA e no MI6, o serviço inglês de espionagem (James Bond labutou lá), ele tinha ótimos amigos, que várias vezes agiram associados a esse superespião saudita.
O novo príncipe herdeiro reforçou as acusações contra Nayef, espalhando pelas mídias sociais que seu antecessor era suspeito de tramar um golpe contra o governo, além de ter problemas com drogas.
Anos depois, em 2020, o ex-príncipe herdeiro foi oficialmente acusado de traição, saindo páreo pela sucessão do rei Salman.
Bem antes disso, ainda em 2017, logo após seu chefe cair em desgraça, Jabri, temendo que sobrasse para ele, tratou de escapulir do país.
Uma vez no exterior, não se exilou nos EUA, apesar de sua camaradagem com a CIA. Donald Trump era amigão do rei Salman e filho, e Jabri, precavido, preferiu asilar-se no Canadá.
Desde a chegada, MBS não deu sossego ao fugitivo. O objetivo era claro: trazer Jabri para sua terra natal, onde poderia receber o tratamento com que amigos de adversários de MBS costumam ser contemplados.
Primeiro, agentes esquadrinharam os EUA e o Canadá para descobrir o paradeiro da antiga figurinha carimbada da inteligência saudita.
Logo a seguir, o príncipe procurou atrair Jabri, com promessas de que seria bem tratado à sua volta.
Como não pegou, foi a vez das ameaças. MBS enviou cartas particulares assustadoras. “Nós certamente pegaremos você”, informava uma delas.
Tipos estranhos eram vistos rondando a casa de Jabri.
E o governo saudita chegou a solicitar os serviços da Interpol na localização do exilado, alegando falsas acusações. Nada deu certo.
E não adiantou Jabri prometer várias vezes que jamais revelaria algo que prejudicasse os interesses do pai e do filho, reinantes na Arábia Saudita. O príncipe não abandonou a caçada.
Jabri, graças ao cargo do qual fora despejado, dispõe de informações altamente sensíveis, que deixariam em situação difícil a real dupla, como os meios adotados por eles para mergulharam suas ávidas mãos nos bilhões de dólares do fundo de antiterrorismo. Fontes anônimas mencionaram também mais trunfos de Jabri: segredos tremendos, inclusive a retirada mensal do rei Salman ser de 800 milhões de dólares (Middle East Eye, 10-09-2020) e os planos do filho real para chegar ao poder, eliminando concorrentes e criando o “Esquadrão Tigre” com o objetivo de facilitar sua escalada. Al Jabri também conheceria em detalhe o planejamento e execução do jornalista Khashoggi e a relação dos bens dos dois filhos do deserto.
Para pai e filho, Jabri é uma bomba-relógio que, explodindo, poderia mandar para o espaço sideral suas nobres figuras.
Sabiam que, para sua absoluta segurança, era preciso ou liquidar, ou recambiar o fugitivo para a Arábia Saudita, já que só mortos não falam. Mais recentemente, eles redobraram suas pressões.
Os dois jovens filhos de Jabri foram presos e levados para onde ninguém sabe, ninguém viu (Deutsche Welle,08-08-2020).
Seu irmão logo seguiu esse desagradável caminho. Aí, só restava a Jabri ousar uma autodefesa ativa.
E ele o fez, entrando com um processo em Nova Iorque, que acusa MBS de enviar um esquadrão da morte para tratar da sua saúde, nos EUA ou no Canadá.
Nesse processo, o ex-espião descreve as perseguições sofridas e pede que o governo norte-americano garanta sua segurança, explicando que levou seu caso à justiça dos EUA porque a conspiração contra ele “envolvia conduta substancial dentro dos Estados Unidos” e lembrando que fora sempre aliado seguro da CIA.
Acompanhava o documento uma série de mensagens pelo whatsapp, nas quais o príncipe MBS prometia “usar de todos os meios disponíveis para eliminar o dr. Saad” e contava detalhes de ações visando extrair informações da família de Jabri.
O lance do processo é claro: tornadas públicas a odisseia de Jabri e a ameaça que pesa sobre ele, o príncipe e seu pai teriam de se conter. Se insistissem com o “Esquadrão Tigre”, ou algo desse jaez, estariam confessando suas graves culpas ao tribunal da opinião internacional.
E aí seria demais para os governos soi disant amigos, que amam os sauditas pelas grandes compras (de armas em especial), feitas pelo reino do deserto. Teriam de se mexer para justificar os valores humanos e democráticos que todos eles pretendem defender.
Seja como for, partiriam das grandes potências declarações duras e até ações indesejáveis. Acho que haveria estragos nas relações internacionais da monarquia, causando lesões nos seus interesses externos e mesmo internos.
Provavelmente, al Jabri será deixado em paz, gozando as amenidades do Canadá.
Salman e filho podem ser implacáveis, mas não são bobos. Por ora, guardarão silêncio, deixando que o mundo esqueça o tenebroso episódio em que se envolveram.
Fizeram assim com o caso Khashoggi. As culpas principescas ficaram mais do que claras. E ele continua, impávido e colosso, sempre disposto a novas aventuras, para a desventura de pessoas, países e do Direito Internacional.
Há quem sustente que desta vez será diferente. Desta vez MBS e Salman foram pegos no pulo. E a vítima de sua fúria tem cartas na mão que podem deixá-los sem a roupa do corpo.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.