Trump em campanha para a eleição 2024
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- Luiz Eça
- 07/01/2021
O texto foi fechado antes da invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump, majoritariamente supremacistas brancos, que não aceitam a derrota eleitoral, em 7 de janeiro de 2021
Os estadunidenses chamam de “pato manco” (lame duck) seu presidente nos últimos meses do mandato, quando não terá mais tempo para fazer o que não fez durante todos os anos anteriores. Dele se espera um governo tranquilo, cumprindo o já estabelecido, sem inventar nada.
No caso do seu sucessor já ter sido eleito, o pato manco deve evitar atos que criem faits accomplis, “fatos consumados” que possam atropelar as ideias da nova administração.
A ética assim exige. Mas Donald Trump não é um lame duck ético. Sua gigantesca vaidade simplesmente não aceita perder seu trono no império.
A primeira reação à vitória de Joe Biden foi absolutamente irracional e disparatada. Declarou de forma retumbante que a eleição fora fraudada.
Lógico: para ele seria impensável que o povo não o tivesse escolhido.
Mais calmo, talvez com ajuda do Rivotril, ele continuou exigindo a recontagem de votos, mas adiou sua nova busca pelo poder para 2024, ano da próxima eleição presidencial norte-americana.
Últimos atos
Para recuperar a elevada posição que lhe fugia, seria preciso manter sua imagem viva e forte durante os quatro anos que antecedem a próxima eleição presidencial. Objetivo a ser alcançado somente com uma atuação marcada por atos impactantes, capazes de sensibilizar os corações e mentes dos eleitores.
A hora de começar a agir é agora, pois até 20 de janeiro (data da posse de Biden), é Trump quem manda nos EUA, com autoridade de pintar e bordar, mudando o mundo se for necessário, para convencer os norte-americanos a recolocá-lo na Casa Branca nas próximas eleições presidenciais.
Apesar da derrota e das ridículas denúncias de fraude eleitoral, ele conta com uma considerável base de apoiadores, os trumpistas de raiz, que o acham mais infalível do que o próprio Papa.
É muita gente. Pesquisa da Rassmussen, realizada no período 2017/18-2020, revelou que, para 61% dos republicanos, os democratas provavelmente roubaram a eleição do seu amado ídolo.
Grande parte desses fiéis seguidores são os evangélicos – partidários incondicionais de Israel, o povo escolhido por Deus, conforme o Antigo Testamento.
Daí porque Trump reafirmou sua condição de campeão da causa israelense, ao pressionar os países árabes a normalizarem suas relações com o regime sionista.
Feito digno de Hércules, já que, até agora, eles juravam jamais topar tal ideia enquanto Israel negasse independência à Palestina.
Graças à força do atual chefe do governo dos EUA, alguns desses países esqueceram seus compromissos com seus irmãos árabes palestinos para estabelecerem uma completa amizade com Jerusalém.
O principal beneficiário desta mudança radical é o parça Netanyahu.
Correndo desmedido perigo de derrota nas eleições e de prisão no seu julgamento por corrupção, ele se fortaleceu internamente como corresponsável pela transformação dos árabes hostis em fraternais aliados.
Com esse triunfo no Oriente Médio, The Donald é aplaudido como se tivesse de fato promovido a paz na região, levando os trumpistas de raiz a exaltações cívicas e deixando uma impressão favorável no íntimo dos demais norte-americanos, particularmente dos judeus-americanos.
Embora representem apenas 2% do total do eleitorado, eles costumam ser mais engajados politicamente do que a média dos habitantes dos EUA.
Geralmente, 85% deles comparecem às urnas, contra cerca de 50% do conjunto da população. Eles podem ser decisivos em estados onde se concentram, como Florida e Nova Iorque.
Com ações como a normalização, arrebatar a maioria dos votos de judeus-americanos, tradicionalmente pró-democratas, começa a ser um sonho possível para o atual morador da Casa Branca.
Não vamos esquecer dos muitos milionários e bilionários de ascendência judaica que privilegiam com doações as campanhas republicanas.
Motivados pelos últimos atos pró-Israel de The Donald, seus cheques tenderiam a ser ainda mais generosos, podendo, no devido tempo, engordar substancialmente a caixa da campanha Trump-2024.
Não foi de graça que os monarcas árabes traíram. À União dos Emirados Árabes, Trump concedeu a venda de caças F-35, o estado de arte nesse tipo de aviões, e de sistemas aéreos automatizados, um pacote bélico no valor de 23 bilhões de dólares.
Isso provocou protestos ardentes de senadores, mesmo republicanos como Randy Paul, que propuseram recomendações do Senado para o cancelamento do negócio.
Eles alegam que pelo seu comportamento recente (por exemplo: enviando armamentos para os rebeldes líbios do mercenário Haftar), os Emirados Árabes podem muito bem usar os F-35 de um modo que viole leis internacionais e estadunidenses. Sendo que o senador Murphy ainda ponderou: “uma venda tão grande e suas consequências não deveriam acontecer nos dias minguantes de um lame duck”.
Ligações perigosas
Sem contar que deixou indignados os eleitores israelenses da oposição a Netanyahu, que lembraram o compromisso dos EUA de não vender a países árabes armamentos tão poderosos que igualariam seu poder militar ao de Israel.
Nesse caso, em possível conflito no futuro (os cenários são imprevisíveis), a segurança israelense se veria ameaçada.
Em favor da normalização das relações com Israel, o governo Trump deu força ao Marrocos, reconhecendo a anexação do Saara Ocidental pelo governo de Rabat.
Nenhum país do mundo apoia essa anexação. Os EUA, outrora um defensor do direito dos povos de ter um país independente, passou a ser o único.
Mais de 80 outros países reconhecem o direito do povo Saarauí, os habitantes da região, à autodeterminação, sob a chamada República Árabe Saarauí, governada pela Frente Polisário, que luta pela independência desde 1973.
O governo de Washington sai sujo neste episódio, pois está dando força a uma situação de fato, que viola as leis internacionais, os direitos humanos dos Saarauí, além de resoluções da ONU e sentenças da Corte Internacional de Justiça, a qual repudiou a anexação marroquina como ilegal e injusta.
Com o Bahrein foi diferente. O país topou entrar no lance da normalização com Israel sem cobrar praticamente nada. Sunita, se sente assustado pela vizinhança do poderoso Irã, xiita como 70% da população do Bahrein, e os principais partidos da oposição.
Em 2011, a oposição xiita lançou uma manifestação que chegou a tomar a principal praça do país, exigindo igualdade de direitos e fim da monarquia.
Se o Bahrein fosse uma democracia, os oposicionistas conseguiriam, pois são maioria. Mas o rei do Bahrein preferiu outra solução.
Para colocar os rebeldes na linha, pediu e conseguiu que a Arábia Saudita enviasse soldados fortemente armados, os quais deram conta do recado com a habitual violência.
O Bahrein juntou-se aos países árabes islâmicos que se acertaram com Israel, em busca de proteção. Não saiu de mãos vazias, Trump incluiu na lista de terroristas o grupo xiita rebelde Saraya al-Mukhtar, que desde 2018 havia praticamente zerado suas operações.
Trazer o Sudão para o rebanho não foi fácil. O regime anterior dera abrigo a Osama bin Laden e cedera locais para o treinamento da al Qaeda, integrando com mérito a lista dos Estados promotores do terror, inimigos dos EUA.
Um golpe militar colocara novos personagens no poder. Eles até que topavam normalizar suas relações com Israel, mas exigiam que o Sudão fosse retirado da lista negra dos países terroristas, que, por essa caracterização nunca poderiam receber empréstimos ou investimentos. E bem que o combalido tesouro sudanês estava precisando de uma mão.
Deu trabalho para Trump dobrar resistências internas, que não viam no novo regime sudanês uma razoável garantia de bom comportamento daqui em diante.
Mas conseguiu. Teve de conceder ao governo de Cartum uma ajuda de 700 milhões de dólares e empréstimos somando outros 200 milhões de dólares. E um “escudo” que impedia quaisquer processos contra o Sudão, relativos a anteriores tropelias terroristas (AXIOS, 22/12/20220).
Isso não implica no cancelamento do processo movido por vítimas do atentado das Torres Gêmeas, que acusam ilustres sudaneses por presumíveis ligações com aquela barbaridade.
Para The Donald, a cereja do bolo de sua operação seria a Arábia Saudita, por sua riqueza em petróleo e liderança dos países árabes mais dóceis.
Ele tem se empenhado, através do secretário de Estado, Mike Pompeo, e de Jared Kushner, príncipe consorte de Ivanka, a princesa herdeira, em atrair a Arábia Saudita para o bloco dos novos amigos de Israel. Tem a seu favor o príncipe coroado Mohamed bin Salman, governante de fato do reino saudita e amigo íntimo do obsequioso Kushner.
Sucede que, embora tenha dado mãos livres para seu amado filho governar, em questões fundamentais, o rei Salman tem a última palavra. E ele valoriza a solidariedade árabe, e recusando-se a abandonar seu compromisso com a liberdade palestina. Sem ela, melhor esquecer relações normais com o regime sionista opressor.
Para preencher esta lacuna, Trump lança-se à conquista da Indonésia, de grande valor político, pois se trata do mais populoso país islâmico do mundo.
Mais uma vez ele deve estar abrindo a carteira.
De acordo com um alto funcionário da US International Development Finance Corporation, a Indonésia poderia desbloquear bilhões de dólares em financiamentos americanos adicionais, caso topasse ampliar seus laços com Israel (Bloomberg News, 22/12/2020).
Tanto Israel quanto a Arábia Saudita e os países islâmicos que atenderam a Trump, consideram o Irã um inimigo mortal.
Os EUA, também. A grande mídia e os políticos vêm desenvolvendo há muitos anos uma campanha implacável contra o Irã. Daí a aversão da maioria da população dos EUA a esse país.
Em 11 de novembro, na cidade saudita de Neom, Pompeo, Netanyahu e o príncipe bin Salman reuniram-se para discutir como sabotar a política externa de Biden na região, que se apresenta favorável à pacificação do barraco com o Irã.
Segundo foi informado ao Middle East Eye, por fonte diretamente ligada a um membro do trio, Netanyahu propôs pegar fundo, bombardear nada menos do que uma instalação nuclear iraniana.
Pompeo e o príncipe não concordaram, um ato tão retumbante poderia dar em guerra. Nesse caso, o saudita temia que sobrasse para seu país e o norte-americano porque o errático Trump ainda não se decidira por um empreendimento dessa grandeza.
Todos teriam aprovado uma escalada nos ataques ao Irã, cuja inevitável reação provocaria danos materiais e humanos nas forças militares dos três estadistas. Assim, os iranianos ficariam muito sujos junto ao povo estadunidense e Biden não teria condições de cumprir sua promessa de volta ao Acordo Nuclear do Irã, com cancelamento das sanções impostas pelos EUA.
Antes de Neom, tanto Trump quanto Netanyahu já estavam no meio de um programa de ações provocadoras.
Em janeiro de 2020, no início do período lame duck de Trump, ele ordenara o assassinato do general Suleimani, um herói para o povo do Irã, o que preocupou o Pentágono, pois equivaleria a uma declaração de guerra.
Mas o governo Rouhani soube esfriar os ânimos, lançou mísseis contra bases norte-americanas no Iraque, para satisfazer a ânsia de vingança do seu povo. E avisou previamente aos comandantes das bases para que pudessem colocar seus soldados em segurança, jogada que evitou mortes yankees e uma consequente e possível guerra.
Não se sabe até onde os três líderes chegaram na reunião. O que se sabe é que, quatro dias depois da volta do premiê israelense a seu país, Mohsen Fakhrizadeh, o reverenciado arquiteto do programa nuclear iraniano, foi assassinado numa estrada nos arredores de Teerã.
Ninguém duvidou que Israel estivesse por atrás disso. Os norte-americanos negaram qualquer participação, mas não dá para supor que não tivessem dado seu nihil obstat a essa ação terrorista.
Depois disso, milícias iraquianas patrocinadas pelo Irã lançaram mísseis (pouco eficazes) contra bases dos EUA no país, sofrendo as devidas retaliações.
Em 23 de novembro, uma milícia lançou uma barragem de mísseis que quase explodiu na embaixada norte-americana.
Caiu a ficha para os iranianos
Eles estão cientes de que Trump busca pretextos para atacar o Irã, criando um conflito que atrapalharia os planos de Biden de voltar ao acordo nuclear. Diante disso, o Irã procura evitar que The Donald tenha sucesso.
No dia seguinte ao lançamento do último ataque miliciano, o governo de Teerã enviou ao Iraque um dos mais importantes dos seus generais, Ismael Qaani, para instruir os líderes das milícias.
Um líder sênior presente à reunião contou ao Middle East Eye: “Qaani deixou claro que Trump deseja lançar a região numa guerra aberta para se vingar do seu oponente por ter perdido a eleição e não é do nosso interesse lhe dar qualquer justificativa para começar uma tal guerra (Middle East Eye, 24/11/2020)”.
Infelizmente, nem todas as milícias pertencem a facções pró-Irã. Várias são iraquianas xiitas e insistem em expulsar as forças norte-americanas do Iraque. É duvidoso que refreiem sua agressividade para atender aos apelos de Teerã, sejam quais forem as consequências.
A maioria delas está enfurecida porque, Abu al-Muhandis, um dos seus dirigentes principais, foi morto pelo mesmo míssil que matou o general Suleimain. Juraram vingança.
O Irã não tem como impedir que alguma dessas facções acerte as contas, infringindo perdas humanas aos EUA.
Enquanto isso, Trump não para de repetir que se um único cidadão de seu país for morto, a culpa é do Irã, que sofrerá terríveis punições. Essa retaliação pode não ser tão grande a ponto de provocar uma guerra.
Mas, no mínimo, levará o Irã a reagir de uma forma mais dura, capaz de o tornar odiado nos EUA.
Aí, Biden teria de esquecer seus planos de voltar ao Acordo Nuclear, suspender as sanções e amenizar seu relacionamento com Teerã. Forçar seu sucessor a mudar seus planos de governo é um pecado mortal para um lame duck.
Na sua ânsia por retomar à Casa Branca, Trump não hesita em cometer tais pecados.
Para quem passou quatro anos rompendo tratados, violando direitos humanos e leis internacionais, hostilizando aliados tradicionais, impondo a fome a países injustamente sancionados e até ordenando um assassinato, não tem problema.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.