Correio da Cidadania

Biden defende direitos humanos. Exceto quando Israel viola

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Netanyahu acusa TPI de antissemitismo por abrir investigação sobre crimes  de guerra – Monitor do Oriente
Demorou, mas o Tribunal Penal Internacional (TPI) decidiu em fevereiro último que tem jurisdição sobre territórios ocupados por Israel na Cisjordânia, estreito de Gaza e Jerusalém Oriental, desde 1967.

Atendeu a consulta da procuradora-chefe do TPI, Fatma Bensouada, em 2019, após investigação preliminar iniciada em 2015, concluiu haver indícios de crimes de guerra e crimes humanitários praticados por israelenses e palestinos desde junho de 2014.

A procuradora poderá agora investigar em profundidade esses fatos, para localizar os eventuais responsáveis e os processar no TPI.

O governo Netanyahu protestou veementemente contra a investigação, alegando que a Palestina não teria legitimidade para ser objeto do TPI, já que não seria um Estado, fato exigido pelo estatuto de Roma, que criou o tribunal.

Só que a Palestina é um Estado, assim reconhecida pela Assembleia Geral da ONU, em 2012.

O governo de Jerusalém não aceita e não vai cooperar com os inspetores da procuradoria. Indignado, o primeiro-ministro Netanyahu clamou: “quando o TPI investiga Israel por crime de guerra fake, isto é puro antissemitismo”.

Repetiu assim a tática muito usada por ele e seguidores para desqualificar todos os que denunciam os crimes israelenses. Pretendem com isso espalhar a ideia de que Israel e o povo judeus são a mesma coisa. Portanto, se você diz que Israel comete crimes de guerra, estaria automaticamente acusando o povo judeu desse ato.

Adotando-se o mesmo raciocínio, o povo alemão seria corresponsável pelos crimes de Hitler.

Não dá para pregar no TPI a pecha do antissemitismo. Fundado em 1998, por 120 países, o TPI recebeu novos signatários, chegando em 2014 a 136 países, sendo a maioria da Europa, quase todos das Américas, Oceania e África. Estados Unidos, China, Israel e Rússia ficaram de fora.

O TPI foi criado para processar indivíduos responsáveis por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crime de agressão a outro país. Sua competência se restringe a situações em que os Estados não têm força ou vontade de agir contra os transgressores.

Como Netanyahu e parças não apostam num resultado favorável, tentam melar o jogo, atacando a credibilidade do TPI, numa tentativa de desmoralizar seus juízes.

Não está pegando bem. A não ser os EUA (e Israel, claro) nenhum país contestou a imparcialidade e competência dos seus juízes, escolhidos pelos países da organização para fazerem bonito e assim contribuírem positivamente para a imagem de suas respectivas nações.

O PTI já julgou e condenou 36 presidentes e outros líderes africanos, além de um sérvio, implicado no massacre de cidadãos bósnios. Atualmente, estão sendo investigados crimes de guerra no Congo, Uganda, Sudão, República Central Africana, Quênia, Líbia, Costa do Marfim, Mali, Geórgia, Burundi, Bangladesh, Mianmar e Afeganistão.

Nunca houve críticas sérias às investigações, processos e sentenças. Bensouda pretende agora investigar em profundidade crimes e seus respectivos autores na Guerra de Gaza de 2014, na qual foram mortos 2,251 palestinos, sendo 1,462 civis, além de 67 soldados e seis civis israelenses (BBC News,21/01/2019) e nas manifestações pacíficas junto à fronteira Gaza/Israel, em 2018/2019, onde soldados israelenses mataram 180 civis palestinos, ferindo cerca de 11 mil (The Guardian, 03/02/2021).

Devem ser ainda investigados os responsáveis pelos assentamentos em territórios da Cisjordânia ocupada, para onde centenas de milhares de cidadãos israelenses foram transferidos, o que constitui crime de guerra segundo a ONU e a Cruz Vermelha Internacional.

Militantes do Hamas e outros movimentos também podem ser indiciados pelo lançamento de foguetes em áreas civis de Israel e por possível uso de civis palestinos como escudos humanos.

Os palestinos concordaram em serem investigados, conforme declarou Husam Zomlot, chefe da representação da Palestina no Reino Unido, que explicou: “Nós estamos comprometidos com a lei internacional, seus regulamentos e regras. Ponto final”. E, concluiu: “sempre quisemos que acabasse a impunidade no que se refere a Israel. Portanto, aceitaremos a lei internacional na íntegra e nos defenderemos”.

É de se crer que os crimes de guerra que poderão prosperar contra eles deverão ser os ataques de mísseis contra territórios israelenses, que já foram divulgados largamente por todo o mundo, sem causarem muita indignação, em parte porque fizeram raras vítimas, em parte porque seria a única forma de os palestinos poderem enfrentar os bombardeios, canhões e tanques de guerra de Israel. Quanto ao eventual uso pelo Hamas de conterrâneos como escudos, essa denúncia é de conhecimento público há muito tempo, dispondo de escassa credibilidade.

Ter alguns militantes condenados no TPI pelo crime de lançar mísseis em Israel de forma indiscriminada, atingindo civis, pesa pouco para os palestinos diante do que consideram certa a comprovação dos crimes de guerra israelenses de gravidade muitas vezes maior.

A radical oposição de Israel às investigações da procuradora Bensouda é um tanto sintomática.

Indica que Netanyahu e colegas têm bons motivos para estarem preocupados. O governo calcula que centenas dos seus cidadãos podem cair nas malhas da investigação do TPI (Reuters, 02/03/2021). Um dos mais proeminentes israelenses com possíveis contas no cartório é o próprio ministro da Defesa, o general Benny Gantz, que foi chefe do estado-maior das forças armadas na guerra de 2014, onde, segundo acusações, aconteceram inúmeras violências contra os direitos humanos e outros crimes de guerra que teriam sido cometidos por militares israelenses.

O jornal Haaretz reporta que o governo de Jerusalém planeja comunicar aos integrantes de uma extensa lista de oficiais de segurança e militares que, devido à grande chance de virarem réus do TPI, devem evitar viajar para o exterior para não se arriscarem a serem presos.

Sensível aos temores que perturbam seus parças de Israel, o secretário de Estado Anthony Blinken declarou que “os EUA se opõem firmemente e está profundamente desapontado por esta decisão (do TPI investigar Israel)”.

Depois de dizer que o TPI não teria jurisdição no caso, concluiu: “nós continuaremos a manter nosso forte compromisso com Israel e sua segurança, inclusive se opondo a ações que procuram atingir Israel injustamente”.

O interessante é que ele repete, praticamente, as mesmas palavras das declarações sobre o assunto do secretário de Estado de Trump, o notório Mike Pompeo: “nós nos opomos firmemente a esta e a qualquer outra ação que procure atingir Israel injustamente”.

Dá a impressão de que Biden estaria imitando a política de Trump em relação a Israel. A qual não se distinguiu nem de longe por uma política, ainda que extremamente leve, de defesa dos direitos humanos violados por Israel nos assentamentos construídos em terras tomadas aos palestinos, na anexação de territórios da Síria (com expulsão da população nativa da região) e nas demolições de milhares de casas palestinas e destruição de aldeias de beduínos, para citar só alguns exemplos.

Biden e sua coterie demonstram intenção de condenar infratores de direitos humanos, porém, de forma seletiva: Israel nunca será implicado. Faça o que fizer.

O novo presidente e o fiel Blinken, mais Trump e seu ring brother Pompeo costumam cantar em coro a melodia desafinada pela realidade da suposta perseguição contra Israel na ONU e organizações que criticam os numerosos e constantes destemperos do regime sionista de Jerusalém.

Os setores progressistas dos EUA e da Europa e membros de organizações humanitárias veem a investigação do TPI de outro modo. Diz Mathew Cannock, dirigente da Anistia Internacional em Londres:

“É uma oportunidade histórica para definitivamente pôr fim à impunidade generalizada (de Israel) que tem acumulado sérias violações nos territórios da Palestina ocupada por mais de meio século. E é um importante avanço pela justiça depois de décadas de não-responsabilização por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (The Guardian, 03/03/2021)”.

Outro aspecto a considerar é que negando a investigação do TPI, os EUA de Biden deixam os palestinos desprovidos de qualquer meio de resistência à ocupação de Israel, já que o terrorismo é inaceitável, a luta armada é improfícua e o BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) é condenado e penalizado por leis em 27 estados norte-americanos. Na esfera federal, os EUA e o próprio Biden o rejeitam, mas por enquanto não o criminalizaram.

Em termos práticos, para o governo Biden, os palestinos não teriam direto de lutar por sua independência, devendo conformar-se em deixar seu destino nas mãos inamistosas de Netanyahu ou de Naftali Bennet – maior adversário de Bibi nas próximas eleições, e ainda mais radical do que ele.

Considerando todas as reflexões aqui expostas, há uma pergunta que não quer calar:

De que vale a promessa de Biden na campanha eleitoral de colocar os direitos humanos no centro da política exterior dos EUA?

“A nação que dedica a outra constante ódio ou constante afeição é em alguns graus uma escrava. Escrava de sua inimizade ou de sua afeição, qualquer das quais é suficiente para desviá-la dos seus deveres e interesses”. (George Washington, primeiro presidente dos EUA e um dos Pais da Pátria).

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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