Correio da Cidadania

Sinais trocados de Biden ameaçam o renascer do Acordo Nuclear com o Irã

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Trump's economic havoc in Iran will take more than Biden to fix
A volta dos EUA ao Acordo Nuclear com o Irã de 2015 e a suspensão das sanções contra esse país passaram de esperança a certeza depois de Biden assumir a presidência dos EUA. Afinal, ele garantira várias vezes que corrigiria essa manobra do seu antecessor, Donald Trump.

Foi uma alegria efêmera.

Biden esclareceu que só cumpriria o prometido depois de os iranianos voltarem a respeitar o acordo de forma completa. Ou seja; reduzindo o enriquecimento do urânio aos 3,67% prescritos, que eles vinham aumentando em retaliações à retirada e às sanções de Trump, tendo já chegado a 20%, ainda muito longe dos 90% necessários para uma bomba nuclear.

O Irã rejeitou a imprevista condição de Biden. Afinal os EUA foram os culpados pela crise, ao saírem do Acordo Nuclear em 2018, lançando sanções para forçar o Irã a topar um novo acordo ditado pelo ex-morador da Casa Branca. Cabia a eles repararem o erro. Feito isso não haveria razões para o Irã deixar de voltar aos mandamentos do acordo, o que, afinal, era do seu interesse.

Lembre-se que esse acordo nuclear fora aplaudido por Joseph Borrell, o chefe das relações externas da União Europeia em termos calorosos: “para nós, os europeus, o Acordo Nuclear com o Irã é um triunfo da diplomacia e nós estamos muito orgulhosos dele” (Middle East Eye, 23/02/2021).

Quase todos os países civilizados concordaram com Borrell. E os EUA de Obama, a Alemanha, a França, a Rússia, a China e o Irã compartilharam a satisfação de terem criado uma solução que daria paz ao Oriente Médio por pelo menos mais 10 anos.

A permanência da política de Trump

Trump torceu o nariz para essa unânime aprovação, optou pela contramão taxando o Acordo Nuclear com o Irã o pior já feito pelos EUA – o que dá mais uma garantia de que se trata de um bom acordo.

Ao se retirar, o marido sortudo da bela Melania lançou sua “máxima pressão”, caracterizada por terríveis sanções visando destruir a economia iraniana e o bem-estar do seu povo, política fartamente condenada pelo Direito Internacional.

Se Trump não fosse o governante dos EUA, seria certamente acusado de crime de guerra.

Mas como ele não manda mais, os EUA, agora sob nova e democrática administração, que proclama o respeito às leis e aos valores americanos, deveriam apagar logo esta mancha suja na sua reputação, voltando ao Acordo Nuclear sem mais discussões.

Admita-se que ele prefira que o Irã volte a cumprir suas obrigações com o acordo inicial, como garantia total de sua boa-fé. Parece um excesso de desconfiança, mas daria uma satisfação aos aguerridos conservadores que pululam no Congresso.

Já considerar como conditio sine qua non que Washington só se pronuncie depois de Teerã, aí é preocupante.

O que haveria por trás dessa exigência que está paralisando o acerto de uma solução fundamental para o Irã?

Levanta uma lebre a frase de Biden durante a campanha eleitoral de que iria aproveitar a volta dos EUA ao acordo nuclear e do Irã ao enriquecimento de urânio permitido para tornar o acordo mais completo.

Teme-se que, uma vez cumprida em primeiro lugar a obrigação do Irã, os EUA só fariam sua parte caso se incluísse no acordo nuclear o fim do programa de mísseis balísticos iranianos e das suas ações militares nos países vizinhos – políticas já criticadas pelos EUA e aliados – mas essenciais à defesa do Irã.

Será que os EUA não usariam sua eventual retirada do acordo e das sanções para fazer uma chantagem?

Parece que Biden vacila.

Embora ele diga que vai cumprir o prometido, seus representantes na política externa esboçam novos “argumentos”: não basta que o Irã volte a enriquecer urânio nos níveis obrigatórios, tem também de assinar um novo acordo, mais rigoroso e duradouro, com severas restrições no seu programa de mísseis e o fim do financiamento e apoio militar o que os EUA batizaram de “terrorismo internacional.”

Sem meias palavras: ‘vocês aceitam a inclusão de nossas exigências num novo acordo nuclear ou continuam sob o fogo das sanções, temperadas com ameaças de guerras, coisas a que vocês não poderão resistir sempre’.

Declarações do novo secretário de Estado, Anthony Blinken, são reveladoras: “trabalhando com aliados e parceiros, nós procuraremos alongar e fortalecer as sanções do Acordo Nuclear e incluir outras áreas que nos preocupam como o comportamento regional desestabilizante e o desenvolvimento e proliferação dos mísseis” (Foreign Relations,10-07-20).

Novas menções às novas cláusulas insinuadas por Biden na campanha foram retomadas por Jake Sullivan, conselheiro do presidente em Segurança Nacional: “Gostaríamos de deixar claro que estabeleceremos alguns dos parâmetros e restrições no programa que caíram durante o curso dos últimos anos”.

Margem de manobra para Biden

Dias depois, a prestimosa Wendy Sherman, recém-nomeada subsecretária de Estado, trouxe fatos tranquilizadores a seus pares. Lembrou que, mesmo que os EUA acabassem se reintegrando no Acordo Nuclear com o Irã, poderiam conservar ativas muitas das suas anteriores sanções anti-Irã.

O que, convenhamos não passaria de um autêntico passa-moleque. Duvidamos que Biden embarque nessa jogada.

Não há nenhuma necessidade de sujar as mãos. As cartas já estão na mesa e lhe são totalmente favoráveis.

Ele não tem pressa em acabar o jogo. Por que teria?

Sanções implacáveis não estão caindo sobre sua economia e seu povo. Nenhum dos países vizinhos conspira contra a América. Seus inimigos mortais, Trump e seu bando de fiéis, não têm poder nem para atrapalhar sua digestão.

Já no Irã o quadro é outro. O país já aguentou um ano da portentosa “máxima pressão” de The Donald e não pediu água. Seu arsenal de reações e a resiliência do seu povo devem estar no fim.

Degustando uma taça de Romanée-Conti, Anthony Blinken, apresentou sua visão: “o Irã não está cumprindo uma série de compromissos em diversas frentes. E levaria tempo, caso ele tomasse a decisão de voltar ao comprometido e para nós avaliarmos se ele estava mesmo atendendo a suas obrigações. Nós ainda não chegamos lá. Para dizer o mínimo” (JNS, 01/02/2021).

Eleições devem fortalecer linha dura iraniana

O afável Blinken não disse que “séries de compromissos o Irã não está cumprindo em diversas frentes”. Ao que se sabe, somente uma transgressão, ao enriquecer urânio acima do limite convencionado.

Mas seu erro mais grave não é esse. Os EUA não dispõem de muito tempo para resolverem essa problemática questão.

Em 18 de junho, daqui a menos de 3 meses, o Irã vai realizar suas eleições presidenciais.

Em lugar do equilibrado e moderado Hassan Rouhani, deverá assumirá o poder um dos ferozes chefes conservadores, defensores radicais de tradições inconciliáveis com a modernidade.

Na última eleição, esse grupo elegeu larga maioria no parlamento, nada menos do que 2/3 dos membros.

Os moderados, independentes e reformistas, base do presidente Rouhani, que detinham 139 das cadeiras, hoje não passam de 56, enquanto os conservadores linha dura agora os superam com 220.

As principais razões da surpreendente verticalidade desta queda são duas:

1) O povo que em grande maioria elegera Rouhani para governar durante seus dois períodos, estava absolutamente decepcionado. O governo conseguira realizar muito pouco do seu programa de reformas.

Encontrou dificuldades extremas, provocadas pelas devastadoras sanções estadunidenses na economia do país e na vida diária da população.

Isso sem falar na escassa liberdade de ação do presidente concedida pela constituição iraniana, que não lhe ofereceu muito espaço para efetuar medidas inaceitáveis às forças retrógradas encasteladas no poderoso Conselho de Guardiães, no judiciário, na segurança e no parlamento.

E assim o desemprego, a carência de medicamentos essenciais, a elevada inflação de 35%, a carestia e os efeitos mortais da pandemia atingiram em cheio a vida dos iranianos.

Resultado do sofrimento e da perda da esperança, o governo Rouhani chegou a seu índice mais baixo: ridículos 9% de aprovação;

2) Outro motivo da derrocada da aliança reformista-moderada foi a ação do poderoso Conselho dos Guardiães, a quem cabe aprovar as candidaturas. Dominado por clérigos conservadores, o Conselho dos Guardiães dera seu obstat à grande maioria dos postulantes reformistas e moderados, enquanto recebia com amor e com afeto aos linha-dura que pretendiam acessar o parlamento para defender a volta do passado medieval.

Só para dar uma ideia: em Teerã, de longe o maior colégio eleitoral do país, 134 candidatos conservadores concorreram contra apenas 28 moderados, que escaparam da sanha reprobatória dos Guardiães. Com a parte mais lúcida do eleitorado ausente da eleição, a cidade registrou o índice de comparecimento mais baixo do país em todos os tempos: apenas 41%.

A partir das eleições, os adeptos de um relacionamento pacífico e até amigável com o Ocidente, especialmente com os EUA, ficarão falando sozinhos.

Biden não deve esperar palavras polidas e concessões racionais destes façanhudos fanáticos, que completaram seu domínio do poder, adicionando o executivo ao legislativo, judiciário, segurança e hierarquia religiosa onde já eram maioria.

Longe de se sentirem pressionados pela amarga situação do seu país, acham que eles é que devem pressionar os EUA. Veja só o que disse Mohse Rezaei, secretário do Conselho de Oportunidades do Irã: “temos de melhorar nossa diplomacia e incrementar o enriquecimento de urânio a 60%, porque é o único modo para nos ajudar a remover todas as sanções dos EUA” (IRNA, agência oficial iraniana).

Lembro que, pelo Acordo Nuclear, só poderia enriquecer urânio a 3,67%. Respondendo às sanções de Trump, Teerã chegou a 20%. Com os 60% propostos pela linha-dura, o país estaria próximo dos 90% necessários para fabricar uma arma nuclear.

Numa situação assim, nos EUA, os falcões republicanos e democratas, as associações pró-Israel e o próprio Estado de Israel, que hoje não admitem qualquer acordo com o Irã, ficariam ainda mais fortes.

Sob a influência destes grupos, Biden não teria como insistir em negociar com o novo governo iraniano e suas exigências agressivas.

Aí, nada feito.

O que aconteceria?

O negacionismo e as sanções de Trump continuariam norteando a política norte-americana na região.

O que seria ruim para Biden e pior para a paz porque os radicais de Teerã não tolerariam ver seu país e seu povo continuarem submetidos ao castigo impiedoso das sanções.

Essa distopia não é inevitável.

Biden vacila, talvez mantenha o impasse, apostando que as sanções forçarão o governo Rouhani a renegociar o Acordo Nuclear, com novos itens prejudiciais ao Irã.

Há sinais de que a opção da Casa Branca possa ser diferente.

É verdade que Biden deu força na política exterior aos radicais: o secretário de Estado, Blinken, a subsecretária Herman e o conselheiro de Segurança Nacional, Sullivan.

No entanto, nomeou como representante dos EUA nas negociações com o Irã o respeitado diplomata e experiente mediador político Robert Malley, um dos principais negociadores do Acordo Nuclear com o Irã de 2015. Indicado para este cargo pelo então presidente Obama, Malley teve atuação de destaque no processo de elaboração e discussão desse acordo.

Dezenas de experts em política externa e ex-secretários de Estado assinaram um manifesto aplaudindo a escolha do presidente.

Os grupos de direita rosnaram críticas.

Vejam o que deu no New York Times: “mesmo antes de Malley ser nomeado, os conservadores o acusaram de ser excessivamente acomodatício em relação ao Irã, baseado no seu currículo como funcionário sênior para os assuntos do Oriente Médio durante as administrações de Obama e Clinton. O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, um reconhecido opositor do acordo nuclear, escreveu num Twitter (21/02/2021) que a seleção de Malley seria “profundamente perturbadora”.

O novo homem de Biden na crise do Irã apressou-se em deixar bem claro que os EUA pretendiam resolver logo a questão das primazias recusadas, que ele considera secundária.

Ironicamente, declarou: “nós podemos disputar um jogo sobre quem vai primeiro”.

Depois, foi sério: “penso que qualquer um que está negociando isso sabe que nenhum lado vai ser o primeiro completamente. É preciso que haja algum acordo sobre combinação de movimentos, sobre sincronização. Estamos abertos para discutir isso, mas tem de ser discutido. Não vai acontecer simplesmente de forma unilateral, com um lado dando todos os passos e esperando”.

E Malley foi claro: a posição do seu governo é reviver o Acordo nuclear com o Irã e só depois iniciar negociações para tornar o acordo mais longo e mais forte. E, a partir daí, abordar outras questões com Teerã.

Malley terminou sua exposição, abrindo espaço para algo que o governo norte-americano raramente lembra que existe: “nós suspeitamos que haja assuntos que o Irã gostaria de colocar na mesa, que são importantes para os interesses deles, mas que deveriam ser discutidos” (Middle East Eye, 18/03/2021).

O novo representante de Biden deu provas suficientes de que se pode esperar justiça da parte dele.

O problema está mais alto: dá para confiar em Biden quando seus prepostos emitem sinais trocados sobre a volta dos EUA ao Acordo Nuclear do Irã?

As vozes dos congressistas republicanos e dos conservadores-democratas ecoam as exigências e ameaças israelenses pela alteração ou fim do acordo, mas dobrar-se a elas tem seus inconvenientes.

Biden estaria reafirmando seu apoio às sanções de Trump, condenadas pela maioria da opinião pública local e europeia, o que deixa os iranianos cada vez mais aferrados ao antiamericanismo.

Depois da vitória fatal nas eleições de junho, a linha-dura iraniana não iria aceitar ver seu país definhando progressivamente, sob ação da política agressiva de Trump, seguida por Biden.

O Irã não se limitaria a ataques modestos, episódicos e anônimos contra Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e bases norte-americanas. Suas retaliações seriam de alto impacto.

E as consequências, imprevisíveis.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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