Contradições dos EUA no Oriente Médio e na Europa
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- Luiz Eça
- 14/05/2021
Biden entrou em campo mostrando que viera para mudar radicalmente as políticas ultrajantes de Trump e mesmo de outros presidentes anteriores, que tentaram, mas pouco conseguiram, impor os valores norte-americanos (os mesmos das demais nações civilizadas).
Tratou de apresentar logo um plano com 1,9 trilhão de dólares para combater os efeitos destrutivos da pandemia nas classes médias e pobres, além de estimular a economia, incluindo medidas de elevado alcance social, como dar um cheque de 1.400 dólares à maioria dos estadunidenses, além de programas especiais para as famílias de baixa renda.
Logo em seguida, mais um gol de placa: Biden lançou um programa de 2 trilhões de dólares destinado à reconstrução e modernização das infraestruturas, que criará milhões de empregos e reduzirá déficits em serviços essenciais como estradas, pontes, aeroportos e redes elétricas, além de investir pesado no desenvolvimento tecnológico e nas energias renováveis.
Foi um começo de governo para nenhum progressista do Partido Democrata botar defeito. Até mesmo seu líder, o senador Bernie Sanders, aplaudiu de pé o desempenho do moderado Biden.
Na área da política externa, ainda há certos questionamentos. As promessas de tratar os países aliados como aliados – não como colônias, constrangidas à obediência até por duras sanções na era Trump – e de defender no país e no exterior o respeito aos direitos humanos, empolgaram os progressistas e liberais dos EUA e de outros países.
Só que ao se transformar esses tão democráticos quanto humanitários compromissos, em realidade, surgem nuvens escurecendo o céu de brigadeiro que se delineava.
O secretário de Estado, Anthony Blinken, ergue sua sofisticada voz para mostrar que dois mais dois podem ser cinco. E as sublimes posturas de Biden vêm sendo desenvolvidas, desrespeitando em alguns casos tanto os valores inquestionáveis da ética ocidental quanto os direitos humanos e preceitos básicos do Direito Internacional.
Europa
Vejamos, por exemplo, como foi tratada a soberania das nações no caso do NordStream 2, gasoduto de Gazprom, estatal russa, construído com participação europeia (especialmente da Alemanha) no seu financiamento e construção, representada por mais de 1.000 empresas de 25 países.
O NordStream 2 vai dobrar sua produção e garantir 80% do gás necessário à Alemanha, além de atender outros países europeus. Sendo bem mais barato do que o gás liquefeito dos EUA, o produto do novo gasoduto já está ganhando o apetitoso mercado europeu, alcançando 39% do consumo do Velho Continente, contra apenas 6% do gás norte-americano.
Fiel a seu America, first, Trump resolvera proteger os empresários do seu país, tentando forçar o fim da construção do NordStream 2, o que fatalmente elevaria as vendas das concorrentes norte-americanas.
Usou sua arma favorita: as sanções. As empresas europeias envolvidas no projeto teriam de se retirar, sob pena de jamais poderem negociar com os EUA.
Eufórico, o então secretário de Estado, Mike Pompeo, rugiu para os europeus: “agora, ou vocês caem fora ou sofram as consequências.”
A primeira perda sofrida pelos países atingidos, a maioria deles aliados de Washington, foi a sua soberania, graças a essa intromissão da Casa Branca nos assuntos particulares das empresas europeias.
Assustadas, diante da possibilidade de renunciarem aos altíssimos lucros que os negócios com os EUA costumam proporcionar, quase todas as empresas europeias fugiram, deixando a Gazprom praticamente sozinha na conclusão de 5% do gasoduto que ainda falta.
Ao assumir a Casa Branca, esperava-se de Biden que deixasse para lá a “solução” nada ética de The Donald. Claro, embora a Rússia não fosse aliada dos EUA, a Alemanha e a Europa são. E o presidente norte-americano havia prometido voltar ao tradicional relacionamento fraternal com os países da Europa. O que, aliás, estava cumprindo com a volta dos EUA ao Acordo de Paris do qual Trump se retirara porque ele dizia prejudicar os rendimentos das petrolíferas de Tio Sam.
Ledo engano. Blinken, o novo secretário de Estado, mostrou que, para a nova administração de Washington, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Não se deve necessariamente confundir o anunciado em emocionantes discursos de posse, com fatos concretos.
Ao se ocupar da questão do gasoduto russo, Blinken, curiosamente, fez a mesma colocação de Mike Pompeo, seu antecessor na malvista era trumpista (embora sem os mesmos arroubos de botequim):
“O Departamento de Estado reitera que qualquer entidade envolvida no gasoduto NordStream2 se arrisca a sofrer sanções dos EUA e deveria imediatamente abandonar o trabalho no gasoduto (CNBC, 18/03/2021)”.
Há um abismo entre a classe diplomática de Blinken e a grosseria mafiosa de Pompeo, mas os dois passam o mesmo recado aos alemães: ou você desistem do gás do NordStream2, optando pelo gás liquefeito norte-americano, mais caro e mais poluente, ou vão ver o que é bom para a tosse, punidos por sanções do arco da velha.
Em suma: cabe aos europeus sacrificarem seus interesses econômicos para garantir nossas vendas e lucros, sem o estorvo dessa às vezes incômoda livre concorrência.
Foi o próprio American, first de Donald Trump aplicado pelo governo de Joe Biden, sem tirar nem por.
E Blinken ainda adiantou que Biden estava estudando novas sanções para acabar com quaisquer decisões insubordinadas.
O secretário de Estado não contou com a reação dos tradicionalmente compreensivos amigos do Velho Continente.
Os protestos choveram, expressando a indignação dos líderes europeus ao se verem tratados como colônias, que devem subordinar seus interesses econômicos aos da metrópole.
Citemos apenas umas poucas demonstrações de indignação. Heiko Maas, ministro do Exterior da Alemanha, clamou: “A política europeia de energia é decidida na Europa, não nos Estados Unidos”.
Olaf Scholz, ministro das Finanças alemãs, considerou as sanções “uma severa interferência nos assuntos europeus e alemães”. E concluiu: “é tempo de a Europa afirmar seu poder. Ela não pode tolerar um tal ataque na sua soberania energética”.
E a grande amiga dos EUA (nos bons tempos de Obama), a própria Angela Merkel, maior líder da Alemanha e até de toda a Europa, somou com eles: “Vamos nos tornar dependentes da Rússia por causa deste segundo gasoduto? Minha resposta seria ‘não’, se diversificarmos nossas fontes ao mesmo tempo (Anadolu Agency, 08/02/2021)”.
A firme oposição da chanceler alemã não é algo que possa agradar ao presidente Biden. Especialmente se ele insistir em levar a cabo as ameaças, divulgadas em nome dele pelo secretário de Estado Blinken.
Seu anunciado amor ao multilateralismo exigia um relacionamento fraternal e igualitário com a aliada Europa, tão maltratada por The Trump.
Ao repensar a questão, talvez ele tenha lembrado da assustadora declaração de Merkel, quando Trump começou a sancionar o NordStream 2: “está na hora de a Europa tomar seu destino em suas próprias mãos”. Até agora, não se pensou mais no assunto, e o Nord Stream 2 está quase pronto.
Enquanto isso, Blinken continua a ameaçar quem atrapalhar os EUA, de alguma forma.
Turquia
Quando a Turquia, desdenhando o antimísseis Patriot, preferiu adquirir o antimísseis russo S-400, o mais avançado que existe, o governo democrata voltou a ameaçar a soberania de um país, por sinal aliado. Novamente, acompanhou decisões de Trump, que já sancionara esses atrevidos turcos.
Ao saber que o governo Erdogan pretendia comprar mais sistemas S-400, Blinken, ponderou, no tom ameno, como convém a um diplomata: “é também muito importante que daqui pra frente a Turquia... Evite compras futuras de armamentos russos, inclusive adicionais S-400”. Explicou que, em caso de desobediência, o governo Erdogan estaria sujeito às penas da lei norte-americana, que puniam países estrangeiros por comprarem equipamentos militares russos, em adição às sanções já impostas pelo governo anterior.
Esta bola fora ficou totalmente creditada ao secretário de Estado, já que Biden não se pronunciou a respeito. Posteriormente, o inefável auxiliar do presidente percebeu o mau efeito dos seus ukases e, em reunião de recrutamento de países para a cruzada contra a China, procurou livrar sua cara ao dizer que “os Estados Unidos não forçam seus aliados a escolher (entre eles e nós)”. Cada um decida como quiser. O que não impediu que ficassem implícitas antigas ameaças de Blinken: se você não decidir por nós, it’s your funeral...).
Israel e Palestina
Saindo do campo das relações privilegiadas com os aliados e o respeito às normas do direito internacional, entramos no comportamento dos EUA na luta pelos direitos humanos, em escala internacional, colocada no patamar mais alto dos comprometimentos de Joe Biden.
No Interim National Security Strategic Guidance (Guia Estratégico de Segurança Nacional), Biden promete “defender e proteger direitos humanos e enfrentar a discriminação, desigualdade e marginalização em todas as formas”.
Se essa promessa fosse levada a sério, os EUA de Biden estariam atuando em inúmeros conflitos contra Israel.
Vamos ficar em apenas um: a investigação do ICC (Tribunal Criminal Internacional) sobre as violações dos direitos humanos e crimes de guerra nos conflitos de Gaza de 2014, e em outras situações.
Fatou Bensouda, a procuradora-geral dessa entidade, depois de uma investigação preliminar vai agora investigar em profundidade esses crimes e seus respectivos autores numa guerra na qual foram mortos 2,251 palestinos, sendo 1,462 civis, além de 67 soldados e seis civis israelenses (BBC News, 21/01/2019) e nas manifestações pacíficas junto à fronteira Gaza/Israel, em 2018/2019, onde soldados israelenses mataram 180 civis palestinos, ferindo cerca de 11 mil (The Guardian, 03/02/2021).
As denúncias e documentos relativos a esses crimes são inúmeras e diversificadas, é inviável que sejam fake.
Os chefes do Hamas e de outros grupos contrários à ocupação da Cisjordânia palestina pelo exército israelense receberam bem a decisão do ICC, afirmando que saberão se defender e que as culpas de Israel nos crimes ficarão provadas.
Provavelmente, a responsabilidade de militares e autoridade civis israelenses em grande parte dos crimes de guerra e violações dos direitos humanos aconteceram. A melhor prova é que Netanyahu faz as mais ardentes condenações da investigação, adicionando a sovada acusação de antissemitismo, que costuma aplicar a qualquer censura a Israel.
Em todo o mundo, foi desenvolvida uma campanha jogando o ICC no inferno e colocando os militares e políticos israelenses como figuras acima de qualquer suspeita, cujas ações eventualmente violentas, seriam plenamente justificáveis.
Segundo afirmações do Guia Estratégico de Segurança Nacional, o documento acima citado, os estadunidenses deveriam receber a investigação como da maior importância para a sua luta pelos direitos humanos e pela legalidade internacional, mesmo atingindo seriamente a reputação dos aliados israelenses.
O documento conclui: “nós não daremos a nossos parceiros no Oriente Médio um cheque em branco para perseguirem políticas contrárias aos interesses e valores norte-americanos”.
Na prática, a palavra “valores” foi riscada do texto, em muitos casos. A palavra “interesses” continuou pertinente.
Como se sabe, as posições dos EUA têm sido sempre de favorecer Israel, salvo em circunstâncias raras. E Blinken, no pleno gozo do seu lado conservador e imperial, não teve vergonha de contrariar os compromissos mais caros ao mundo de valores éticos norte-americanos.
Em firmes palavras, condenou a decisão pelo Tribunal penal Internacional de abrir uma investigação formal nos crimes de guerra cometidos pelos militares israelenses e (vá lá) palestinos (Arab News, 04/04/2021).
Para que a causa dos direitos humanos seja preponderante em todo o mundo, é essencial que suas infrações e respectivos infratores sejam revelados e punidos, pelo menos oficialmente. A investigação e processo que revelem os crimes e seus autores são da maior importância para comover profundamente a opinião pública internacional e pressionar os países a se mexerem para dar um jeito numa prática que envergonha a humanidade.
Ao investirem contra o possível processo e condenação de militares e políticos israelenses, os EUA estão se tornando cúmplices dessas barbaridades. E o discurso de Blinken hierarquizando a luta pela defesa dos direitos humanos vira uma lamentável demonstração de hipocrisia do seu governo.
Sabe-se que é muito difícil enfrentar os republicanos que bloqueiam o Senado e seus próprios companheiros do partido democrata que são conservadores ditos moderados.
Antes de dizer que é impossível, algum presidente depois de Roosevelt já tentou?
Arábia Saudita e Iêmen
No trato do problema do Iêmen, causado pela invasão da Arábia Saudita, Biden começou bem. Depois de ordenar a reavaliação do relacionamento especial com os sauditas, suspendeu o envio de armamentos para a monarquia do deserto, o apoio às suas operações ofensivas e a retirada dos houthis da lista dos terroristas.
Para cumprir suas promessas de dar um fim na guerra, mandou um representante, Tim Lemderking, para negociar um acordo de paz. E, com o apoio do departamento de Estado (sob a autoridade de Anthony Blinken), o governo saudita apresentou um plano de cessar fogo, consistente em cessar fogo integral e na abertura parcial do bloqueio aéreo.
Foram os bloqueios do aeroporto de Sanaã e do porto de Hodeida que impediram (e seguem impedindo) a entrada na região dos combustíveis, alimentos e medicamentos necessários ao povo iemenita para viver, embora nas condições mais precárias. É o país mais pobre do Oriente Médio.
Enquanto isso, devastadores bombardeios sauditas vêm, desde 2015, devastando as infraestruturas do Iêmen.
E, assim este país tornou-se a maior catástrofe humanitária do mundo, segundo a ONU. Só para dar uma ideia da dimensão desta calamidade, atualmente, metade dos habitantes vive sob o estigma da fome e das doenças, sendo que as agências da ONU calculam que até 400 mil crianças deverão morrer neste ano se as condições de hoje não mudarem (The Nation, 01/05/2021).
“A fome chegou de modo visível no Iêmen. O bloqueio dos combustíveis pelos navios sauditas não está ajudando (CNN,11/03/2021).
Diante deste quadro terrível, os houthis recusaram a proposta saudita, afirmando que só firmariam um acordo de paz se os bloqueios aéreo e naval acabassem totalmente para que aviões e navios pudessem desembarcar os alimentos e o combustível necessários, a fim de se transportarem por toda a região, por caminhões parados, que atualmente formam gigantescas filas no porto de Hodeida.
Foi quando, Blinken interveio, como sempre defendendo a causa dos mais fortes. Declarou que “apelamos aos houthis para que aceitem esse compromisso... Para unir-se aos sauditas e ao governo legal do Iêmen dando passos construtivos em direção à paz”.
Já que o governo de Riad não se pronunciou diante da contraproposta dos houthis, eles continuam seus ataques contra a importante cidade de Marib, em vias de ser tomada, e a lançar mísseis contra instalações petrolíferas na Arábia Saudita.
Blinken não deixou de manifestar sua desaprovação, insistindo que os houthis deveriam interromper sua ofensiva contra Marib, como primeiro passo para a paz.
E Lerderking acompanhou o secretário de Estado, apelando para ameaças de sanções aos houthis caso não parassem de atacar Marib e de lançar mísseis na Arábia Saudita. Aproveitou para incluir o Irã na sua catilinária, considerando “significativo” e “letal” o jamais aprovado apoio do governo de Teerã às operações bélicas dos rebeldes.
Nenhum dos dois sequer mencionou as dezenas de milhares de bombardeios sauditas, um terço dos quais atingiu hospitais, escolas, moradias de civis e infraestrutura, lançando o país no horror da fome e na expansão de epidemias.
Já se passaram mais de três meses desde que Biden proclamou que iria dar um jeito para segurar os sauditas e resolver o drama iemenita.
E as coisas continuam sem novidades: os aviões sauditas bombardeiam as regiões dos houthis, que não param de lançar mísseis em alvos petrolíferos dos seus poderosos vizinhos e de atacar Marib.
Estas são apenas algumas das muitas contradições entre os elevados compromissos de Biden e sua concretização.
Na sua essência, ainda não se veem diferenças no mundo real em relação à maioria das atitudes de Trump nas suas relações com o exterior.
Biden prometeu muito mais do que seus antecessores. Esperanças existem, mas exigem pressa na tomada de medidas e posições essenciais.
Não vai ser nada fácil. Entre o discurso e a prática, há um longo e áspero caminho a ser trilhado.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.