Com Abbas presidente, os palestinos não precisam de inimigos
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- Luiz Eça
- 22/07/2021
O objetivo dos Acordos de Oslo de 1994, entre árabes e israelenses, era chegar-se à independência da Palestina em 5 anos, com garantia da segurança de Israel, através de um processo gradual.
A Cisjordânia foi dividida em 3 áreas, ficando a maior para Israel. Para administrar a parte menor (40% do total), criou-se a Autoridade Palestina com poderes limitados, sob controle das forças de ocupação israelenses.
Em 2005, Mahmoud Abbas, chefe do movimento Fatah, foi eleito presidente da Autoridade Palestina (AP). Posteriormente, o Hamas rompeu relações com Abbas que continua até hoje presidindo a AP, reconhecida como o representante da Palestina pelos EUA, União Europeia e a maioria dos demais países, além da ONU.
O governo de Abbas lembra o regime de Vichy, no qual parte da França era administrada por franceses durante a ocupação do país pela Alemanha nazista na 2ª Grande Guerra.
Como Petain, que governava em Vichy, Mahmoud Abbas colabora com os opressores, encarregando-se dos serviços públicos e, principalmente, da segurança da parte da Cisjordânia que governa.
Linha auxiliar do setor de segurança israelense, sua polícia persegue e prende ativistas do Hamas, fornece informações de inteligência ao serviço secreto de Jerusalém e faz abortar planos de grupos insurgentes para realizarem ações (pacíficas ou não) no território de Israel.
Não digo que Abbas seja um segundo marechal Petain. Várias vezes ele clamou em defesa da causa palestina, coisa que o ex-chefe do submisso regime de Vichy jamais fez.
Mas não deixa de ser um colaboracionista, pois usa sua força policial em apoio do exército de ocupação para reprimir grupos de palestinos que lutam pela independência da Palestina.
É muito conveniente para Israel. Os agentes palestinos são particularmente eficientes, conhecem o povo e a realidade do país, sabem lidar com eles.
As autoridades israelenses não precisam cuidar do recrutamento, treinamento, armamento e operacionalização dessa força policial, que fica por conta da AP.
E tudo isso sai de graça! A Autoridade Palestina paga todas as despesas da sua polícia em benefício de Israel.
Abbas acha sua colaboração essencial para provar aos EUA e Israel que, administrada por ele, uma região palestina vizinha, longe de ser fonte de terrorismos e outras turbulências, não ameaça a segurança israelense. Na verdade, ajuda a garanti-la.
Conforme a crença de Mahmoud Abbas, sem o apoio dos EUA e boa vontade de Israel, jamais haverá Estado palestino independente.
Com essa ideia na cabeça, ele tem feito muitas concessões, alternadas com protestos e críticas a posturas de Israel e dos EUA e até ameaças corajosas, como a retirada da Palestina dos acordos de 1994 e o fim da cooperação policial com Israel, além do corte de contatos com os EUA, em tempos de Trump. Infelizmente, ele voltou atrás rapidamente em alguns casos, enquanto em outros não passou de atirar word, words, words.
A partir da ascensão do Likud ao poder e, principalmente, de Netanyhau ao governo de Israel, ficou claro que o país não aceitava a “solução dos 2 Estados”, ou seja, a criação de um Estado palestino independente na Cisjordânia, acima da linha de 1967, ao lado do Estado de Israel. Lembro que essa solução é apoiada pelo Ocidente e rejeitada também por Bennett, o recém-eleito primeiro-ministro.
Expandindo constantemente seus assentamentos, o governo do Likud e do premier Netanyahu tornou impossível a “solução dos 2 Estados”. Adotando como objetivo a criação da “Grande Israel”, o regime pretendia anexar a maior parte da Cisjordânia, incluindo todos os assentamentos e deixando aos palestinos áreas espalhadas, algumas sem fronteiras entre si, formando verdadeiros bantustões.
Esperar que dos EUA viesse a defesa dos direitos do povo palestino só poderia resultar em desilusão. Aliados incondicionais de Israel, falta aos norte-americanos a necessária imparcialidade requerida pelo papel de mediador na questão palestina.
Negociações de paz se sucederam durante os 16 anos do governo Abbas. Nada foi conseguido pelos palestinos.
Hoje, a Cisjordânia segue totalmente ocupada pelo exército de Israel; Gaza continua sob bloqueio; os assentamentos israelenses se expandem; as demolições de casas palestinas e de aldeias beduínas prosseguem, bem como a repressão sistemática e violenta das manifestações de protestos contra a opressão do governo de Jerusalém.
Com o passar do tempo, os palestinos começaram a pensar seriamente em mudar de governo. E não apenas pela falta de resultados da quilométrica gestão de Abbas.
Sobram razões de peso
Aos poucos, Abbas foi dominando o legislativo e o judiciário. A parte da Cisjordânia sob sua administração tornou-se uma autêntica autocracia.
O executivo interferia constantemente nas decisões do parlamento, o qual nunca se reunia para aprovar leis. Para acabar com essa ficção, Mahmoud Abbas, em dezembro de 2018, dissolveu o parlamento. Como disse Ghassan, membro do parlamento eliminado: “O poder executivo está se livrando das leis e das liberdades e as substituindo pelas suas próprias leis (Middle East Eye, 15-02-2019)”.
Completando a estratégia autocrática, a independência não é um requisito no judiciário local (Council of Foreign Relations, 05/04/2018).
Sem os freios legais, a corrupção atinge altos níveis. Em relatório especial, em dezembro de 2013, o Middle East Monitor informou a respeito das travessuras governamentais: “pessoas influentes em altas posições foram beneficiadas por taxas e isenções alfandegárias ilegais. O total dos recursos perdidos é enorme, reportagem investigativa documentou 8 casos de funcionários privilegiados, sendo que, somente em 2017, membros desta honorabile societá importaram carros de luxo, roubando do estado 357.600 dólares, em dispensas ilegais do pagamento de taxas”.
Tendo bombardeios de Israel destruído o único aeroporto palestino, em Gaza no ano 2001, o governo da AP mudou a companhia aérea Palestina Airlines para o Egito, de onde não partiu nenhum voo até hoje. Mesmo assim, o Ministério dos Transportes lhe destina verbas orçamentárias. Onde foram gastas, ninguém sabe, ninguém viu, pois o governo é omisso nessa questão.
Em março deste ano, as poucas vacinas contra Covid-19 de que a Autoridade Palestina dispunha foram distribuídas a dirigentes do partido de Abbas e a parentes dos principais chefões da região.
A liberdade de imprensa é extremamente limitada. Investigação do Human Rights Watch descobriu em registros médicos e documentos de processos mais de duas dezenas de casos de pessoas que foram “detidas sem razões claras, além de terem escrito um artigo crítico ou ter feito um post no Facebook ou de pertencer ao grupo errado de estudantes ou movimento político”.
Elas foram presas por prazos entre alguns dias e algumas semanas. Segundo seus advogados, o objetivo das autoridades era punir os atrevidos e os desestimular a posterior ativismo.
No vazamento dos chamados Panama Papers, verificou-se que Abbas possuía 1 milhão de dólares em cotas de uma companhia offshore associada à Autoridade Palestina. Como o presidente achava justo dar filé aos filhos, um deles, Tareq, também participava desta suspeita operação.
Enquanto se sucediam as ações de Abbas, covardes diante de Israel, e ditatoriais diante do seu povo, o Hamas, embora perseguido, foi ganhando novos adeptos. E a oposição no próprio Fatah ganhou força.
O jeito de Mahmoud Abbas foi energizar seu mecanismo de repressão.
Para conservar seus súditos na linha, ele criou um frondoso aparelho de segurança, com agentes dispostos a tudo. Atualmente, este belicoso setor conta com 145 mil funcionários, consumindo 1 bilhão de dólares em despesas gerais. Ou seja, pouco menos de ¼ dos 3,9 bilhões de dólares do orçamento nacional, o mesmo valor do total somado das verbas destinadas aos ministérios da Educação e da Saúde.
No período 2018/2019, de acordo com a Human Rights Watch, a AP prendeu mais de 1600 pessoas somente em manifestações pacíficas, críticas ao governo e ataques na mídia social (Middle East Eye,09-07-2020)”.
Os métodos adotados no interrogatório de suspeitos não teriam grandes chances de serem aprovados pela Comissão de Direitos Humanos da ONU.
O Human Rights Watch revelou que os dedicados policiais costumam sistematicamente abusar de espancamentos, bastonadas nos pés e uma forma de tortura chamada de shabel, na qual os presos, sentados em uma cadeira estreita, são obrigados a torcer o corpo, ficando numa postura contorcida durante muito tempo, o que provoca dores fortes sem quase nunca deixar marcas.
O Adalat – ONG de advogados defensores dos direitos humanos – narrou torturas sofridas por ativistas críticos de Mahmoud Abbas: os policiais “começaram a bater em todas as partes dos corpos deles, chocando suas cabeças contra paredes e portas, ferindo detentos, aterrorizando-os e quem ousasse levantar a cabeça ariscava-se a levar mais pancadas. De acordo com declarações juramentadas, o chão da sala estava coberto de sangue oriundo dos espancamentos”.
Nesse quadro de tirania, é natural que os palestinos começassem a exigir eleições para acabar com os 16 anos de governo Abbas.
O presidente resistiu, mas, tendo de enfrentar até reclamações crescentes no Fatah, acabou cedendo e marcando eleições parlamentares para maio e presidenciais para julho.
Logo suas fantasias de liderança popular se dissiparam: as pesquisas mostravam vitórias dos dissidentes do Fatah e do rival Hamas na eleição para o parlamento. Por sua vez, sua derrota no pleito presidencial parecia provável. Hanyeh, do Hamas, e Mavran Barghouti, ex-membro do Fatah, recebiam maior número de declarações de voto do que ele.
Abbas reagiu: aproveitando a recusa de Israel em permitir votações de palestinos moradores de Jerusalém, adiou ad infinitum as eleições. Alegou que, havendo eleições sem os votos dos palestinos da cidade santa, estaria automaticamente renunciando à histórica reivindicação do seu povo à parte oriental de Jerusalém.
Foi mal.
Piorou quando Abbas prendeu dezenas de ativistas que promoveram ruidosas manifestações contra seu débil comportamento na guerra de Gaza, exigindo eleições para a Palestina livrar-se o mais rápido possível do seu presidente.
Foi nesse clima de explosiva turbulência que, em 23 de junho, a polícia prendeu Nizar Nabat, conhecido autor de vídeos satíricos, acusando Abbas de corrupção. O audacioso oposicionista era seguido no Facebook por mais de 100 mil pessoas. Fora candidato independente a vereador nas eleições canceladas em abril. Pretendia candidatar-se de novo, em futuros pleitos.
Em emissora de rádio, um primo do falecido narrou que cerca de 25 agentes de segurança invadiram a casa onde Nizar estava, quebrando portas e janelas, batendo na cabeça dele com bastões de ferro e lançando sprays de pimenta nos olhos da vítima. Nabat foi então arrastado até uma viatura sob uma chuva de socos e pontapés. Espancado novamente na Polícia, ele se sentiu mal e, levado a um hospital, não resistiu aos ferimentos e morreu.
Logo que a notícia de sua morte se espalhou em Ramallah, reuniram-se centenas de pessoas e marcharam em direção à sede da Autoridade Palestina, gritando “O povo quer a queda do regime” e “Abbas, você não é um de nós. Pegue seus cães e vá embora”.
A polícia interveio brutalmente, lançando-se contra os manifestantes com porretes, balas de borracha e gás lacrimogêneo, secundada por grupos de furiosos capangas, membros fanáticos do Fatah. Esta horda, segundo repórteres do New York Times se excedeu, atacando inclusive mulheres e crianças com pedras, golpes de bastões, mastros de bandeiras e socos, além de tomar celulares dos suspeitos de filmarem as cenas.
As demonstrações de protestos aconteceram em toda a região. Durante 5 dias, repetiram-se em Ramallah, e também em Hebron e Belém.
Na área internacional, a repulsa à violência da Autoridade Palestina foi veemente. A União Europeia e até mesmo os EUA, financiadores do regime Abbas, enviaram protestos. O departamento de Estado norte-americano foi incisivo: “Temos sérias dúvidas referentes às restrições da Autoridade Palestina ao exercício da liberdade de expressão pelos palestinos e as violências contra os ativistas e organizações da sociedade”.
As coisas não vão ficar assim
A população exige que novas eleições sejam marcadas logo.
É exatamente o que Abbas e os grupos dominantes no Fatah não querem de modo algum.
Os dados da pesquisa PSR revelam que 72% dos palestinos são favoráveis a eleições parlamentares e presidenciais já; 41% dizem preferir o Hamas, 30% o Fatah, 12% um terceiro grupo e 17% estavam indecisos. Numa disputa pela presidência, Ismail Hanyeh, do Hamas, venceria Mahmud Abbas por 59% contra apenas 27%, mas perderia para Mavran Barghouti (candidato independente) por 51% versus 42%
84% justificaram sua posição anti-Abbas por acreditar que seus 16 anos no poder estão marcados por corrupção e muitas queixas de desgoverno e nepotismo.
Esta pesquisa foi realizada entre 9 e 12 de junho, portanto antes do assassinato de Nabat e dos protestos generalizados que se seguiram, violentamente reprimidos pela polícia, o que certamente fez crescer a rejeição ao regime de Abbas.
No momento, estima-se que o prestígio do Hamas, dos independentes e de Barghouti tenha crescido ainda mais, enquanto que o do chefão do Fatah deve estar caindo vertiginosamente.
Mavran Barghouti é uma figura à parte no mundo político palestino, admirado e apoiado por integrantes de todos os movimentos revolucionários que lutam pela independência.
Atualmente, ele está preso em Israel, cumprindo 5 penas de prisão perpétua. Barghouti liderou as duas intifadas, movimentos agressivos de todo o povo palestino contra o domínio de Israel.
Sua posição era bem conhecida: “Eu... me oponho fortemente a ataques contra civis em Israel, nosso futuro vizinho. Eu ainda procuro coexistência pacífica entre os igualmente independentes Israel e Palestina, baseada na retirada total dos territórios palestinos ocupados em 1967”.
O que não impediu Israel, em 2002, de sequestrá-lo em sua casa, no meio da noite, e submetê-lo a processo no qual foi condenado a 5 penas de prisão perpétua, decisão contestada por observadores “convictos de que o veredito não terá legitimação porque foi ditado muito mais pela intensa pressão midiática e interesses políticos do que por rigorosa aplicação dos procedimentos, respeitando a integridade do réu e seu direito de defesa (Interparlamentar Union- archive.ipu.org)”.
Para Mavran Barghouti, a solução da crise palestina não são nem as ações armadas do Hamas, nem a busca do apoio do Ocidente, especialmente dos EUA, pregada por Abbas e parte do Fatah, mas sim a resistência civil.
Barghouti defende o fim de toda cooperação dos palestinos com Israel, incluindo o não cumprimento de leis ou decisões de Jerusalém ilegais perante o direito internacional; a colaboração com o serviço de segurança de Israel no controle e repressão dos movimentos insurgentes; boicote total de produtos, instituições e comércios israelenses; manifestações de protestos; bloqueios de estradas; denúncias internacionais das crimes do regime sionista.
A situação está difícil para os principais atores do exterior. Israel, EUA e Europa não aceitariam o Hamas governando a Palestina por considerá-lo terrorista.
Israel inclui Barghouti entre os indesejáveis porque, caso ele atue com eficiência, poderia conseguir uma boa imagem internacional e assim apoio à causa da independência, ameaçando o projeto do Grande Israel.
Os EUA e a Europa não confiam muito em Barghouti. Seja como for, temem que Israel lance mão de medidas ilegais e lesivas aos direitos humanos contra esse perigoso adversário, o que exigiria uma contestação mais forte dos países do Velho Mundo, provavelmente desagradando a Biden.
O presidente norte-americano também prefere Abbas, ou talvez alguém do Fatah alinhado com ele. Seria uma alternativa ruim, porém melhor do que mudanças capazes de levar Israel a agir belicamente, requisitando o apoio estadunidense para ações possivelmente contrárias aos direitos humanos.
Biden não deve estar tranquilo. Com Barghouti no poder, o risco é que suas decisões se tornem irretocáveis, tirando o presidente de sua zona de conforto.
Recentemente, ele jurou amizade incondicional a Rivklin, ex-presidente de Israel, e a Lapid, o ministro do Exterior do novo governo, que foram aos EUA solicitar novas garantias do amor da Casa Branca.
Por outro lado, convém a Biden não assinar em cruz toda e qualquer decisão do primeiro-ministro Naftali Bennett, levando em conta o passado de radical aversão aos palestinos desse cidadão.
E Biden contou com o voto unânime dos democratas progressistas na vitória contra Trump.
Talvez não valha à pena perder os adeptos desta tendência, que já são muitos e tendem a crescer muito mais.
Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.