Correio da Cidadania

Assange, herói ou vilão?

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Créditos da foto: Espen Moe / Wikimedia Commons
 
O WikiLeaks foi criado em 2007, por Julian Assange, com o fim de tornar públicos fatos ilegais e mesmo criminosos que os governos mantém ocultos.

Em 2010, através de jornais como o The Guardian, o Washington Post e o New York Times, ele provocou escândalo internacional, revelando centenas de milhares documentos, vídeos e telegramas que mostravam violações dos direitos humanos e ações irregulares praticadas pelos serviços de segurança, o exército e a diplomacia americana nas guerras do Afeganistão e do Iraque.

Nos anos seguintes, o Wikileaks continuou levando ao público fatos de alta gravidade, classificados como secretos pelas autoridades americanas.

Talvez o mais chocante é um vídeo, gravado na guerra do Iraque, no qual um helicóptero americano alveja um grupo de iraquianos, que conversavam pacificamente numa praça. O áudio mostra que os tripulantes pareciam muito alegres. Para eles, matar 11 adultos pacíficos, entre eles dois jornalistas da Reuters, e 3 crianças não passava de um entretenimento.

Em 2012, o WikiLeaks apresentou fotos de iraquianos suspeitos sendo submetidos a espancamentos e humilhações vergonhosas na prisão militar americana de Abu Ghraib.

Em 2015, o WikiLeaks publicou milhares de documentos sigilosos provando que a NSA, a Agência Nacional de Segurança dos EUA espionavam chefes de Estado europeus, inclusive Merkel, da Alemanha e Macron, da França, tradicionais aliados de Washington.

Revelados pelo WikiLeaks, 779 relatórios dos Arquivos Guantánamo mostram que 150 inocentes foram mantidos em confinamento durante anos na tristemente célebre prisão e documentam torturas e outras brutalidades ali sofridas por 800 homens e crianças.

Diante do choque causado pelo WikiLeaks, o então presidente Obama ordenou investigações. Mas ficou nisso pois decidiu não processar Assange para evitar infringir a primeira emenda da constituição, que protege a liberdade de imprensa.

Seu sucessor, Donald Trump, não tinha os mesmos escrúpulos. Ele e seus próximos perceberam que os fatos expostos pelo WikiLeaks tinham aviltado a imagem dos EUA. O rei estava nu. E pior, a obra de Assange ameaçava impossibilitar a conveniente política de esconder fatos que pegariam mal na opinião pública.

Assim, em 23 de maio de 2019, um júri em Virginia (EUA) indiciou o australiano em 18 acusações, inclusive por violações da Lei de Espionagem.

Enquanto isso, ele vinha sendo processado na Suécia. Ao saber do seu indiciamento nos EUA, sentiu que, caso fosse preso, os americanos pediriam sua extradição, ao que o governo direitista sueco atenderia sem pensar duas vezes.

Assange não tinha dúvidas: na América seria tratado com o rigor devido a um “inimigo da pátria.”

Fugiu então para Londres, onde sua deportação foi solicitada pelo governo sueco. Se os tribunais aceitassem, ele teria de voltar ao país escandinavo e de lá enviado aos EUA, já que esse país certamente iria solicitar que fosse extraditado.

Novamente, Assange teve de fugir, desta vez para a embaixada do Equador, em Londres.

Anos depois o processo sueco contra Assange foi cancelado, mas ele ainda não estava livre pois o Reino Unido o condenara a prisão (curta) por ter faltado a audiência.

O novo governo equatoriano, direitista, autorizou a polícia inglesa a prendê-lo. Passou mais de 2 anos confinado, desta vez numa cela. Incansáveis no seu furor, Trump e seus comparsas entraram com o esperado pedido de extradição, perante a justiça da rainha Elizabeth.

As acusações eram espionagem pela divulgação de 700 mil documentos secretos dos EUA e colaboração prestada ao analista de inteligência, Bradley Manning, para hackear mensagens e documentos oficiais classificados. Foram 18 acusações, para as quais já fora indiciado nos EUA. Caso todas fossem provadas, Assange pegaria 175 anos de cadeia, só saindo de lá morto.

De um modo geral, a defesa contestou, pedindo que Assange não fosse extraditado pois ele era um jornalista que havia prestado informações de interesse público.

Em janeiro deste ano, em sua decisão, a juíza Vanessa Baraitser negou que o caso fosse político e um atentado à liberdade da imprensa. No entanto, não autorizou a extradição de Julian Assange pois, na sua deplorável situação psicológica, haveria alto risco de que não resistiria as rigorosas condições das prisões americanas e tentaria se suicidar.

O governo dos EUA recorreu. O caso foi para a instância seguinte, determinando-se que Assange teria de permanecer na prisão britânica até a decisão final.

Houve protestos em toda parte. Os manifestantes alegavam que, depois de permanecer preso 2 anos e meio, Assange deveria ser colocado numa prisão domiciliar pois até o fim do processo poderiam passar mais alguns anos, nos quais ele estaria sujeito aos rigores do presídio de segurança Belmarsh.

Esse tratamento duro não se justifica para um jornalista investigativo, quando o ditador Pinochet, responsável por milhares de mortes, aguardou a conclusão do caso repoltreado no conforto de uma vila de luxo perto de Londres (Deutsche Welle, 04/01/2021).

Nada feito. Com Assange preso, o julgamento do recurso iniciou-se em 27 de outubro de 2021.

O governo americano contestou o testemunho do perito, considerado pela juíza fundamental para sua decisão contra a extradição.

Ele não era qualquer um. Trata-se de Michael Kopelman, referência mundial em neuropsiquiatria e professor emérito no Kings College, Londres. Diagnosticou Assange com stress pós-traumático e depressão recorrente, concluindo estar convencido de que o jornalista, sendo extraditado para os EUA, encontraria um modo de se suicidar (Truthout, 24/10/2021). No seu trabalho, Kopelman ressaltou que Assange sofria de alucinações, andava pela cela até ficar exausto, dava socos no próprio rosto, batia sua cabeça contra a parede e repetidamente demonstrava ser um suicida em potencial porque falava em se matar “centenas de vezes por dia (Consortium News, 27/10/2021).”

Depois de apontar “falhas” no diagnóstico de Kopelman, os advogados fizeram uma jogada de mestre: os EUA se comprometiam a não colocar Assange num dos seus presídios de máxima segurança, os supermax, conhecidos pelas suas condições extremamente duras. Ele ficaria numa prisão mais humana, gozando de todas as vantagens dos internados. Só que os EUA poderiam lhe impor medidas administrativas especiais (isolamento) ou fixá-lo na temível prisão ADX de máxima segurança em Florence, Colorado, se seu comportamento futuro justificar. Ou seja: como não disse sob quais critérios seria julgado o futuro comportamento de Assange, dependeria da vontade dos EUA considerá-los desrespeitados e transferi-lo para um presídio como Florence, onde encontraria condições ideais para o suicídio que a decisão da juíza Baraitser visa evitar.

Note que a oferta americana começaria a valer depois que o caso Assange acabasse de ser julgado nos EUA. Caso fosse extraditado, ele adentraria uma corte americana onde já está indiciado nas 18 acusações. Antes de chegar à sentença, o processo teria de passar por uma série de etapas regulares e de prováveis recursos. O que acabaria representando vários anos, talvez décadas, tempo bastante para se agravarem as condições de um Assange tomado pelas perturbações mentais que apresenta desde agora, com um resultado fatal.

A defesa do criador do WikiLeaks tem dois trunfos que acredita poderem ser decisivos.

De acordo com investigações do Yahoo! News (fato publicado em 26/09/2021), Mike Pompeo, então diretor-geral da CIA, posteriormente secretário de Estado do governo Trump, enfurecido com o Wikileaks por publicar documentos sobre métodos e procedimentos da espionagem da CIA, exigiu vingança. Determinou que vários membros da organização sugerissem ideias para se raptar e assassinar Assange.

O assunto foi discutido nas mais altas instâncias da CIA e da administração Trump, mas não deu em nada devido a objeções de advogados de bom senso.
As informações sobre esse insano episódio foram conseguidas pelo Yahoo, através de entrevistas com 30 ex-funcionários da CIA, dos quais 8 forneceram detalhes sobre os planos para raptar e assassinar o criador do WikiLeaks (Observador, 05/01/2021).

O próprio Mike Pompeo pareceu confirmar as conclusões do relatório da investigação do Yahoo ao afirmar que os ex-funcionários, que deram o serviço aos repórteres, “deveriam todos eles serem processados por falarem a respeito de atividades classificadas no interior da CIA.”

Considerando a preocupação da juíza britânica com a preservação da vida do fundador do WikiLeak, a investigação do Yahoo é peça fundamental no julgamento da extradição.

Acho que um país, onde funcionários de alto escalão planejaram e discutiram opções para raptar e até assassinar Assange, não pode garantir a segurança do jornalista.

Há outro ponto a ser levado em conta.

Sigurdur Thordarson, a principal testemunha dos EUA contra Assange, ora preso na Islândia, confessou ser falso seu depoimento.

Esse notório hacker e pedófilo recebera imunidade de processo pelo FBI para testemunhar que Assange seria um hacker e não um jornalista. Com isso, Assange, não estaria sob a proteção da 1ª Emenda da Constituição dos EUA, que consagra a liberdade de imprensa.

Tudo isso foi admitido pelo próprio Thordarson em entrevista ao jornal islandês Stundin (edição de 06/10/2021).

Sem esse falso testemunho, não há como os EUA provarem que Assange é um hacker.

Por outro lado, a atividade desenvolvida por Assange é igual à do jornalismo investigativo, portanto ele é inequivocamente um jornalista.

O processo contra ele não passa de uma forma de intimidar os jornalistas que buscam descobrir crimes e falhas graves no governo. Sua eventual condenação se constituirá num perigoso precedente, levando muitos jornalistas investigativos a fazerem uma verdadeira autocensura, temendo que suas reportagens sejam consideradas como crimes nos EUA.

Dessa forma, o povo será o principal prejudicado. Lembro que num regime democrático, ele é a fonte de todo o poder.

Os governantes não passam de funcionários escolhidos pelo povo para administrar o país. O povo precisa estar constantemente a par de eventuais transgressões praticadas por esse pessoal, para tomar as necessárias atitudes para reprimi-las, se possível, e punir os culpados principalmente através das eleições.

Por isso mesmo, os governantes desejam manter secretas suas malazartes, para continuar as praticando impunemente. No caso de Assange, mais do que calar suas inconvenientes revelações, os EUA visam criminalizar o jornalismo investigativo.

É a mesma razão que os leva, juntamente com a China, a Rússia e Israel a não participar do Tribunal Criminal Internacional, nem aceitar decisões que possam atingir seus governantes.

Atualmente, os governos de Washington e Israel atacam investigações dessa corte sobre as violações dos direitos humanos praticados, não apenas pelos exércitos desses países nas guerras do Afeganistão e de Gaza, respectivamente, mas também pelos adversários: os talibãs e o Hamas e aliados.

Esses dois países, apresentando-se como pilares da democracia, deveriam ter interesses em que os infratores dos direitos humanos fossem revelados e punidos, para tomar providências contra repetições de tais abusos por seus representantes.

Acredito que, longe de tentar punir Assange, os EUA deveriam homenageá-los. Por exemplo, a revelação das barbaridades cometidas por militares americanos em Abu Ghraib, permitiu ao governo dos EUA punir os responsáveis e tomar medidas para evitar essas práticas delituosas.

Esperava-se que o fervor democrático demonstrado por Biden fizesse com que ele atendesse a inúmeros apelos pelo cancelamento do processo contra Assange.

A resposta não foi bem essa: “A administração democrata manifestou que continuará tentando fazer com que o Reino Unido extradite Assange (El Pais, 14/02/21).”

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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