As sanções miram a Rússia, mas atingem também o resto do mundo
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- Luiz Eça
- 27/07/2022
Vladimir Putin, Narendra Modi e Xi Jinping. Crédito: Ministério das Relações Exteriores da Índia
“Nunca houve uma guerra boa nem uma paz ruim”, Benjamin Franklin.
Punir a Rússia duramente para forçá-la a sair da Ucrânia. Conforme anunciado, foi este o objetivo das sanções emitidas por Biden. Mas não foi único. Ele queria usá-las também para forçar as nações aliadas a: a) se unir sob comando estadunidense na defesa da Ucrânia; b) destruir o poder da Rússia no desafio à hegemonia mundial de Washington; c) isolar Moscou e restringir ao mínimo suas relações com o resto do mundo, inclusive expulsando suas entidades e cidadãos de organizações e eventos internacionais.
São objetivos ambiciosos, exigiriam anos para se concretizar. Biden precisava de tempo, pois sabia que os russos sangrariam muito antes de entregar os pontos.
Por isso, seu governo não desejava um acordo que pusesse fim à guerra rapidamente.
Mencionando apenas en passant possíveis reuniões de paz com os russos, Biden e seus coadjuvantes salientam em uníssono a coragem dos soldados ucranianos, contrastando com as violações de direitos humanos pelos russos, e anunciam bilhões em armamentos para os ucranianos, reiterando a necessidade de os países europeus imitarem o desprendimento norte-americano.
Sabia-se que alguns dos países aliados aos EUA, parceiros da Rússia em negócios importantes, levantaram obstáculos ao diktat norte-americano.
A aposta era que logo Putin acabaria cedendo, devido à pressão mundial em favor do apoio militar aos sacrificados e heroicos ucranianos.
Acreditava-se que a China daria uma ajuda à Rússia, sim, porém discreta, pois o presidente Xi não iria se comprometer com a invasão de um país independente.
Inicialmente, Biden e seus áulicos estavam corretos.
A Alemanha arrumou pretextos para não enviar armas à Ucrânia e declarou que dependia demais do gás russo e do petróleo, relutando em embargar suas importações, além de insistir num acordo de paz, para Washington, desinteressante.
A Hungria protestou contra o embargo às compras de gás russo, que representam 60% do seu consumo total. A França de Macron, além de negar haver estado de guerra à Rússia, priorizava a necessidade de um diálogo com Putin, para acabar com essa louca troca de bombas e mísseis.
À medida em que as agências de notícias, o presidente Zelensky, a OTAN e os EUA continuavam laboriosamente a publicar acusações e fotos de barbáries russas contra civis, a opinião pública internacional foi se tornando mais e mais indignada, e a Alemanha e a França foram mudando seu discurso.
Por fim, Scholz e Macron, os líderes da União Europeia, praticamente cancelaram as esperanças de paz.
O premier alemão resolveu os obstáculos que impediam a doação de armamentos para a Ucrânia. O versátil Macron seguiu os passos bélicos do vizinho.
Fator Índia
Quanto aos embargos, os países europeus dependentes do gás e do petróleo russos conseguiram adiar até dezembro o fim das importações desses combustíveis. Nações asiáticas também receberam o mesmo prazo. Mas a Índia saiu da casinha.
Possivelmente, Biden e a OTAN topariam fazer algumas concessões para os indianos, já que o país do Kama Sutra mantinha há anos boa relação com os russos, especialmente no setor militar, onde 65% a 85% dos armamentos do país são made in Russia.
Havia otimismo na Casa Branca. Afinal, o governo de Nova Déli participava do QUAD – associação dos EUA, Austrália, Nova Zelândia e Índia – que, teoricamente, objetiva promover as democracias e a prosperidade no Leste do Oceano Pacífico.
Até aí, Nova Déli ia, mas política tinha de ficar fora. A Índia sempre procurou influenciar o QUAD para evitar questões dessa área, focando apenas o conceito original da associação.
Na última reunião do QUAD, foi graças aos representantes do presidente Modi que o manifesto de encerramento limitou-se a abordar apenas aspectos humanitárias do conflito e ignorou condenações aos invasores russos.
Mesmo assim, os formuladores da política externa estadunidense continuavam otimista, uma vez que, como membro do QUAD, a Índia era uma nação amiga, não iria deixar Biden na mão na sua cruzada anti-Rússia.
Ledo, ledíssimo engano.
Deu para perceber quando a questão da invasão russa foi para a ONU. A Índia foi uma das 35 nações que se abstiveram na votação da condenação da jogada brutal do Kremlin, sendo que 141 votaram sim e apenas 5 optaram pelo não.
Os EUA ficaram ainda mais desagradavelmente surpresos diante do inesperado apoio econômico dos indianos à Rússia, que contribuiu decisivamente para fortalecer as finanças de Moscou e, assim, reduzir a eficiência destrutiva das sanções.
Desde o início da invasão, as compras indianas de petróleo russo não pararam de aumentar. Partindo de volumes muito baixos no ano de 2021, pouco depois do conflito explodir, em março daquele ano elas foram para 300 mil barris por dia; m junho, alcançaram 819 mil barris por dia.
Para dar uma ideia do que isso significa: atualmente, o petróleo russo representa 18% do total das importações indianas deste combustível, que, no passado, mal chegavam a 1%.
A Índia mandou para os cofres russos 8,8 bilhões de dólares provenientes das importações de petróleo e carvão, somente entre 24 de fevereiro e 30 de junho de 2022 gastou mais do que em todas as compras de produtos russos no ano de 2021 (Times of India, 6/7/2022).
A Rússia, que, no ano passado, era o décimo exportador de petróleo cru para a Índia, nos primeiros 100 dias da guerra da Ucrânia já tinha assumido o segundo lugar.
Assustado com essa torrente de dólares, que estava sabotando suas sanções, Biden tentou convencer o presidente Modi a ir matar sua sede por petróleo em outro país. Garantiu que optar pelo combustível russo não seria do interesse dos indianos e poderia “trazer consequências”.
Estocando petróleo
Basicamente, não é a longa amizade com a Rússia que justifica o aumento espantoso da preferência pelo petróleo da terra de Gorbatchev. “É a economia, estúpido”, como disse o ex-presidente Clinton ao também ex-presidente, seu rival George Bush (pai).
Para ganhar a Índia como cliente, Putin oferece um bom desconto na compra de petróleo. Não há presidente que resista a argumentos assim.
Por não ter explicitado o “trazer consequências”, Biden deixou no ar o que queria dizer sua advertência ao presidente indiano. Seria uma intervenção militar, o corte de relações com os EUA ou a proibição de Modi conhecer a Disneylândia?
Somando-se ao presidente, emissários dos EUA e da União Europeia engrossaram a voz para urgir Modi a aderir ao embargo, por se tratar de um imperativo global”. Modi não se tocou.
O importante era respeitar o “imperativo da Índia”, ou seja, neutralidade internacional, seguida pelos governos indianos desde a Guerra Fria, quando a Rússia (então União Soviética) apoiou o movimento dos países do chamado Terceiro Mundo.
Só bem mais tarde os EUA construíram laços de amizade com a Índia. Antes e depois da queda do muro de Berlin, Moscou prestou substancial ajuda econômica, política e militar a Nova Déli nos conflitos territoriais com o Paquistão e até com a China (Mao Zedong tinha brigado com seus camaradas do Kremlin). Depois que a China aderiu ao capitalismo de Estado, voltou a se aproximar de Moscou.
No presente conflito, a Rússia esperava que o regime do presidente Xi não a deixasse falando sozinha.
Pequim correspondeu às expectativas de Moscou e atuou decisivamente para minimizar a ação implacável das sanções contra a economia russa. Segundo o Centro de Pesquisas em Energia e Ar Puro, a China tornou-se o maior comprador mundial de combustíveis fósseis da Rússia, contribuindo para a saúde das finanças do Kremlin com 13,3 bilhões de dólares em importações (Analodu, 21/6/2022).
Em maio deste ano, as compras chinesas de petróleo russo totalizaram 8,42 milhões de toneladas, tendo crescido 55% em um ano.
Não há sinal de que essas compras possam cair muito, pois duvida-se que o presidente Xi baixe a guarda diante da pressão internacional.
É de se crer que a Índia e outros países com quem Biden conta para aplicar o embargo a partir de 2023, provavelmente, trilharão o mesmo caminho de Pequim.
A Rússia pode dar descontos a muitas nações, sem reduzir lucros, pois o preço do petróleo está alto, já subiu muito, mais do que o vigente antes da invasão da Ucrânia. E a tendência é continuar subindo.
Os altos preços também jogam a favor do outro produto da maior importância na pauta de exportações russas: o gás. A Agência Internacional de Energia informou que 45% do orçamento federal russo em janeiro vinham de impostos sobre gás e petróleo e das tarifas sobre sua exportação.
Não satisfeita em sancionar duramente o petróleo russo, a coalizão Biden/Europa fez o mesmo com o gás natural do inimigo, que representa nada menos de 50% das importações de gás dos países do Velho Mundo.
Foi decidido que eles tinham até dezembro de 2022 para deixarem de comprar o produto.
Inverno
Depois do início da guerra, o gás começou a encarecer. E agora, em pleno verão europeu, com o calor batendo recordes, que exigem uso contínuo de aparelhos de ar condicionado, o preço engrenou um extraordinário surto de crescimento.
Dependentes do consumo de gás russo, quase todas as nações do Velho Mundo já estão estocando grandes volumes do combustível para não morrer de frio no inverno, que será bravo e está chegando.
Para garantir que os países consumidores possam cumprir seus compromissos com as sanções, a União Europeia trabalha para conseguir novos fornecedores e aproveitar energias alternativas, além de planejar uma diminuição no consumo de cada nação.
Alguns analistas duvidam do seu sucesso. Na Alemanha (líder na importação de gás russo) Klaus Muller, diretor da Federal Network Agency preveniu que, embora quase 65% do gás já esteja estocado no país, não será suficiente para durar no próximo inverno, sem o fornecimento normal da Rússia (entrevista ao Bild am Sonntag).
Caso essa situação indesejada aconteça, prevê-se que a atividade econômica alemã seja reduzida em 2,7%, em 2023, sendo que os altos preços aumentarão a inflação na Alemanha em 3% a mais, em 2022 e 2023.
As dificuldades em encontrar novos países produtores e os elevados custos envolvidos na mudança fizeram com que os países europeus deixassem de lado, ao menos provisoriamente, a ideia de parar de importar gás do regime de Moscou.
Aproveitando a oportunidade, Putin passou de caça a caçador, e ameaçou cortar seu suprimento de gás dos países hostis, o que abriria as portas da recessão para todos eles.
A guerra da Ucrânia parece que será decidida mais por fatores econômicos do que militares. Reforçada pelos EUA e aliados com os mais poderosos e modernos armamentos, a Ucrânia tem agora plenas condições de enfrentar a Rússia nos campos de batalha. Essa igualdade de forças faz supor que levará anos para um dos dois ser obrigado a içar a bandeira branca.
Antes desse prazo, serão os efeitos devastadores das sanções na Rússia ou seus efeitos colaterais nos EUA e na Europa, igualmente devastadores, que irão
determinar o vencedor desta guerra.
Quem cederá?
Com os lucros extraordinários consequentes da alta nos preços e do aumento fora do comum nas compras de combustíveis fósseis pela China e pela Índia, a Rússia vem resistindo à ação das sanções.
Com sacrifícios, é verdade: escassez de bens de consumo necessários ou de qualidade inferior à habitual; preços subindo sem parar; redução generalizada dos rendimentos das pessoas, desemprego constante, com ameaça de chegar a números explosivos num futuro próximo; grande número de fábricas e lojas fechando.
Apesar desta situação ruinosa, o fato é que Putin conseguiu estabilizar a moeda, depois de uma forte queda do rublo, logo no começo da invasão. Os índices do PIB e da inflação melhoraram e o desemprego chegou ao nível mais baixo desde o fim da União Soviética (El País, 12/7/2022).
A economia não entrou em colapso, embora seja factível de que o pior ainda está por vir. Uma profunda recessão é esperada e o índice de crescimento da Rússia deve ser negativo em 2022: -10% (BBC News, 27/6/2022).
Seus efeitos colaterais irão se espalhar pelo mundo. Em entrevista recente, o presidente do Banco Mundial, David Malpass, afirmou que se a guerra da Ucrânia continuar teremos de enfrentar uma crise global de alimentos, na qual muitos milhões de pessoas morrerão.
Seria uma “catástrofe humana” (The National Interest, 23/7/2022). Indiferentes a essa perspectiva malignas, os russos dizem que paz, só se as condições forem ditadas por eles. E os EUA não querem que se fale em acordos para pôr fim à guerra.
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Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.