Direitos humanos, mas nem tanto
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- Luiz Eça
- 17/09/2022
Durante a campanha presidencial norte-americana, Joe Biden prometeu “revitalizar nosso compromisso de avançar os direitos humanos e a democracia por todo o mundo (ACLU, 14/12/2021)”.
Um dos principais desafios seria alterar profundamente o relacionamento dos EUA com a Arábia Saudita, um dos países que mais violam as leis humanitárias.
No debate entre os candidatos a presidente, Biden foi categórico: “Quero deixar bem claro que nós, na verdade, não iremos vender mais armas para eles (os sauditas). Iremos fazê-los pagar o preço, estado pária que eles são... E eu também vou acabar com as vendas de material militar aos sauditas onde eles estão atuando e matando crianças, matando pessoas inocentes. E, portanto, precisam ser responsabilizados”.
Referia-se à guerra do Iêmen, movida pelos sauditas, que já vitimizou quase 300 mil pessoas, destruindo o país, espalhando a fome e as doenças epidêmicas, no que a ONU considera a maior catástrofe humana da atualidade.
Biden focou especialmente o príncipe Mohamed bin Salman, o MBS, governante de fato da Arábia Saudita, por ter planejado o brutal assassinato e desmembramento do jornalista Khashoggi, em Istambul, e por ser o responsável pela guerra do Iêmen.
Depois de eleito, em sinal de repúdio, o líder democrata recusou-se a tratar de questões de Estado com o príncipe, só o fazendo com o rei Salman. Caso um dia precisasse se encontrar com MBS, garantiu que o confrontaria, abordando assuntos embaraçosos para o saudita: sua responsabilidade na terrível guerra do Iêmen e no assassinato do jornalista Khashoggi.
Antes da metade 2021, reafirmando seu compromisso com os direitos humanos, Biden liberou a publicação (antes proibida por The Donald) do relatório da inteligência nacional culpando MBS pelo assassinato, no consulado saudita em Istambul.
E, em fevereiro de 2021, Biden deu um grande passo à frente: proibiu a exportação de armas ofensivas para a Arábia Saudita usar na guerra do Iêmen.
Passaram-se alguns meses e, em setembro, ele deu um passo atrás nos seus princípios humanitários. Os EUA voltavam a se envolver militarmente na guerra do Iêmen, vendendo aos sauditas sistemas antimísseis no valor de 650 milhões de dólares.
Houve protestos veementes dos grupos de defesa dos direitos humanos. Para salvar sua face, Biden alegou que os armamentos eram defensivos, destinados especificamente a proteger o território saudita contra mísseis iemenitas. O que ele havia proibido fora a venda de armas ofensivas. Discutível.
Ao lançar mísseis contra os inimigos, os iemenitas estavam usando seu direito de se defender. Era o único meio de que dispunham para reagir diante dos bombardeios devastadores da Arábia Saudita, que vêm assolando o país desde 2015.
Com os sistemas antimísseis fornecidos pelos EUA, o governo de Riad pode eliminar os mísseis iemenitas, impedindo assim que eles exerçam seu direito de se defender.
É simplesmente o mesmo argumento usado pelos EUA, ao apoiar os ataques aéreos israelenses nas guerras de Gaza.
Seja como for, outro negócio fechado com os norte-americanos na ocasião, este no valor de 500 milhões de dólares, tinha propósitos ofensivos evidentes: prestação de serviços de manutenção da frota de helicópteros sauditas, garantindo, assim, a continuidade dos seus ataques contra civis iemenitas.
São fatos que demonstram uma mudança nas prioridades da política externa estadunidense. Possivelmente um dos pilares da política de Biden, a defesa dos direitos humanos, estaria rachando, substituída pela valorização dos interesses políticos e econômicos do seu governo, o que exigiria relações amigáveis com a monarquia árabe, estremecidas diante das declarações e posturas antissauditas do presidente na campanha eleitoral e nos meses posteriores à sua posse. E Biden precisa de sua cooperação em dois pontos fundamentais de sua política externa:
1) devido às sanções contra Moscou, que fecharam a maior parte do mercado europeu para o petróleo russo, o preço desse combustível chegou a níveis muito altos, gerando inflação igualmente alta. Biden queria convencer o governo saudita a aumentar a produção de petróleo para fazer seu preço baixar e assim também a inflação, cujo crescimento está enfraquecendo a imagem do governo democrata, poucos meses antes da eleição de meio termo norte-americana;
2) para fortalecer a hegemonia estadunidense no Oriente Médio, Biden precisa conseguir a cooperação dos sauditas em seu plano de organizar uma rede de defesa aérea regional contra eventuais ataques dos mísseis iranianos a países aliados da Casa Branca.
Fixado nessas ideias, Biden viajou em julho para o Oriente Médio, programando uma curta estada em Israel, a participação em reunião dos países do Golfo Pérsico, em Jedá, e uma conversa com quem decide as coisas na Arábia Saudita: o príncipe assassino. A viagem teve altos e baixos sensíveis.
Os dignatários israelenses foram duros: exigiram que o presidente dos EUA recusasse o último esboço do acordo nuclear com o Irã, costurado pela União Europeia. Biden não deve ter ficado feliz, pois o eleitorado norte-americano, farto de guerras, gostaria de uma solução pacífica para esse conflito com o Irã.
Ainda não se sabe se Biden mais uma vez cedeu aos sionistas.
Na reunião de Jedá, os países do Golfo acharam muito interessante a criação de uma rede de proteção a ataques de mísseis ou drones.
No entanto, a ideia de tratar o Irã como uma ameaça não é mais popular entre os monarcas da região.
Pelo contrário, reconciliação parece ser a palavra de ordem dominante. O Kuwait reatou relações diplomáticas com Teerã, cortadas em 2016. A União dos Emirados Árabes seguiu o mesmo caminho. E a própria Arábia Saudita vem mantendo reuniões sucessivas com Teerã, para discutir a volta de relações normais entre os dois países.
Apesar dos insistentes apelos do governo de Washington, os sauditas se recusaram a aumentar sua produção petrolífera. Na verdade, estão muito contentes com os altos preços que seu petróleo vem atingindo. Não está em suas cogitações colocar os interesses norte-americanos acima dos seus.
O contato com o príncipe MBS foi pouco amigável, mas, no frigir dos ovos, as duas partes acertaram as pontas.
Como é lógico, Biden estava pouco à vontade por já ter chamado a Arábia Saudita de país pária e responsabilizado MBS pelo assassinato de Khashoggi.
Na versão do habitante da Casa Branca, ele confrontou bin Mohamed, falando grosso sobre o assassinato do jornalista em Istambul e a responsabilidade do príncipe nesse escandaloso feito.
Houve quem contou uma história diferente. Em entrevista à Fox News, Adel al Juber, um diplomata de nível alto que participou da reunião, disse que não ouviu Biden acusar o príncipe da felonia. Segundo ele, o presidente limitou-se a afirmar que os EUA estão empenhados na defesa dos direitos humanos, garantidos na sua constituição, e que isso é parte obrigatória das agendas presidenciais.
Difícil saber qual dos dois mentiu. Por seu lado, MBS teve algo a dizer sobre sua participação na conversa.
Ele teria dito a Biden que o assassinato de Khasshoggi foi um erro, algo, aliás, que os próprios EUA também cometem. Citou como exemplo as torturas e abusos sexuais praticadas por militares contra iraquianos na prisão de Abu Ghraib. Lembrou ainda o assassinato da jornalista Shireen Abu Akle por soldados israelenses, que o governo Biden negou ter sido intencional, apesar de vídeos, investigações e muitas testemunhas comprovarem que se tratou de um tiro direcionado.
Não veio a público a tréplica presidencial (se é que houve). No fim, os dois, aparentemente, resolveram deixar para lá o que os estava separando e recuperar a tradicional amizade que sempre os unira.
Só que em novos termos: os EUA ficaram sabendo que a Arábia Saudita continuará a ser uma aliada fiel, a não ser quando seus interesses forem diferentes dos interesses da Casa Branca.
Pouco depois da reunião Biden-MBS, o governo norte-americano vendeu à Arábia Saudita mais 3 bilhões de dólares em armamentos.
Não demorou muito tempo e o regime saudita condenou a 34 anos de prisão a jovem Salma al-Shehab por ter retuitado posts de dissidentes exilados.
Como informou Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado, os EUA informaram : “nós manifestamos a eles que liberdade de expressão é um direito humano universal ao qual todas as pessoas têm direito e exercer esses direitos universais não deveria nunca ser criminalizado”.
Por enquanto, foi esta a ação do governo Biden em defesa da liberdade de expressão, um dos principais direitos humanos. Porém, Salma continua presa.
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Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.