Correio da Cidadania

Sanções se viram contra quem as lançou

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Moody's prevê que a guerra provocará recuo de 7% do PIB da Rússia em 2022
Quando a Rússia concentrou tropas na fronteira com a Ucrânia, o presidente Biden ameaçou: caso vocês invadam, lançaremos “sanções como jamais você viu (The Moscow Times, 15/12/2922)”.

Mas Putin atacou. E Biden também. As sanções norte-americanas e europeias pareciam tão terríveis que, para muitos analistas, arrasariam a economia russa e fariam o chefão russo arrancar seus raros cabelos.

Nem por isso, a ofensiva do Kremlin parou, enquanto os ucranianos começaram a receber armamentos dos países da OTAN, especialmente dos EUA, o que lhes permitiu resistir às forças inimigas e até lhes infringir pesadas perdas.

Antes de completar um mês de guerra, quando os combates ainda não tinham matado tanta gente, russos e ucranianos reuniram-se para discutir o fim de uma conflagração que prometia produzir enormes estragos nas terras ucranianas e na imagem da Rússia (já seriamente lesada pela invasão).

Era o momento certo, se essa iniciativa ocorresse mais tarde, a situação teria se complicado, com cada uma das nações denunciando brutalidades e crimes de guerra presumivelmente praticados pela outra, criando uma onda de ódio recíproco que tornaria improvável que Rússia e Ucrânia topassem se sentar à mesa das negociações de paz.

Iniciadas sem alarde, as conversações entre as duas potências estariam dando certo. Segundo Fiona Hill e Angela Stent, no Foreign Affairs, Moscou e Kiev concordaram num acordo provisório, dispondo que: “A Rússia se retiraria de suas posições em 23 de fevereiro, quando controlava a região do Donbass e toda a Crimeia, e, em troca, a Ucrânia prometia não procurar tornar-se membro da OTAN, em vez disso receberia garantias de segurança de um grupo de nações” (Responsible Statecraft, 12/02/2022).

Seriam programados referendos nos quais as populações do Donbass e da Crimeia decidiriam se desejavam ser parte da Rússia ou da Ucrânia. Embora fosse uma primeira proposta, sujeita a discussão, não deixava se ser promissora.

O próprio presidente Zelensky pareceu favorecê-la em declaração à TV local: “nosso gol obviamente é paz e restauração da vida normal em nosso Estado nativo, tão cedo quanto possível”.

O esboço de acordo foi apresentado por escrito aos EUA e à OTAN, que se pronunciaram contra, também por escrito. Blinken, o secretário de Estado dos EUA, e Jason Stoltenberg o chefe da OTAN concederam entrevistas afirmando que as duas entidades rejeitavam a ideia de a Ucrânia jamais juntar-se à OTAN, por contrariaria princípios fundamentais, como a soberania e a integridade territorial da Ucrânia e o direito de um Estado escolher seus próprios acordos de segurança e suas alianças.

Lutando pelo Ocidente

Houve uma certa hipocrisia nessas nobres colocações. Pelo seu direito à soberania e de escolher seus próprios acordos de segurança e alianças, a Ucrânia pode renunciar a territórios, acordos de segurança e alianças, se for do seu interesse.

Sendo isso vetado pelos EUA e a OTAN, são eles que rejeitam o direito de os ucranianos escolherem o que lhes aprouver.

Na verdade, tudo indica que houve pressão sobre o presidente Zelensky, que passou a ecoar os brados de Biden e de chefes da OTAN, privilegiando a luta contra a Rússia.

Para muitos analistas, o ex-premiê do Reino Unido, Boris Jonhson, foi encarregado de convencer Zelensky de que falar em negociações de paz não era uma boa.

Em visita inesperada a Kiev, o festeiro Boris informou ao presidente ucraniano que o Reino Unido estava numa guerra de longa duração e não participaria de qualquer acordo com o Kremlin pois o “Ocidente coletivamente” via chances de forçar a Rússia a ceder, estando determinado a fazer o máximo por isso.

Em abril (dois meses depois da invasão), Zelensky abandonou seu pacifismo: como a guerra pode ainda demorar muito, disse, urgia que os EUA e os seus liderados, os membros da OTAN, lhe enviassem bilhões de dólares em armamentos, treinamento de militares, inteligência de satélites e operações secretas.

Austin, o secretário de Defesa dos EUA, completou a fala do ucraniano, declarando que agora havia mais um novo objetivo na coalização ocidental: além de ajudar a Ucrânia a lutar, era “enfraquecer a Rússia”.

Um mês antes, Biden saíra do sério, revelando objetivos da participação estadunidense na guerra da Ucrânia, até então ocultos. “Pelo amor de Deus”, bradara o presidente, “esse homem (Putin) não pode permanecer no poder”.

Com a enorme ajuda militar ocidental, a Ucrânia passou a enfrentar a Rússia, quase de igual para igual. Porém, as “sanções jamais vistas”, apesar do seu poder apocalíptico, fracassaram.

Rússia consegue novos clientes

Embora sofrendo duríssimas perdas, a economia russa não entrou em colapso. Putin conseguiu estabilizar o rublo, depois de uma forte queda no começo da invasão. E, neste ano, o rublo tornou-se uma das mais fortes moedas do mundo, tendo se vitaminado em quase 50%, em relação a janeiro. Os índices do PIB e da inflação melhoraram e o desemprego chegou ao nível mais baixo desde o fim da União Soviética (El País, 12/7/2022). A principal razão da resiliência da economia russa foi o elevadíssimo aumento das exportações de petróleo bruto para a China e a Índia e de gás para a China, e o crescimento igualmente alto dos rendimentos decorrentes.

Inicialmente, Biden pretendia sancionar o Kremlin, zerando as vendas externas dos principais produtos russos: o petróleo bruto e o gás natural. Vários países- membros da OTAN reclamaram, não teriam condições de abrir mão da importação dessas fontes de energia, de uma hora para outra. A OTAN e seu líder, os EUA, aceitaram que tais nações fossem reduzindo suas compras de gás e petróleo da Rússia até parar de importá-los, possivelmente em dezembro deste ano.

A perda da maior parte do mercado europeu pela Rússia está sendo compensada pelos aumentos vertiginosos das compras chinesas e indianas.
Em agosto, o ministro da Economia do governo Putin estimou que os rendimentos das exportações de gás e petróleo atingiriam 338 bilhões de dólares, em 2022, mais de um terço acima dos 244 bilhões de 2021.

E, assim, longe de ter seu tesouro esvaziado, a Rússia deve ganhar mais dinheiro neste ano, mesmo apesar das sanções. E as sanções, num efeito bumerangue, voltaram-se contra os países responsáveis por elas, atingindo-os com preços em alta da energia, gerando maior inflação, carestia dos alimentos e custo de vida cada vez mais alto.

E não é só na Europa: também os EUA estão provando o gosto amargo da alta de preços pois a inflação vinda do continente europeu custará aos lares norte-americanos mais de 5.200 dólares anuais, em média.

A Índia contribuiu para a transformação das sanções em bumerangue de maneira inesperada. Tendo sido normalmente um consumidor pouco relevante de petróleo russo, com volumes muito baixos em 2021, o governo de Nova Delhi, em março de 2022, logo após a invasão da Ucrânia, aumentou suas compras para 300 mil barris de petróleo bruto diários, alcançando 819 mil, em junho.

A Rússia, que, em 2021, era o décimo exportador de petróleo bruto para a Índia, nos primeiros 100 dias da guerra da Ucrânia já tinha assumido o segundo lugar.

A Índia mandou para os cofres russos 8,8 bilhões de dólares provenientes das importações de petróleo e carvão, somente entre 24 de fevereiro e 30 de junho de 2022, mais do que gastou em todas as compras de produtos russos no ano de 2021 (Times of India, 06/07/2022).

Assustado com essa torrente de dólares, que estava sabotando suas sanções, Biden tentou convencer o presidente Modi a ir matar sua sede por petróleo em outro país. Garantiu que optar pelo combustível russo não seria do interesse dos indianos e poderia “trazer consequências”.

Mas Putin oferece aos indianos (e chineses) um bom desconto na compra de petróleo bruto. Isso é o que realmente interessa ao governo Modi. E o morador da Casa Branca teve de voltar a Washington de mãos vazias. Joe Biden não deve ter gostado muito. Certamente, gosta ainda menos da atuação da China para minimizar o efeito brutal das sanções.

Segundo o Centro de Pesquisas de Energia e Ar Puro, a China tornou-se o maior comprador mundial de petróleo da Rússia, com um total de 158 bilhões de dólares, somente entre fevereiro e agosto deste ano, perto do total exportado para a Europa, em 2021.

A Rossnet, maior petrolífera russa, aumentou seus lucros em 7,2 bilhões de dólares, na primeira metade de 2022. Em maio deste ano, os países da União Europeia decidiram cortar as importações de petróleo bruto da Rússia e de seus produtos derivados até dezembro de 2022 (Reuters, 9/8/2022).

EUA percebem o movimento

Acontece que muitos países do grupo dependem dos combustíveis do Kremlin e, para não os prejudicar, as sanções foram suavizadas: somente as exportações de petróleo russo transportadas por via marítima seriam sancionadas, ficando um embargo total desses produtos para depois de 5 de fevereiro de 2023 (OilPrice, 14/9/2022).

Janet Yellen, a secretária do Tesouro norte-americano, achou necessário punir os invasores russos com mais rigor. Propôs o estabelecimento de um preço máximo para o petróleo de Moscou, o qual todos os países teriam de praticar. Seis ou sete membros da OTAN protestaram candentemente: suas economias seriam prejudicadas, era essencial manterem os negócios já acertados com Moscou.

Sob forte pressão de Yellen (e dos EUA), a decisão passou para o G7, grupo das nações mais ricas, que aprovaram o preço máximo do petróleo, já para 9 de setembro. Como prêmio de consolação para os opositores, alongou-se, então, o início da nova medida para 5 de dezembro.

A ideia permitiria que os russos continuassem exportando todo o gás requerido pelos consumidores-membros da OTAN, porém, a um preço certamente bem inferior ao do mercado internacional.

Com isso, esses países continuariam a receber o petróleo bruto que necessitam, mas a Rússia teria seus rendimentos bastante reduzidos, o que debilitaria mais a economia do país e o financiamento da guerra na Ucrânia, contribuindo para a derrota das tropas de Putin.

Não se sabe ainda qual será esse preço máximo. Alguns analistas calculam que estará entre 40 dólares e 60 dólares, o barril. Considerando que o preço atual é de 90 a 100 dólares, dá para sentir como Moscou será golpeado.

Um dia depois do anúncio do preço máximo, Putin reagiu, rugindo que cortará todo fornecimento de petróleo bruto, gás natural e carvão ao país que aderir à nova medida.

Não se sabe se ele cumprirá sua ameaça ou se o preço máximo será efetivado a partir da data marcada. Sabe-se que 10 países rejeitam o plano, inclusive a Alemanha, Polônia, Grécia, Áustria, Hungria, Holanda e República Checa.
Se o sucesso das sanções ao petróleo russo ainda é duvidoso, parece que dificilmente terão êxito aquelas que visam atingir o gás natural do Kremlin.
Até o fim do ano passado, cerca de 45% do gás consumido na Europa vinha da Rússia. O plano da União Europeia era substituir pelo menos 2/3 das importações de gás natural russo, até o mês de dezembro.

Vários países da região, onde o gás russo representa de 65% a 100% do total de que necessitam, reclamaram com firmeza. A redução proposta ainda não foi avante.

Enquanto alguns países toparam embargar totalmente o gás russo, outros continuaram importando, às vezes volumes menores do que o habitual. Por sua vez, a Gazprom (principal fornecedora do gás natural) através de diversas paralisações (para manutenção, conserto de equipamentos, ajustes etc.) foi reduzindo gradativamente as quantidades do produto disponibilizadas a cada país. Desse modo, a participação russa nas importações de gás da Europa diminuiu: foi de 45%, em abril de 2021, para 31% em abril de 2022.

Mesmo assim os rendimentos da empresa estatal russa não diminuíram. Pelo contrário: estima-se que serão 85% maiores neste ano, devendo chegar a cerca de 100 bilhões de dólares, devido aos aumentos dos preços do produto, causado pelos consideráveis cortes nas exportações de gás para a Europa pelos gasodutos russos e à invasão da Ucrânia.

A última paralisação dos oleodutos da Gazprom foi no início de setembro. Nessa ocasião, a empresa informou que a volta dos fornecimentos de gás seria em data indefinida.

Mas, logo em seguida, Putin pôs suas cartas na mesa: os oleodutos só voltariam a funcionar caso as sanções contra a Rússia fossem canceladas. Ou seja: enquanto isso não acontecesse, os clientes europeus ficariam sem gás.
Horror no Velho Mundo. Com o inverno se aproximando e com reservas de gás insuficientes em muitas nações, a situação do povo europeu seria catastrófica.

Os EUA e a União Europeia não perderam tempo em acusar Putin de chantagem (US News,5/9/2022). Tinham toda a razão. Só que eles também estavam praticando a mesma infração, pois suas sanções, que ameaçam devastar a Rússia, caso Putin não se renda, não deixa de ser chantagem nua e crua.

E o feitiço se volta contra o feiticeiro

Evidentemente os EUA e as grandes potências da Europa se acham acima do bem e do mal, costumam dar-se ao direito de fazerem à vontade o que criticam nos outros. Tanto a invasão da Ucrânia, quanto as sanções contra a Rússia são chantagens, pois as duas ações ameaçam devastar países e vitimizar seus habitantes, a não ser que sejam atendidas suas exigências.

É claro que o lance russo é muito pior do que o do Ocidente. Em matéria de malefícios, nada se compara à guerra. No entanto, as duas partes estão sendo castigadas. Só que as sanções que atingem duramente a Rússia estão se voltando para atingir de forma semelhante àqueles que as lançaram, ou seja, os EUA e a Europa.

Na guerra econômica, que se trava em paralelo com a militar, o aumento vertiginoso dos preços do petróleo e do gás natural contamina quase todos os produtos essenciais à vida moderna, tornando-os insuportavelmente caros para a maioria dos cidadãos.

À medida que a crise do custo de vida vem se aprofundando, os consumidores evitam compras para poupar dinheiro e assim poder enfrentar a recessão que se visualiza (pesquisa do “S&P Global’s final composite Purchasing Managers’ Index”).

O inverno, que se aproxima, acrescenta novos e dramáticos problemas. Diante da ameaça de Putin de cortar totalmente o suprimento de gás dos países europeus, que dele dependem para conviver com temperaturas abaixo de zero, a União Europeia tenta buscar soluções possíveis, desde novos fornecedores de gás de outros continentes, racionamentos, uso de fontes alternativas de energia e armazenamentos de gás, muito acima do normal.

Se terão êxito, é incerto. Diante da invasão da Ucrânia, os estadistas ocidentais deveriam ter contido sua justa ira e observado que sanções, historicamente, não funcionam.

Apoiar adequadamente as forças armadas ucranianas era certamente necessário. Mas teriam eles aplicado todos os seus esforços para tentar resolver a crise negociando, antes que ela se voltasse contra seus próprios países e se espalhasse pelo mundo?

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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