Correio da Cidadania

Apesar da invasão, os russos também têm direitos humanos

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Killing Darya Dugina: own goal for Ukraine? - The Hill Times
Em 20 de agosto, na volta de um festival nos arredores de Moscou, uma bomba explodiu o carro dirigido pela jovem jornalista russa Darya Dugina.
Darya era nacionalista, partidária do presidente Putin, cujas posições defendia como apresentadora e comentarista na TV estatal.

Dois dias depois da sua morte, as autoridades russas anunciaram que um dos autores do crime fora descoberto. Tratava-se de uma agente ucraniana, que, porém, já conseguira fugir para a vizinha Estônia.

Passaram-se alguns dias e o nome de um segundo criminoso foi revelado pelos policiais. Também estava fora do alcance do braço da lei, pois desaparecera.

Imediatamente, Oleksiy Danilov, secretário do Conselho de Segurança da Ucrânia, negou que seu governo tivera algo a ver com o caso. Aproveitou o embalo para acusar os serviços especiais russos de terem assassinado Darya para incendiar a ira antiucraniana do povo moscovita, a qual, ultimamente, anda meio apagada.

Logo após, surgiu na Estônia um desconhecido ex-parlamentar russo, Pononarenko, que jurou ter sido uma mítica organização russa a responsável pela explosão da bomba. Segundo esse misterioso personagem, o atentado marcaria uma onda de atos semelhantes destinados a desestabilizar o governo Putin.

Como ninguém apresentou provas, ninguém foi levado a sério pela opinião pública internacional. Até que... surpresa!

No respeitável New York Times, um oficial norte-americano de inteligência informou (sob condição de anonimato) que setores do governo da Kiev autorizaram a explosão da bomba fatal (Reuters, 6/10/2022).

Para salvar a face da América, ele garantiu que a inteligência estadunidense estava por fora, não teria sido informada previamente da operação. Se fosse, seria contra. E o informante contou que seus colegas criticaram os ucranianos por terem efetuado essa estripulia.

A notícia do New York Times, logo repercutiu em vários outros jornais, foi uma revelação extremamente grave já que, de acordo com as leis humanitárias internacionais, “civis não podem ser mortos, a menos que durante certo espaço de tempo eles tomem parte direta nas hostilidades”.

Como Darya não estava a fim de disparar mísseis contra objetivos ucranianos, matá-la fora um crime de guerra. Não dava para Kiev contestar a autoria do crime, não se tratava de um fake news, o The New York Times não costuma publicar notícias falsas, embora seus comentários e opiniões nem sempre sejam convincentes.

Havendo ainda dúvidas, elas se tornam irrelevantes, lembrando que sendo um firme adepto da Ucrânia, o jornal só veicularia uma ação ilegal dela se tivesse a mais absoluta das certezas.

Como o governo ucraniano garante que respeita os direitos humanos, deveria ordenar uma investigação, inclusive para apurar responsabilidades.
É o que Pangloss acharia, mas o presidente Zelensky não fez nada disso.
Preferiu adotar a estratégia do silêncio, muito usada para fazer uma acusação pela imprensa passar batido.

Pouco depois, o governo Zelensky mostrou que também sabia fazer barulho, ao clamar que seu país fora ofendido, quando isso nem de leve havia acontecido.

Durante audiência semanal, o papa Francisco condenara a guerra da Ucrânia, referindo-se de passagem ao caso da jornalista russa, no atentado do carro-bomba: “eu penso na pobre garota (Darya) que foi explodida por uma bomba colocada sob o assento de seu carro, em Moscou. Os inocentes pagam pelo preço da guerra. Pensemos nessa realidade e digamos um para o outro: a guerra é uma loucura”.

Franciso disse ainda que dirigia seus pensamentos à Ucrânia e à Rússia; “penso que ela, a Mãe de Deus, olhe para essas duas pátrias bem amadas e as oriente para a paz que todos nós desesperadamente precisamos”.

As palavras emocionadas do papa foram recebidas pelos chefes ucranianos como um verdadeiro libelo em favor dos invasores russos. Kuleba, o ministro das Relações Exteriores, convocou o núncio apostólico (representante do Vaticano em Kiev) ao seu ministério para lhe expressar o profundo desapontamento da Ucrânia e do seu povo diante da postura do papa Francisco.

Em diplomacia, essa convocação só acontece em situações graves.
Andriy Yurash, embaixador ucraniano na Santa Sé, não quis ficar atrás do seu chefe. Foi até mais longe.

Usou o facebook para deplorar: “o discurso de hoje do papa foi decepcionante e me fez pensar em muitas coisas: não se pode falar do agressor e da vítima, do estuprador e do estuprado nas mesmas categorias”.

Deduz-se que Yurash vê todos os russos seguidores de Putin como autênticos bárbaros, que praticam os mais condenáveis delitos. “Todos os russos” inclui até mesmo Darya, identificada no sinistro rol dos agressores e estupradores, mencionados pelo candente diplomata. Afinal, ela fazia uma propaganda maligna pró-Rússia, pela televisão. Chamá-la de “pobre jovem” e de “inocente” seria inaceitável.

Para Yurash, esses termos só poderiam ser aplicados às vítimas ucranianas, nunca a seus algozes. Darya poderia ser um deles já que integrava a horda de invasores empenhados na destruição da Ucrânia.

Yurash terminou sua diatribe com chave de ouro: desvendou o mistério com uma conclusão que faria Hercule Poirot engolir em seco: “Ela (Darya) foi assassinada pelos russos como uma vítima sagrada e agora é um escudo de guerra”.

Coube a Podolyak, conselheiro do presidente Zelensky, explicar de um modo menos místico porque seu governo jamais assassinaria a jornalista.
“(Um assassinato político) deve cumprir algum objetivo específico, tático ou estratégico. Alguém como Dugina não é um alvo tático ou estratégico”.

Com isso, ele deixou claro que para seu governo seria plenamente justificável matar uma pessoa que considerasse um alvo estratégico. Isso aconteceu pelo menos uma vez. Nesse mesmo mês de agosto, o serviço secreto de Kiev envenenou Volodmyr Saldo, um líder pró-russo na região de Kherson, conforme revelação de um oficial ucraniano de nível sênior.

É verdade que, ao invadir a Ucrânia, os russos praticaram o pior entre os piores crimes de guerra. Mas isso não autoriza ninguém a desrespeitar os direitos humanos desses cidadãos.

O próprio Biden tem essa opinião. Segundo Ned Price, porta-voz do Departamento de Estado, os EUA condenam inequivocamente o assassinato de civis específicos, de acordo com a lei humanitária internacional (Al Jazeera, 6/10/2022).

Ao que parece, é crença geral na Ucrânia que os russos e seus apaniguados estão fora dessa regra.

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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