Correio da Cidadania

Liz, a Breve, sai, deixando o Reino Unido à beira da recessão

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O povo inglês tem uma série de valores comuns a outros povos europeus, mas tem também certas singularidades: para os súditos de Carlos III, é inaceitável que um governante desmoralize suas próprias convocações. Foi o que fez Boris “Bojo” Johnson, o premiê de plantão.

Em plena pandemia, tendo determinado que toda a nação, em hipótese alguma, participasse dos habituais festejos de fim de ano, Bojo pisou na bola, ao tomar parte em um animado wine and cheese com amigos e funcionários do seu gabinete.

Ante esta despudorada transgressão das proibições que ele impusera em prol da proteção da saúde da nação, os cidadãos britânicos ergueram-se em protestos, num ruído estrondoso que abalou a ilha.

Boris defendeu-se, ele mal passara por uma festinha, que, aliás, foi a única onde estivera. Sorry, não foi a última.

Espoucaram denúncias de várias outras abrilhantadas pela fagueira presença do relapso premiê. Aí, não deu outra, a nação ergueu-se com todo peso de uma reprovação unânime, exigindo sua cabeça, além do corte dos seus revoltos cabelos.

Boris perdeu o rumo e, depois de vários lances desastrados, teve de pedir demissão do seu cargo e da liderança dos conservadores.

Nos tempos de hoje, o Partido Conservador é formado por descendentes de cavaleiros que lutaram ao lado de Ricardo Coração de Leão nas Cruzadas e de figuras enobrecidas por suas proezas na Bolsa Valores ou nas mesas de Gin Rummy, entre uma grande variedade de gentlemen bem postos na vida, unidos no respeito aos tradicionais valores britânicos e aos princípios do liberalismo.

Como conservadores modernos, eles aceitam reformas, desde que não reformem muito, e que a economia nacional seja dirigida com eficiência, para garantir a estabilidade necessária a seus negócios e caças à raposa.

Eleita em 6 de setembro para suceder a Bojo, Liz Truss, vibrante ex-executiva da Shell, parecia capaz de enfrentar a terrível ameaça de uma recessão que se aproximava da ilha, consequência da pandemia, da guerra da Ucrânia, do Brexit e das estrepolias do seu antecessor.

Como secretária do Exterior da administração Boris Johnson, madame Truss demonstrara ser um dos mais ferozes falcões que ocuparam esta pasta. Nada mal para mostrar ao mundo que o leão inglês ainda tem dentes, pensou a maioria dos conservadores.

Durante sua estada no governo, Liz declarou-se fã dos EUA, com quem preferia que o Reino Unido tivesse relacionamentos mais estreitos do que com os países da Europa (CNBC, 6/8/2022).

Foi a maior entusiasta da adesão ao apelo de Joe Biden ao Ocidente para se formar fileiras sob a liderança de Washington na luta contra o expansionismo autoritário da China.

Defendeu que o Reino Unido reduzisse a dependência (discutível) à China e à Rússia, tendo apoiado diversas sanções diplomáticas e econômicas contra Pequim. Chegou a acusar seu colega de partido, Rishi Sunak, de um suspeito desejo de maior aproximação com os chineses. Prestou forte apoio à Taiwan nas suas complicadas quizílias com o governo do presidente Xi.

Proclamou que o regime de Pequim não respeitava as regras de comunidade internacional e estaria rapidamente construindo uma força militar “capaz de projetar seu poder nas áreas de interesse estratégico internacional”.

E Liz ainda confessou ser uma “imensa amiga de Israel” e que, claro, faria questão de aprovar a anexação ilegal de Jerusalém pelo governo sionista e a mudança da embaixada inglesa de Telavive para a Cidade Santa, ignorando a proibição do Conselho de Segurança da ONU, a qual vem sendo respeitada por quase toda comunidade internacional, com exceção dos EUA (depois de Trump), Guatemala, Kosovo e mais algumas ilhotas do Oceano Pacífico.

Para ela, a China deveria ser incluída na lista de “ameaças oficiais” à segurança nacional britânica. E, se necessário, garantiu, não vacilaria em iniciar uma guerra nuclear.

No seu último ano como secretária do governo Jonhson, Liz advertiu que o Ocidente poderia perder o controle do comércio global, a não ser que pegasse duro com a China.
Era, enfim, a líder europeia dos sonhos mais queridos do presidente Biden, ao ponto de deixar mrs. Biden um tanto enciumada.

Em 23 de setembro, com o ardor e a segurança já conhecidos, madame Truss apresentou o seu aguardado plano para tirar o Reino Unido do buraco e adentrar a estrada do crescimento.

Era de fato, um plano absolutamente insólito.

Propunha cortar as taxas do imposto de renda dos mais ricos (empresas e pessoas) de 45% para 40% e subsidiar com fundos bilionários as contas de energia que já tinham subido mais de 300% nos últimos anos. Não contente com tantas benesses às classes favorecidas, cancelava um aumento de impostos industriais que cresceriam de 19% para 25%, planejado na administração anterior.

Com esses generosos cortes e subsídios, os mais ricos, o 1% do Reino Unido, ficariam mais ricos, e os 99% restantes ganhariam contas de eletricidade menos salgadas.

Análise do think-tank, Instituto de Estudos Fiscais, calculou que, com os cortes e os subsídios, os ricos, em média, embolsariam 150 libras mensais, e os pobres recheariam suas carteiras em geral vazias com cerca de 60 cents, no mesmo período.

O plano Truss, no começo, até que não desagradou os conservadores, afinal, dinheiro a mais nunca fez mal a ninguém.

Mas eles logo perderam a tradicional fleuma britânica quando viram que não havia fundos previstos para cimentar o gigantesco rombo que a benignidade fiscal de madame Truss traria às contas públicas. A audaciosa primeira-ministra limitava-se a solucionar esse incômodo detalhe com empréstimos certamente bilionários, justo no momento em que a inflação subia rápido, ultrapassando 10%, a maior nos últimos 42 anos.

Tanto os nobres quanto os plebeus conservadores visualizaram a recessão ganhando velocidade de Fórmula 1, ameaçando o país e cada um deles à mais amarga das situações.

A rejeição do aterrador plano da nossa Liz foi geral, partindo de toda a oposição e dos próprios companheiros de partido da ardente premiê. E alcançou o mercado financeiro, puxando a libra para baixo, para o menor valor histórico diante do dólar, enquanto o custo da dívida pública entrou em modo de crescimento acelerado, tornando os juros dos empréstimos a empresas e pessoas físicas mais altos.

O Banco da Inglaterra precisou agir para conter uma forte liquidação que já se desenhava nos mercados de títulos do governo britânico, expandindo suas compras de emergência para dívidas indexadas à inflação em estimados 65 bilhões de libras. Foi um movimento extremamente raro, mas necessário para impedir uma crise financeira, capaz de detonar a temida recessão que assombrava a ilha.

Tentando acalmar seus indignados contestadores, madame Truss informou que os danos aos recursos públicos seriam aliviados por duros cortes em diversas áreas.
Saúde, Educação e Assistência Social, talvez as áreas mais importantes para a maioria da população, eram as mais prováveis vítimas dos ajustes previstos. Experts calcularam que cortes acima de 2% nessas áreas seriam virtualmente impossíveis.

Mesmo chegando a 15%, os recursos conseguidos nestes e em outros setores da administração gerariam menos da metade das economias consideradas essenciais pela reforma de madame Truss.

Se o governo concretizasse esse arrocho, o povo inglês sairia prejudicado, pois perderia na qualidade e na quantidade dos serviços públicos. Era de se esperar uma resposta nas urnas profundamente desagradável ao Partido Conservador, hegemônico no governo.

A indignação de grande parte dos ingleses seria incrementada pela hostilidade da ministra aos sindicatos. Onze organizações trabalhistas estão já estão processando Jacob Rees-Morgen, secretário do Comércio de madame Truss, por novas leis concebidas para sabotar o direito de greve (The Telegraph, 20/9/2022).

A classe trabalhadora começa a agitar-se diante da possível eliminação do chamado Triple-lock, em que se define o aumento anual das pensões pela inflação, pelos salários médios ou em 2,5%, o que fosse mais alto.

Depois de Liz negar que houvesse se comprometido em manter o triple lock, os pensionistas temeram que ela optasse por definir as pensões pelo índice mais baixo – a média dos aumentos de salários - em vez pelo mais alto - a inflação - como vem sendo costumeiro no país de Charles Dickens. Com isso, a partir de abril, 12 milhões de pessoas passariam a receber pensões com valor inferior às 430 libras a que fariam jus, conforme o Triple lock, o que poderia reduzir sensivelmente os rendimentos de grande parte das famílias inglesas, especialmente as mais carentes.

Dar dinheiro aos ricos e tirar dinheiro dos pobres e assim ameaçar levar o país ao caos foram motivos para fazer crescer o número de conservadores que exigiam a renúncia de Liz Truss.

Sentindo o perigo, ela procurou salvar-se: demitiu o ministro das Finanças para ter um bode expiatório e nomeou para seu posto Jeremy Hunt, um hábil parlamentar, amplamente bem-visto entre seus pares.

Seus planos foram sendo gradativamente edulcorados, como o imposto de renda máximo reduzido para 20%, mas não adiantou muito. A revolução anti-Truss acabou tomando conta do partido, vitaminada pelas desalentadoras revelações da última pesquisa da You Gov, na qual o Labour derrotaria os conservadores por uma margem de 33 pontos (53% x 20%), a maior nos últimos 25 anos.

Combativa, Liz não quis entregar a rapadura, mas afinal teve de desistir sob o aplauso de 80% dos ingleses que deram péssimas notas para seu governo.

Um pouco antes da sua tão esperada mudança de Downing Street, 10, para endereço não sabido, ela teve tempo para propor a redução dos salários dos funcionários públicos (excetuando-se os que trabalham nas regiões de Londres e do Sudeste da Inglaterra).

O bilionário Sunak, eleito para seu lugar, vai ter um trabalho dos mais árduos pela frente (alguns auguram uma missão impossível): salvar o Reino Unido da recessão, para a qual madame Truss contribuiu decisivamente.

Foram apenas 44 dias no poder, nunca tantos problemas se acentuaram num período tão curto, por obra e graça de Liz, a Breve.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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