Correio da Cidadania

Biden lança na Ucrânia as bombas anticivis

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ilustração de uma bomba de fragmentação
Reprodução: Free 3D | Arte: Portal Metrópoles

Em 28 de fevereiro de 2022, Jen Psak, então secretária de imprensa do Casa Branca, declarou que a Rússia estaria usando bombas de fragmentação (cluster bombs) na guerra da Ucrânia. O que, para seu governo seria, provavelmente, cruz, credo... um crime de guerra.

Nos meses seguintes, não se falou mais no assunto. Soube-se pela Human Rights Watch que, não só a Rússia, também a Ucrânia vinha fazendo o mesmo ato violador do direito humanitário.

Tratava-se de uma prática pontual, usada em quantidades pouco significativa, por isso não se falou mais no assunto.

Quando a guerra já vinha bem adiantada, chefes militares dos EUA e o presidente ucraniano, Zelensky, pressionaram Biden para enviar esse armamento, abundante nos armazéns do exército estadunidense.

A princípio, Biden resistiu. E tinha suas razões. As bombas fragmentárias, ao detonarem, lançam em todas as direções centenas de pequenas bombas (as bomblets), que atingem quem estiver a seu alcance. O qual é vasto, cobre uma distância equivalente a quatro campos de futebol somados.

São armas anticivis por que os civis têm sido suas principais vítimas. Como em combates limitados às forças em luta ocupam áreas bem menores, as bomblets atingem gente que está longe, entregue a suas ocupações diárias, alheias à guerra.

E pior: quando elas falham (entre 10% e 40% das vezes, segundo a Cruz Vermelha), permanecem no solo, durante até mesmo décadas, matando ou ferindo quem as pegar.

As crianças têm sido vítimas especiais por que, pensando se tratar de brinquedos, as manuseiam e assim acabam perdendo braços, pernas ou a vida.

Esse armamento devastador foi usado pela primeira vez por forças nazistas, na 2ª Grande Guerra Mundial, na blitzkrieg que levou a derrota de exércitos da Inglaterra e da França unidas. Nas guerras que se sucederam, 25 países imitaram as tropas hitleristas.

Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, as bombas fragmentárias já mataram entre 56,500 a 86,500 civis. Calcula-se que 15% delas falharam, guardando seu enorme poder letal para atingir cidadãos incautos.

Não havia nada no Direito Internacional condenando especificamente o uso desse traiçoeiro armamento. O elevado número de pessoas que vinham morrendo em cada guerra e nos anos seguintes provocou a reação da comunidade internacional em 2008: 130 países assinaram uma Convenção que proíbe sua fabricação, transporte ou uso. Ao mesmo tempo foi exigida a destruição dos estoques ainda existentes.

Alguns países ou não concordaram ou se negaram a confirmar sua adesão inicial à convenção de Genebra, entre eles os EUA (o maior produtor), a Rússia, a Ucrânia, Israel, China, Canadá, Coreia do Sul, Índia e Paquistão.

Mais de 100 países ficaram firmes, comprometendo-se a respeitar a nova disposição legal.

Embora ficando em cima do muro, os refratários consideram imoral e desumano o uso das bombas de fragmentação, algo inaceitável pelos padrões éticos vigentes na civilização. Talvez por isso, os norte-americanos, embora negando-se a assinar a proibição de produzir e comerciar as bombas, comprometeram-se a destruir todo o seu imenso estoque até 2018.

A moral começou a ser esquecida logo em 2010, quando os EUA foram acusados de fornecer bombas fragmentárias à Arábia Saudita, que as usou contra os rebeldes iemenitas, matando 35 mulheres e crianças.

O Pentágono negou, mas a Anistia Internacional apresentou provas indiscutíveis, reforçadas por comunicações da diplomacia norte-americana, reveladas pelo Wikileaks.

A estas alturas, as lideranças militares e republicanas nos EUA afirmavam que as bombas fragmentárias causavam poucas mortes de civis, já que, os novos e aperfeiçoados modelos falhavam apenas em 1% dos casos. Nos anos seguintes, esse número de 1% de fatalidades foi descartado como falso, embora se sustentasse ser, ainda assim, pouco superior ao real. Revelando intenções dúbias, em 2017, a Casa Branca anulou a promessa de destruir seus estoques até 2018.

Com a Guerra da Ucrânia cresceu a pressão, engrossada pelo presidente Zelensky, para Biden liberar o fornecimento desse tipo de armamento para o país invadido.

Os meios militares e os políticos do chamado War Party argumentavam que o uso dessas armas reduziria a necessidade de fornecer novos aviões e sistemas de artilharia para apoiar as operações militares ucranianas, o que pouparia enormes gastos com novas armas, munições e recursos logísticos. Isso, é claro, além da maravilhosa eficiência das bombas fragmentárias pois cada uma matava ou feria até dezenas de inimigos.

Biden acabou esquecendo o direito humanitário e os princípios morais em 7 de julho deste ano, ao aprovar o envio das cluster bombs, num pacote de 800 milhões de dólares. O governo de Kiev receberia munições convencionais de artilharia aperfeiçoadas, cada uma contendo 72mm, pequenas bombas inseridas em bombas de artilharia de 155mm, projetadas para espalhar munições para todo o lado.

Conforme o New York Times, numa média bastante realista, 14% das bombas deverão falhar. Caso os EUA enviem pelo menos 100 mil delas, colocariam civis em sérios riscos de perder a vida, uma perna, um braço, entre outras lesões. Note-se que oficias do Pentágono informaram que seriam fornecidas “centenas de milhares.”

Como o Dombass e parte do sul da Ucrania caíram sob o controle do exército russo, será sobre essas áreas e seus habitantes ucranianos que Zelensky lançará suas novas armas anticivis, já que ele se comprometeu a não lançá-las em território russo .

Falando à reportagem, Biden explicou que decidira liberar o envio de bombas de fragmentação para o governo de Kiev: “porque os EUA e a Ucrânia estão ficando sem munições. Portanto, eu finalmente, aceitei a recomendação do Departamento de Defesa para – não permanentemente - liberar essas munições para os ucranianos (CNN, 9/7/2023).

Colin Kahl, subsecretário de Defesa, desmentiu seu chefe. Apesar de Biden afirmar que o envio de cluster bombs ao governo de Kiev seria temporário, Kahl declarou: “os EUA armarão a Ucrânia com “centenas de milhares dessas armas”, quantidade que exigiria anos para ser lançada. “Temporário” sugere um espaço de tempo reduzido.

Em outras palavras, serão centenas se milhares de bombas de fragmentação enviadas para dar um empurrão na contraofensiva ucraniana que, como é notório, empacou com todos os seus supermísseis, aviões de caça de última geração e tanques que só faltam falar.

O comportamento hipócrita do presidente norte-americano não foi surpresa, afinal em menos de um ano de governo, o ex-vice de Obama já pisou na bola várias vezes, mostrou que os interesses políticos do seu governo, e dele, estão acima dos princípios morais, legais ou humanos.

Cito seu apoio às devastações causadas nas cidades palestinas da Cisjordânia pelos raids do exército israelense, os bombardeios de Gaza e o veto a providências efetivas da ONU para barrar a expansão dos assentamentos e a manutenção das sanções de Trump, que destroem a economia do Irã e o bem-estar do seu povo.

Os ring-brothers de Biden, Anthony Blinken e Jack Sullivan, apressaram-se em aprovar e enaltecer a decisão do chefe, mostrando-se dignos sucessores de Mike Pompeo, a alma gêmea de Donald Trump.

O elegante Blinken declarou que sem as bombas anticivis, a Ucrânia estaria “sem defesa”. Já o vibrante Sullivan foi mais longe, afirmou que as cluster bombs norte-americanas eram muito menos mortais do que as russas, acrescentando sem comprovação: somente 2,5% delas falhavam, sendo muito menos danosas do que as russas, as quais explodiam entre 30% e 40%, liquidando um número bem menor de inocentes cidadãos.

Criticaram também esse mau passo de Joe Biden, o Human Rights Watch, a maioria do normalmente servil Partido Democrata, e os amigáveis governos do sempre fraternal Reino Unido, além da Espanha, França, Canadá e Nova Zelandia, e mais um lote de países europeus.

Zelensky garantiu a Biden que jamais usará as benvindas armas contra áreas habitadas por cidadãos civis, nem contra territórios russos.

Acredite se quiser. O Human Rights Watch contou que Kiev já as está usando em áreas habitadas da cidade de Donetsk, dominada pelo exército russo mas com boa proporção de cidadãos ucranianos, e na cidade de Izium, recuperada pelo exército da Ucrânia.

Logo após a publicação de Biden, Hun Sen, primeiro ministro do Camboja, escreveu uma carta aberta a dizer: “Será extremamente perigoso por muitos anos ou até por mais de 100, se as bombas fragmentárias forem usadas nas áreas ocupadas pela Rússia no território da Ucrânia”. Em seguida, informou que na Guerra do Vietnã os EUA lançaram 26 milhões de pequenas bombas de fragmentação no Camboja e cerca de 25% falharam.

E Sen ofereceu seu testemunho: “Desde 1970, cerca de 20 mil cambojanos já foram assassinados por bombas norte-americanas que não explodiram e minas terrestres enterradas durante a guerra civil do Camboja”. E completou: “Já se passou meio século. Não houve jeito de conseguir destruí-las”.

O Camboja e o Laos foram tomados por governos comunistas, que permitiam a passagem dos vietcongues por seus territórios durante a Guerra do Vietnã. Tornaram-se, assim, alvos de ataques aéreos norte-americanos; 200 mil soldados e civis – um décimo da população do Laos – foram mortos, sendo que 50 mil civis por ação das bombas fragmentárias.

Entre 1964 e 1973, o Laos sofreu 580 mil bombardeios, de acordo com o Departamento de Defesa dos EUA (NPR, 11/7/2023). Durante os anos 60 e 70, 270 milhões de submunições fragmentárias foram lançadas, cerca de 1/3 não explodiram e continuam representando perigo nos dias de hoje.

Apesar das variadas estimativas dos índices de cluster bombs que não explodem, pesquisadores independentes fixam esse número em 10% a 40%, dependendo mais de causas externas (clima, estado do terreno, ventos etc.) do que de características da sua fabricação.

O anúncio do lançamento de armas fragmentárias para a Ucrânia foi feito em escala mundial. Biden preferiu deixar bem claro que está disposto a fazer de tudo para derrotar Putin, mesmo contrariando os tão reverenciados valores norte-americanos, suplantados pela necessidade do morador da Casa Branca de vencer as próximas eleições presidenciais, em novembro de 2024.

Infelizmente, para o povo dos EUA e para os demais moradores do planeta Terra, a grande decisão será fatalmente entre ele e Trump. Escolher entre os dois não será fácil, como foi na eleição passada.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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