Correio da Cidadania

A contraofensiva vai mal. E agora?

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Ocidente mostra decepção com a contra-ofensiva da Ucrânia
Em fevereiro de 2022, tanques e outros enormes veículos armados tomavam as estradas da Ucrânia durante dias e dias, sem parar. Era o Leviatã russo em demanda de Kiev para arrasá-la e subjugar o governo do país. A capital ucraniana parecia ter os dias contados.

Mas Kiev resistiu, e Putin envergonhado teve de recuar para melhores posições, decerto rogando pragas. Atribui-se essa derrota à incompetência dos comandantes russos, ao insuficiente número de soldados e à onipotência de Putin, que julgava que diante dele Kiev cairia como as muralhas de Jericó.

Os ucranianos, desde 2018, vinham recebendo vasto e variado suprimento de armamentos defensivos dos EUA e da Europa, reduzindo a desproporção de forças em relação ao poderio russo.

Sem dúvida, pesou muito na vitória ucraniana em Kiev a ardente motivação dos jovens voluntários que se alistaram em massa para defender sua pátria da agressão injusta de um inimigo muito mais forte.

Motivação que deve ter faltado aos soldados russos. Não foram as ridículas justificações de Putin que os levara a participar da guerra. Se não fosse a obrigação legal, poucos entrariam nessa fria.

A diferença entre resolução e desinteresse deve ter contado no desenvolvimento das batalhas. Apesar de nos outros alvos iniciais da invasão – o Donbass, no Nordeste e as regiões do Sul -, as tropas russas terem conquistado nutridas fatias do território ucranianos, a resistência de Kiev foi destacada como um feito ímpar, uma página gloriosa na História da Ucrânia.

Meses depois, os ucranianos conseguiram outros significativos sucessos. Uma ofensiva de suas forças no Norte expulsou os russos da área entre Kiev e a fronteira com a Belarus. No Donbass, onde a maioria do povo é de etnia russa, o exército de Zelensky impediu que os adversários tomassem a pequena parte da região que lhes faltava. No Sul, avanços do exército da Ucrânia recuperaram as cidades de Kherson e Bakhmut, depois de combates furiosos, com muitas baixas em ambos os lados e uma grande quantidade de armamentos destruídos.

Nos EUA e Europa, a euforia foi semelhante à de quem ganhou na Super Sena.
Era o momentum das forças de Zelensky.

Acreditava-se que começara um influxo – os ucranianos avançariam para objetivos mais ambiciosos e os russos recuariam para uma retranca humilhante.

Tomado de furor bélico, o presidente Zelensky anunciou uma formidável contraofensiva, que retomaria tudo o que fora ocupado pelos russos e os expulsaria para fora do solo sagrado da Ucrânia.

Em todas asa nações da OTAN, o entusiasmo foi total. Bem, não exatamente. O general Mark Milley, chefe do Estado-maior combinado das forças armadas norte-americanas não concordou: “Há um mútuo reconhecimento de que uma vitória militar, no verdadeiro sentido da palavra, talvez não seja conseguida através de meios militares e, portanto, você precisa usar outros meios”.

E Milley estendeu-se, afirmando que o melhor momento para a negociação de um cessar-fogo (“os outros meios”) seria agora que EUA e OTAN estavam em vantagem, portanto em condições de exigir um acordo favorável de um adversário combalido, mais preocupado em lamber suas feridas.

Políticos, generais e jornais não deram a mínima. Menos, Milley, disse Biden, agora que temos chance de esmagar os russos, você quer jogar um salva-vidas para Putin escapar (ainda que molhado)?

Possivelmente, Biden não disse exatamente isso, mas persistiu no objetivo de liquidar Putin e a Rússia, o que o colocaria acima de Kennedy e de Obama, perante seu povo. Claro, além de tornar os EUA o líder inconteste do planeta.

E para mostrar sua devoção ao princípio da soberania das nações, ele declarou que a decisão de atacar ou não pertencia ao presidente da Ucrânia. Este, depois de se certificar de que não se tratava de uma piada, pegou o freio nos dentes e partiu para um tour pelo mundo, pregando a causa do seu país e as necessidades de mais e melhores armas para a projetada e necessária contraofensiva (sempre recebido com tapete vermelho, guardas de honra, homenagens e festins patrióticos).

E teve êxito. Os EUA e a Europa encheram a Ucrânia com modernos e terríveis armamentos. Mas Zelensky não ficou 100% satisfeito. Precavido, adiou a contraofensiva prevista para março, pois ainda faltavam tanques, sistemas antimísseis, mísseis de longo alcance, munições e aviões de combate, necessários para a magnitude da operação que iria desencadear.

Nenhum dirigente de país europeu deixou de atender ao ucraniano. Alguns prometeram até mesmo enviar as joias da coroa: seus aviões F-16, de produção americana, os mais modernos da atualidade, sendo que os EUA também assumiram o treinamento dos pilotos e mecânicos destes sofisticados armamentos. E, claro, manteriam o fluxo de armas, armamentos e munições, inclusive as bombas de desintegração, proibidas em cerca de 110 países, por sua capacidade de matar civis, mesmo muitos meses depois de lançadas.

Enquanto Zelensky apelava por mais armas aos estadistas da OTAN, os russos tratavam de tornar inexpugnáveis três linhas de defesa, que se interpunham, de norte a sul, entre suas forças militares e as ucranianas.

Todos os terrenos que protegiam estas fronteiras viraram campos totalmente minados por toneladas desses explosivos engenhos.

E atrás das trincheiras, a artilharia russa desdobrava-se por toda a fronteira que separava os inimigos, com os seus temíveis e avançados canhões e mísseis, enquanto centenas (talvez milhares) de aviões de caça e bombardeios, comparáveis aos melhores norte-americanos, estavam por toda parte, prontos a apoiar ataques e contra-ataques do exército de Moscou.

Desdenhando todo esse aparato bélico, Zelensky lançou sua contraofensiva em 4 de junho de 2023. Seus armamentos eram também de arrepiar. Um variado conjunto de formidáveis e avançadíssimas máquinas de guerra, criadas para expelir bombas e misseis adaptados a objetivos diversos, capazes de impressionar até os super-heróis da Legião da Justiça, que brilham no cinema, na TV e nos quadrinhos.

Apenas faltavam à contraofensiva os tão desejados F-16 que só poderiam entrar em ação no ano que vem. Ainda daria tempo para participarem dos golpes finais nos invasores.

As primeiras notícias, a conquista de alguns quilômetros, foram recebidas com júbilo nos EUA e na Europa. Mas a animação ocidental não durou muito. Em vez da triunfante entrada nas áreas sob jugo moscovita, o exército de Kiev continuava marcando passo, longe de sequer atingir a primeira linha de defesa russa.

Os desalentadores progressos das forças democráticas começaram a espalhar um véu de desânimo nos estadunidenses e europeus.

Até mesmo os próceres dos EUA e da OTAN, inclusive o teatral Zelensky, admitiram que as coisas não iam tão bem quanto se esperava. Ou traduzindo: estamos saindo mal.

Esta situação se agravou nas duras lutas que vêm se sucedendo, com gigantescas perdas, devastando as forças armadas dos dois adversários; 70 mil ucranianos mortos e 120 mil feridos, nos três meses da contraofensiva segundo informações de forças de Kiev, que garantiam que as perdas russas foram maiores.

De fato, os russos admitiram terríveis perdas humanas. Só que, ao contrário das estimativas dos inimigos, teriam sido estes que contabilizaram mais mortos e feridos.
Para dar uma ideia do significado desses números, lembro que nos 20 anos da Guerra do Vietnã morreram 58 mil soldados americanos, menos do que soldados ucranianos (70 mil) em apenas três meses de lutas.

E a matança aumenta sem parar. Enquanto nos 9 primeiros meses da guerra houve uma média mensal de 20 mil soldados mortos ou feridos, nos três meses da contraofensiva esse número já bate em 33 mil. E continua crescendo.

Chocados com a extrema lentidão do avanço que os obriga a refazer seus planos, os oficiais das forças aliadas, procuram descobrir os culpados pelo fracasso. Para alguns oficiais norte-americanos, foram os generais ucranianos que não tiveram competência para atacar usando a infantaria, a artilharia e a aviação, em conjunto.

Talvez tenham certa razão. Há alguns dados que apontam para um desperdício de munições pelos ucranianos – uma média mensal de 90 mil, munições, enquanto o Pentágono produz apenas 1/3 desse total (Responsible Statecraf, 14/4/2023). E mais: segundo o New York Times, nos dois primeiros meses da contraofensiva, a Ucrânia perdeu 20% dos armamentos da OTAN.

Mais recentemente, espalhou-se nos meios militares dos EUA que os comandantes ucranianos estariam com Casualties Averse (Aversão às baixas). Daí sua preocupação em poupar seus soldados, evitando ações nas quais os riscos de morrerem seriam altos. Essa excessiva prudência estaria limitando a eficiência ucraniana e reduzindo seus avanços.

Os ucranianos negaram, é claro. E explicaram os resultados parcos obtidos por seus exércitos na ausência, precariedade e atrasos dos armamentos prometidos pelos EUA e a Europa para a contraofensiva.

Citaram a demora da entrega dos tanques americanos Abraham, os mais poderosos do mundo, que só estariam em condições operacionais a partir de janeiro de 2024. Apenas 36 viriam, insuficientes para mudar a sorte das batalhas. Reclamaram também que os avançados F-16 demoravam a chegar, o que deixava os russos senhores do céu.

Mesmo sem apoio aéreo, tropas ucranianas conseguiram abrir uma brecha na primeira linha de defesa do exército de Moscou, tomando a pequena cidade de Robotino. Os russos rapidamente lançaram forças poderosas para impedir que os adversários ampliem o espaço conquistado, o que permitiria a entrada de reforços substanciais capazes de consolidar a posição e atacar a segunda linha de defesa.

Ali se trava uma batalha feroz e sem tréguas, sem notícias de qualquer “aversão a baixas” por parte dos ucranianos.

Seja como for, o importante é que a postura do povo, tanto ucraniano quanto russo, em relação à guerra mudou radicalmente. Acredita-se que, no começo, os homens da Ucrânia faziam filas nos centros de voluntariado, movidos pelo amor a seu país e o dever de defendê-lo de uma injusta e brutal agressão externa.

Na Rússia também foi diferente. Quando foi anunciado a convocação de 200 mil homens, que seriam treinados para a guerra, houve uma fuga em massa de russos para países vizinhos, pois não achavam uma boa morrer pelos despautérios internacionais de Putin.

O resultado desta diferença de sentimentos foi talvez o desempenho superior dos soldados ucranianos na maioria das batalhas nos primeiros nove meses da conflagração. Mas as coisas mudaram.

Com o decorrer da guerra, muitos dos ardentes patriotas ucranianos, que se atiraram impávidos contra os exércitos invasores, morreram ou foram gravemente feridos. A ficha caiu para os que sobreviveram e para aqueles que não tinham sido convocados. A possibilidade de perder a vida em circunstâncias tão arriscadas foi se tornando um preço excessivamente alto para encarar as devastadoras armas russas.

Fugindo à convocação, dezenas de milhares de cidadãos ucranianos saíram ilegalmente do país, muitos pagando subornos.

A corrupção chegou tão alto que o presidente Zelensky demitiu os militares chefes do recrutamento em todas as regiões do país (The Guardian, 15/7/2023).

Contar com inúmeros soldados inconformados por estarem combatendo contra sua vontade, certamente, não colaborou com a contraofensiva. Por outro lado, o ânimo dos soldados russos mudou de forma positiva.

O constante envio de armas modernas ao governo de Kiev por quase todos os países da OTAN os levou a não mais ver os adversários como uma fraca potência, mas como o representante de uma colossal confederação internacional.

Eles se viram participando de uma luta pela sobrevivência da Rússia e de suas famílias, ameaçadas pelas forças dos EUA e da Europa.

No momento, essa contraofensiva se arrasta lentamente e ainda assim resulta em imensos sacrifícios de soldados e armamentos e as esperanças já vão se desvanecendo.

Breve o volume das perdas do exército ucraniano será tão alto que não dará para repor.

Que opções restarão à Ucrânia e aos países que assumiram a sua causa?

No Pentágono, vozes admitem que o general Milley tinha razão, em novembro de 2022, ao dizer que, estando Putin em desvantagem, estaria propenso a aceitar as negociações de paz mais favoráveis aos aliados.

Agora, como as coisas estão invertidas, terá de ser diferente. Não se espere por um Putin conciliador numa eventual mesa de negociações.

Carregando nas costas o fracasso da contraofensiva, os aliados terão de aceitar que o ditador russo faça certas exigências, começando num cessar-fogo, no qual os russos manteriam os territórios conquistados até a assinatura de um acordo de paz definitivo.

É bobagem dizer que Putin levaria vantagem pois poderia aproveitar esses dias sem guerra para reforçar suas forças, com más intenções. Nesse caso, os aliados fariam o mesmo.

O fim das sanções contra o governo de Moscou será inevitável. Mas não é de se crer que Putin seja exigente demais. Livre da guerra, a Rússia pode se safar de uma situação econômica difícil que a aproxima de uma grave crise.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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