Correio da Cidadania

Guerra à paz em Gaza

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Soldados isralenses posam com bengalas de idosos palestinos / Foto de arquivo pessoal

No dia 31 de maio, para variar, Biden resolveu fazer algo pela paz em Gaza. Apresentou um plano aparentemente justo e realista para acabar com a guerra, visando um cessar-fogo permanente, com a retirada das tropas de Telavive do istmo de Gaza, a libertação dos israelenses sequestrados, a volta dos palestinos desalojados a suas casas (ou aos escombros que restaram) e a entrada livre de caminhões levando aos civis alimentos e outros bens necessários à vida.

Esses objetivos seriam desenvolvidos em três fases. Na primeira, quando o cessar-fogo duraria seis meses, as tropas israelenses se deslocariam para áreas não povoadas de Gaza, haveria um considerável aumento na ajuda humanitária e parte dos reféns seriam libertados, bem como centenas de palestino encarcerados em Israel.

Durante esta fase, espera-se que os dois rivais negociem um cessar-fogo permanente, iniciando-se a segunda fase com a aprovação definitiva do término das hostilidades, além dos outros objetivos básicos: libertação de todos os reféns e de um grande número de presos palestinos, a retirada das forças israelenses de Gaza e a abertura de todas as passagens para caminhões trazendo mantimentos para os palestinos. A terceira fase seria dedicada à reconstrução de Gaza.

Apelava-se para que Israel e o Hamas aprovassem logo a efetivação da proposta de paz que, Biden disse, fora obra de Israel.

Cedo verificou-se que não era bem assim. Se fosse verdade, não seria necessário submeter o plano à apreciação do governo sionista, seu presuntivo autor.

Enquanto o Hamas recebeu com simpatia a proposta de Biden (ou de Israel, acredite se quiser), Netanyahu desde logo mostrou-se descontente, taxando-a de incompleta e assegurando que Israel mantinha o objetivo da sua guerra de destruir o Hamas.

“Eu não concordei com a proposta de terminar a guerra na segunda fase, mas apenas em discutir esse passo nos termos de Telavive”, disse o premiê israelense (The New Arab, 6/6/2024)

Em 7 de junho, o lance de Biden foi apresentado publicamente, com algumas modificações em relação à versão inicial. O apoio dos estadistas estrangeiros, do povo e das forças políticas israelenses foi generalizado e entusiástico.

O Hamas repetiu sua aprovação, afinal, pouco diferia da ideia que fora recentemente apresentada pelo Egito e Catar e vetada pelos EUA. Houve alguns reparos. Não havia nada que obrigasse Israel a continuar com a segunda fase, no caso de as negociações chegarem a um impasse.

Quem iria impedir o governo israelense de sair do acordo, declarando o cessar-fogo morto e voltando a massacrar os civis palestinos?

Ninguém pensaria na hipótese longínqua da Casa Branca opor-se à decisão do seu grande amigo, aderindo a possíveis sanções que a comunidade internacional lhe deveria aplicar.

E assim a proposta foi apresentada no Conselho de Segurança da ONU e aprovada pela unanimidade dos países-membros, com exceção da Rússia, que se absteve (mas não vetou), alegando que as condições não estavam claras.

Só faltava que as partes se pronunciassem oficialmente sobre essa resolução. O Hamas manifestou-se favoravelmente às linhas gerais do plano, sugerindo poucas alterações.

A principal era que EUA garantissem explicitamente a transição da primeira fase do plano para a segunda fase, onde se estabelecia um cessar-fogo permanente e a retirada total das tropas israelenses.

Enquanto isso, Israel manteve-se oficialmente em silêncio. Que foi quebrado pelas palavras irritadas do premiê sionista. Respondendo a uma pergunta do Canal 12 de Telavive, Bibi rugiu: “a afirmação de que Israel concordou em acabar com a guerra antes de todos os seus objetivos forem conseguidos é uma mentira total”.

E esclareceu que seu país continuaria lutando até o Hamas ser eliminado, “voltando todos os nossos reféns e se assegurando que nunca mais Gaza representaria uma ameaça a Israel (Times of Israel, ‘10/6/2014)”.

Esta posição foi reforçada por Ben Gvir, líder fascista e ministro da Segurança Nacional: “O acordo significa o fim da guerra e o abandono da nossa meta de destruir o Hamas. Trata-se de um acordo imprudente, que representa uma vitória do terrorismo e uma ameaça à segurança do Estado de Israel”.

Gvir e seu parça, Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, juraram que, caso o governo fizesse alguma concessão ao Hamas, pediriam demissão, o que deixaria a coalizão de ultradireitistas seculares e fanáticos religiosos sem o número de parlamentares necessário para poder continuar dando as cartas em Telavive.

A sorte de Netanyahu é que Yesh Adid, líder do maior partido da oposição, comprometeu-se a substituir os parlamentares demissionários, face a uma eventual adesão governamental à proposta norte-americana.

Até hoje, l3 de junho, o governo Netanyahu permanece vacilante. Como disse Joe Biden, o premiê sionista toma suas decisões públicas em função dos seus interesses pessoais. Em uma entrevista à revista Time, o presidente dos EUA afirmou haver motivos para se concluir que Netanyahu estaria adiando o fim do conflito em Gaza para garantir sua sobrevivência política.

Não se ouviu qualquer discordância. Ora, se houver paz em Gaza, não haverá mais motivos para toda a população judaica continuar unida em torno do seu líder no enfrentamento ao Hamas.

Haveria, então, uma insuperável pressão da opinião pública para forçar à renúncia de um Bibi desmoralizado. Seria inevitável uma nova eleição, que o premiê teria de aceitar, sem chances de vencer.

Como resultado, perderia a proteção do seu cargo, tendo de trocar as almofadas do poder pelo duro banco dos réus, num processo criminal que vai adiantado, onde muitos apostam na sua condenação.

Não deve ser por acaso que o chefão sionista e alguns generais próximos a ele vêm falando na provável invasão do Líbano.

Mesmo que, com a aplicação do plano dos EUA, a paz chegue a Israel, seria por pouco tempo, caso Bibi iniciasse outra guerra, desta vez no Líbano. Diante dessa nova realidade, a população de Israel não abandonaria seu líder, mantendo-se ao seu lado.

Desde outubro, na fronteira Líbano/Israel, o exército sionista e o Hizbollah vêm trocando tiros, com perdas humanas e materiais consideráveis.

Em Israel, os moradores das regiões dentro de uma área a 5 quilômetros das fronteiras foram evacuados; 60 mil pessoas se viram obrigadas a se mudar contra a sua vontade. Algo semelhante aconteceu no Líbano.

Quase diariamente, lançamentos de mísseis, drones e disparos de canhões, partidos de ambos os lados, espalharam destruição nos quarteis, cidades, vilas e propriedades agrícolas. Até agora, Israel tem obtido resultados ligeiramente superiores, mas, desde o início de maio, o Hizbollah triplicou seus ataques.

E não só em quantidade, também começou a empregar mísseis e drones mais avançados, capazes de fugirem do alcance do sistema antimísseis israelenses, o Domo de Ferro, e atingirem qualquer alvo no interior do território de israel.

Não é uma posição confortável para os chefes do regime sionista. Na semana passada, Netanyahu resolveu falar grosso, ameaçou lançar uma resposta “extremamente poderosa”.

E o general Herzi Halevi, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, informou: “Estamos nos aproximando do ponto em que uma decisão deve ser tomada... O Hizbolla vem aumentado sua força nos dias recentes e nós estamos preparados depois de um ótimo processo de treinamento... para avançar em um ataque no Norte (Times of Israel, 12/6/2024)”.

O general Yaov Gallant, ministro da Defesa, foi duro, ameaçando que o Líbano “pagará o preço” das ações do Hizbollah (Middle East Eye, 31/5/2024)”. O movimento, que conta com o apoio do Irã, não deixou por menos.

No início de junho, Naim Qassem, vice-chefe do Hizbollah, disse que o grupo está “pronto para a batalha e não permitirá que Israel consiga quaisquer vitórias (Al Jazeera 4/6/2024)”.
Apesar de todo esse rugir de dentes, não acredito que Bibi resolva atacar o Líbano, onde seu inimigo, o Hizbollah, acha-se sediado.

Seria uma guerra devastadora para todas as partes envolvidas, com resultado incerto, pois, se Israel não conseguiu destruir o Hamas em oito meses de lutas, o que fará diante de um Hizbollah muito mais poderoso do que o grupo de Gaza.

Só para dar uma ideia: o Hizbollah possui cerca de 30 mil mísseis e drones, sendo que alguns tipos já provaram em ação que dificilmente podem ser derrubados pelo Domo de Ferro. Além disso, Bibi não contará com a ajuda militar de Biden pois os norte-americanos são amigos do Líbano, sua imagem internacional ficaria seriamente abalada caso suas bombas fossem usadas por Israel para novas chacinas.

O premiê sionista não receberá as bombas e mísseis dos EUA, de que seu exército tanto precisa, pois os estoques desses armamentos estão extremamente baixos.

Parece mais provável que Bibi inviabilize o acordo de paz proposto pelos EUA, dando um jeito para pôr a culpa no Hamas. O que já começou a acontecer.

Blinken, o secretário de Estado dos EUA, acusou o Hizbollah de ter feito exigências inaceitáveis, pondo em sérios riscos a proposta de paz. Já Israel estaria totalmente de acordo, apesar de não ter feito nenhum pronunciamento oficial a respeito.

Conforme informações prestadas por oficiais israelenses ao site AXIOS, o texto do plano era ambíguo no que se refere ao fim da guerra e à retirada das forças israelenses de Gaza. Determinava que, concluído um prazo de 6 semanas sem que as partes tivessem chegado a um acordo sobre o fim da guerra, as negociações parariam e os mediadores (EUA, Egito e Catar) fariam todos os esforços para convencer Israel e Hamas a buscarem uma posição conveniente a ambos.

Mas, e se esses esforços forem em vão? Aproveitando a ambiguidade do texto, Israel poderia acusar o Hamas de ter violado algum item do acordo. E aí, o plano de paz de Biden viraria lixo, enquanto as forças israelenses voltariam a bombardear o povo de Gaza e o país continuaria lutando até o Hamas ser eliminado, “voltando todos os nossos reféns e se assegurando que nunca mais Gaza representaria uma ameaça a Israel”, para usar frase de Netanyahu.

Sacando a cilada, o Hamas passou a exigir que os EUA garantissem a transição da primeira fase para a segunda, com um cessar-fogo permanente e a retirada das forças israelenses de Gaza.

Era uma autodefesa perfeitamente explicável, que respeitava integralmente o texto e o espírito da proposta Biden.

No entanto, o morador da Casa Branca apela para os governantes do Egito, do Catar, para os países do grupo dos 7 e da Europa Unida, que convençam o Hamas a assinar o acordo de paz, sem acrescentar nada.

Caso contrário, voltam os bombardeios, as violências, a fome, as mortes de civis, mulheres e crianças... Um ambiente onde Netanyahu se sente feliz.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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