Correio da Cidadania

O Labour chega ao poder após deixar princípios para atrás

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Keir Starmer
Getty Images

O Labour venceu as eleições com larga vantagem sobre o Partido Conservador, cujo segundo lugar ainda foi ameaçado pelo Partido da Reforma, do radical de direita Nigel Farage, compadre de Le Pen, Meloni e outras figuras afins.

Como líder do partido trabalhista, Keir Starmer se tornará primeiro-ministro depois de 14 anos de oposição a governos dos conservadores.

Estamos diante de uma vitória histórica do Labour. Embora ele tenha perdido sua identidade de partido de esquerda democrática, comprometido com os interesses das classes trabalhadoras, os direitos humanos e a justiça nas relações internacionais.

Esse desvio no caminho do partido foi desencadeado a partir da dura derrota do partido nas eleições parlamentares inglesas, em dezembro de 2019.

Foi uma enorme decepção para o líder Jeremy Corbyn, confiante no poder do programa trabalhista para empolgar a maioria do eleitorado.

Não propunha uma simples reforma, mas uma revolução no capitalismo inglês, com eixo no bem-estar de toda a população. Era um conjunto de políticas arrojadas, como a renacionalização dos serviços públicos, das ferrovias e de setores onde a iniciativa privada fracassara e educação para todos; sem cobrança de mensalidades aos universitários; taxas pesadas sobre os ricos, os lucros e os dividendos; revalorização do Sistema Inglês de Saúde, negligenciado pelos governos conservadores; participação dos trabalhadores nos lucros e na direção das empresas; garantia estatal de emprego; prioridade na defesa do meio ambiente.

Diz editorial do Guardian (24-11-2019): “Não há dúvida de que o manifesto do Labour, se realizado, mudaria a rota da Grã-Bretanha para torná-la um lugar melhor e mais justo para se viver”.

Mas a aposta do Labour fracassou. Os trabalhistas perderam 59 deputados na sua maior derrota eleitoral desde 1935. Houve incerteza generalizada na população de que fosse possível a realização de metas excessivamente ambiciosas. Para alguns analistas, muitas pessoas sentiram medo de que mudanças tão profundas pudessem dar errado, deixando o país à deriva.

Uma sociedade que foi à direita

Outra causa do resultado desfavorável foi a posição do partido diante do Brexit. Na época das eleições de 2009, a saída inglesa da União Europeia já havia sido aprovada há dois anos por um referendo. Os representantes ingleses e europeus não chegavam a um acordo para orientar a transição.

Enquanto a campanha eleitoral dos conservadores, agora liderados por Boris Johnson, anunciava uma pronta solução da questão, os trabalhistas, divididos entre o apoio e a oposição ao Brexit, falavam na possibilidade de um novo referendo. Não era uma ideia popular pois metade da população inglesa ansiava por tirar da frente esse problema o mais breve possível (pesquisa Ipsos Mori, 20-09-2019).

Além disso, a posição neutra do Labour era vista como contrária ao Brexit pelos trabalhadores, desejosos de que a Inglaterra se retirasse da Europa Unida. Achava-se, que, caso permanecesse, viria uma entrada em massa de estrangeiros para lhes roubar empregos. Assim, o Labour perdeu os votos cativos dos operários do Norte, dos Midlands e do País de Gales.

E perdeu as eleições. Responsabilizando-se pela derrota, Corbyn renunciou à liderança. Em 2020, seu sucessor, Keir Starmer, assumiu, propondo-se a adotar uma linha moderada, capaz de agregar mais eleitores, sem, porém, abandonar os princípios do Labor.

Nesta mudança de rota, o objetivo principal seria ganhar eleições, pois de nada adiantava defender ideias avançadas, sem poder executá-las na prática.

Discursando em sua posse, o novo líder informou que se empenharia com prioridade à extinção do antissemitismo que acreditava grassar no partido.

Foi o grito de largada na caça às bruxas, no caso, os trabalhistas de esquerda, o grupo mais hostil às políticas de Telavive. Para Corbyn, Starmer exagerava, o antissemitismo, que existiria no partido, mas de forma bastante limitada, cujo combate não justificaria ser destacado como essencial pelo novo chefe.

Seja como for, o líder esquerdista, em sua gestão, criara um processo para julgar posturas racistas, deixando claro aos envolvidos não haver lugar para o antissemitismo no Labour. Starmer não vacilou em considera-lo leniente e “completamente inaceitável”.

A fraude do “combate ao antissemitismo”

A investigação por ele formulada era extremamente severa, feita sob medida para agradar aos círculos judaicos do Reino Unido, aceitando denúncias frívolas e, taxando como antissemitas ataques contra o governo de Israel.

A esquerda do Labour, hegemônica na gestão de Corbyn, rígida na defesa dos princípios trabalhistas, era considerada por Starmer como muito radical para o povo inglês, sendo, portanto, um obstáculo ao pragmatismo do novo líder.

Dado seu profundo comprometimento com a causa palestina e os direitos humanos, os esquerdistas do Labour não economizavam nas críticas a Israel. Starmer via os liderados de Corbyn como o inimigo a ser derrotado, usando o antissemitismo como sua principal arma.

Preocupado com o alcance da perseguição dos supostos antissemitas, Corbyn disse a Starmer que não aceitava colocar nesse rol membros do partido somente por adotar posições críticas ao governo sionista.

O novo líder garantiu que isso não seria permitido. Era mentira.

Ainda em 2019, a deputada esquerdista Rebecca Long-Baylei compartilhou um post, que mostrava policiais de Minneapolis treinando em Israel métodos como o ajoelhamento no pescoço dos suspeitos.

Starmer agiu rápido. Rebaixou Rebeca na hierarquia do partido, qualificando seu ato de “conspiração antissemita”.

Acusação furada, o fato era verdadeiro, portanto, não havia por que penalizá-la.
Corbiyn apelou a Starmer. Por uma questão de justiça a punição de Rachel deveria ser revertida, Starmer não o atendeu, não iria perder a chance de ganhar pontos na sua luta pessoal contra os esquerdistas do partido e, ao mesmo tempo, de reforçar seus laços com os grupos pró-Israel.

O novo líder assim explicou sua decisão: “Meu principal foco é reconstruir a confiança com a comunidade judaica”.

Quando Corbyn foi eleito líder do Labour em 2015, o establishment do Reino Unido e o regime de Israel temeram a eventual elevação a primeiro-ministro desse político socialista e crítico das ações israelenses contra o povo palestino.

Sendo conservadora a maioria da empresa britânica, todos os jornais (menos o The Guardian e o Daily Mirror) iniciaram uma campanha de descrédito do esquerdista Corbyn, então líder do Labor, acusando-o de antissemita, apesar dele ser notoriamente adversário de todas as formas de racismo.

Baseando-se em denúncias frívolas e interpretações exageradas de fatos sem importância, os lobbies pró-Israel convenceram a comunidade anglo-judaica de que Corbyn seria um antissemita de raiz, o que resultou numa série de manifestações públicas de protesto.

Até a BBC participou. No programa da série Panorama, 7 ex-membros e ex-funcionários do partido afirmaram que o antissemitismo se espalhara pelo Labour, sob as bênçãos do então líder, Jeremy Corbyn.

O programa deixou muitos trabalhistas indignados, pois seria uma investigação “seriamente incorreta, com uma posição politicamente parcial, que violou os princípios jornalísticos básicos, inventou citações e editou e-mails para alterar seu significado”.

Possivelmente tinham razão, pois a maioria dos denunciantes fora ou ainda era ligada a adversários de Corbyn ou a entidades judaicas. Sentindo-se ofendidos, os sete processaram o partido, exigindo indenizações,

Um ano depois, já como líder, Keir Starmer, surpreendentemente, decidiu pedir perdão aos delatores e pagar indenizações, calculadas entre 500 mil e 600 mil libras. Isso apesar de advogado do Labor afirmar que as chances de se ganhar o processo eram substanciais.

Isso soou como um reconhecimento de que o programa estava certo, os sete delatores falaram a verdade e o Labor na liderança Corbyn teria mesmo culpa no cartório.

Consequências da capitulação ideológica

Continuando a roer a imagem de Corbyn, Starmer, em outubro de 2020, promoveu a suspensão do rival esquerdista. O motivo foi sua recusa em aceitar as alegações da Comissão para a Igualdade e Direitos Humanos sobre o antissemitismo no período em que chefiou o partido.

Com isso, Jeremy ficou proibido de participar das sessões da Câmara dos Comuns. Os trabalhistas sentiram que algo muito estranho estava acontecendo no partido, quando foram votados dois projetos de lei que violavam princípios fundamentais do partido.

O primeiro, a Lei de Operações no Ultramar, protegia os membros das forças armadas inglesas de eventuais processos por tortura, assassinato, atentados sexuais e outras lesões aos direitos humanos, cometidas há mais de cinco anos. A nova lei estabelecia regras para dificultar a abertura de processos eventualmente frívolos ou sem base real.

O resultado é que muitos crimes de guerra deveriam passariam em branco, devido às “dificuldades” previstas em lei. Como, aliás, vinham sendo frequentes as violações de direitos humanos.

Nas guerras do Iraque e do Afeganistão, por exemplo, unidades das Forças Especiais do Reino Unido praticaram estupros, assassinatos de inimigos presos, torturas e outras infrações dos direitos humnos, conforme investigações do ICC (Corte Criminal Internacional) e relatórios da BBC e da Cruz Vermelha.

O bizarro foi que, por decisão do líder Keir Starmer, o Labor, tradicional defensor dos princípios humanitários, proibiu que seus deputados votassem contra a lei que os consagrava, devendo se abster.

Ele não queria desgostar os eleitores ardorosamente patrióticos, sensíveis a apelos hiperbólicos como “temos de salvar nossos heróis de vexames”, “a honra do Reino Unido insultada”, “a histórica tradição militar britânica” etc.

Dezoito deputados trabalhistas, entre eles Jeremy Corbyn, recusaram-se a obedecer a esta imposição vergonhosa, opondo-se ao líder. Três deles foram punidos, perdendo suas posições no shadow cabinet.

A lei de proteção a operações secretas visava permitir crimes cometidos por agentes secretos quando fosse para “evitar a desordem, promover o bem estar do Reino Unido e proteger a segurança nacional”.

Os direitos humanos e as liberdades civis estariam protegidos, pois as ações ilegais teriam de ser previamente autorizadas pelos supervisores das operações policiais.

Como a lei não estabelecia critérios, os supervisores teriam mãos livres para decidir se a operação criminosa seria ou não efetivada. Caso tivessem ideias, digamos, um tanto radicais... sai de baixo!

Os fatos nos induzem a crer que tais cidadãos não seriam raros no mundo oculto da espionagem.

Em 2018, conclusões de um comitê do parlamento apontaram que o governo, através de suas agências de segurança e de inteligência, envolveu-se em 670 casos de violências contra pessoas e em 53 renditions (programa de George Bush em que suspeitos de terrorismo eram sequestrados no exterior e levados a interrogatório em países onde se aceitava torturas).

Como se esperava, a lei foi amargamente reprovada pelos trabalhistas, como uma ameaça aos direitos humanos.

Eles não ficaram vendo a banda passar. Apresentaram emendas, proibindo os agentes de cometerem assassinatos, torturas, atentados sexuais ou sequestros, não importa quão sérios fossem os motivos”.

Estas emendas foram recusadas pelo majoritário Partido Conservador. Solícito, Keir Starmer ordenou que os deputados da bancada trabalhista na Câmara dos Comuns se abstivessem na votação, sob pena de punições duras.

Ora, essa postura passiva implicaria em uma negação do princípio dos direitos humanos, um pilar da ideologia trabalhista. E, assim, 34 deputados votaram contra, dos quais, 7 deles renunciaram a seus cargos no shadow cabinet. Deputado Conor McGinn, porta-voz do partido, declarou: “nada justifica o assassinato, a tortura, a violência sexual... É uma das maiores preocupações sobre a lei é que não há nada nela que limite ou especifique os tipos de crimes cobertos”.

Em outubro de 2013, Starmer ampliou seu apoio a Israel. Desta vez foi mais longe: falando em reunião do Labor, declarou que o regime sionista “tinha o direito” de negar energia e água a Gaza (Middle East Eye, 14/6/2024).

Uma das bandeiras atualmente mais caras aos trabalhistas foi assim arriada diante do horror da maioria dos militantes do partido. Assustado pela indignação que provocou, Starmer quis se justificar dizendo que fora mal compreendido, o que ele queria dizer era que Israel tinha o direito de se defender.

Frágil desculpa, ninguém nega a Israel o direito de defesa, mas sim a forma brutal e criminosa como o exercia, matando na Guerra de Gaza dezenas de milhares de civis israelenses, inclusive inúmeras crianças.

Em novembro de 2023, o líder voltou a causar problemas. Numa época que em que, em todo o país, manifestações com centenas de milhares de pessoas exigiam um cessar fogo definitivo em Gaza, Starmer determinou que o Labor apelaria por uma “cessação da luta”, o que foi considerado vago; 56 deputados revoltaram-se contra o líder, preferindo votar num texto do Partido Verde, que falava em “cessar fogo imediato”.

Com a abstenção dos trabalhistas fiéis a Starmer e a oposição do Partido Conservador, a proposta dos escoceses foi rejeitada. Em fevereiro do corrente, nuvens pesadas ameaçavam a paz no Labour. O Partido Nacional Escocês apresentou nova moção de cessar fogo igual à discutida em novembro.

Desta vez a pressão maior sobre Starmer veio dos deputados que haviam seguido suas ordens em novembro e colaborado na derrota dos verdes.

Muitos deles queixaram-se de que estavam sofrendo fortes protestos de suas bases eleitorais, que criticavam sua recusa em votar a favor de um cessar fogo imediato e durável. A pressão destes deputados somada à posição dos colegas em apoio à causa palestina poderia significar um total de 100 votos contrários a Starmer.

Uma grave crise se desenhava, mas o líder acabou cedendo e o Labor acabou se pronunciando por um “cessar fogo humanitário e imediato.”. Pouco antes, Starmer já havia novamente pisado na bola.

Contrariando as promessas dos líderes anteriores, Ed Miliband e Jeremy Corbyn, de que, se chegassem ao poder, o Labour reconheceria imediatamente o Estado palestino, ele informou que isso só aconteceria como parte de um processo de paz entre Israel e os palestinos.

Ou seja, nunca. No momento, todos os partidos israelenses e os habitantes judeus do país recusam-se a aceitar que os palestinos tenham um Estado seu.

Nos 76 anos de História de Israel, só em raros períodos houve alguma aprovação dessa ideia, assim mesmo, minoritária.

É difícil acreditar que até as próximas gerações israelenses, um governo de Telavive entregue a Cisjordânia para os habitantes da região por a possibilidade de construírem um estado independente.

Do que depender de Starmer, nada mudará tão cedo entre o Mediterrâneo e o rio Jordão.
Para ele não tem sido fácil refundar o Labor à imagem e semelhança de suas posições de centro-direita. As raízes da esquerda são profundas.

Um horizonte cinzento

Entre o último ano de Corbyn e o primeiro de Starmer, o número de membros do partido foi de 532 mil para 466 mil. Atribui-se a retirada da maioria ao inconformismo com a liderança autocrática de Starmer.

Usando o antissemitismo como arma contra a esquerda partidária, Starmer promoveu centenas de inquéritos contra suspeitos de antissemitismo, nos quais grande parte deles foi desligada do Labor.

O direito de se candidatar nestas eleições foi retirado de muitos hoje deputados. A campanha contra o antissemitismo foi usada como arma para suspender, rebaixar ou expulsar elementos destacados do partido, como Peter Willsmann, Chris Willianson, Andy McDonald e Dianne Abbot, entre cerca de uma dezena de outros seguidores de Corbyn. O próprio líder da esquerda foi atingido.

Apesar do seu grande prestígio, forjado em 59 anos de militância corajosa e honrada, Corbyn teve retirado seu direito de concorrer pelo distrito de Islington North (em Londres), que ele representava desde 1983.

Diante desse ato faccioso, decidiu candidatar-se como independente, atitude que boa parte dos seus correligionários que sofreram esta injunção também tomaram.

Sem vacilar, Starmer, imediatamente expulsou o rival do partido. Apesar da extensão do expurgo por ele promovido, ainda sobraram muitos adeptos de várias tendências, dispostos a lutar pelos princípios e valores do partido.

Um deles, o sindicalista Len MCloskey, dirigente do Unite, uma das maiores uniões operárias, assim advertiu o provável próximo primeiro-ministro : “Ele (Starmer) precisa reconhecer que o barco em que está navegando, se pender demais para a direita, afundará.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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