Estranha indiferença dos EUA a novo presidente do Irã
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- Luiz Eça
- 31/07/2024
Os norte-americanos receberam com um pé atrás a vitória do reformista Masoud Pezeshkian nas eleições presidenciais do Irã. Estranho.
Afinal esse resultado encerrava 14 anos de governo dos belicosos conservadores, quando a rivalidade Irã-EUA chegou aos cumes mais altos. E os riscos de uma Guerra estiveram presentes em várias ocasiões.
Note ainda que o novo presidente tem um passado de firme defensor dos direitos humanos, dos direitos das mulheres, da liberdade de expressão, de boas relações com os EUA e da expansão das negociações com o Ocidente.
Ideias geralmente perigosas no Irã para quem as expressa, se bem que louvadas (mas nem sempre praticadas) pelos EUA.
O passado golpista
A desconfiança em um presidente iraniano, mesmo claramente “do bem”, tem origens históricas. Estamos diante de uma profunda inimizade que começou em 1953.
Nesse ano, uma parceria da CIA com o MI6 (respectivamente serviços secretos dos EUA e da Inglaterra), planejou e coordenou um golpe de Estado que derrubou o primeiro-ministro Ali Mossadegh e premiou o xá Reza Palevi com poderes ditatoriais.
Mossadegh havia sido democraticamente eleito dois anos antes. Tempo suficiente para nacionalizar a empresa inglesa Anglo-Iranian, que explorava o petróleo do país, um dos líderes mundiais no setor.
Ele se indignou ao saber que o Irã ficava com apenas 7% dos lucros da petroleira, indo o restante para os bolsos ávidos dos proprietários ingleses.
No discurso em que justificou a nacionalização da Anglo-Iranian, Mossadegh declarou: “com os lucros do petróleo, poderemos equilibrar o orçamento e combater a pobreza, as doenças e o atraso do nosso povo”.
Começou a fazer o que disse, para grande desolação na Bolsa de Londres. Mas o leão inglês ainda tinha dentes. Conseguiu convencer a comunidade internacional a barrar totalmente as exportações petrolíferas iranianas.
Ora, a economia do país dependia totalmente das divisas do petróleo. A crise decorrente fragilizou o governo democrático do Irã e favoreceu um golpe de Estado.
Assumindo os poderes absolutos de uma ditadura, o xá Reza Palevi pretendeu modernizar o país com grandes projetos de fachada, mas a corrupção, os gastos despropositados e a ineficiência da administração aumentaram a pobreza e a carência de alimentos.
Ascensão fundamentalista
Um dos primeiros atos do governo do xá foi a reprivatização da Anglo-Iranian. Posteriormente, um grupo de 7 empresas norte-americanas e inglesas (as chamadas Sete Irmãs) passou a deter 50% das ações da petroleira.
Com a ascensão do xá ao poder absoluto, os EUA tornaram-se hegemônicos no país, injetando maciços recursos econômicos, direcionados especialmente às forças armadas e à Savak, a poderosa polícia política do regime.
Através de torturas, prisões em massa e execuções ilegais, a Savak reprimiu a oposição, instituindo um clima de terror.
Felizmente, havia um lugar onde os críticos da situação podiam se reunir sem riscos: as mesquitas. Lá, a Savak não se atrevia a penetrar, por razões religiosas. Fato que deu grande poder aos clérigos.
Em 1979, o descontentamento popular provocou uma insurreição que levou ao poder o aiatolá Khomeini e os xiitas. Criou-se então a República Islâmica do Irã, baseada na sharia (leis do islamismo), com forte presença dos aiatolás e liderança de um Supremo Líder.
Logo após sua deposição, o xá fugiu para os EUA, onde pediu e conseguiu asilo. O que foi contestado pelo Irã, que solicitou o imediato embarque de Reza Palevi para ser julgado em Teerã por seus crimes. Washington recusou-se a atendê-lo, alegando que o xá sofria de câncer, estando sob os cuidados da Clínica Mayo.
A irritação foi geral no Irã. Ao identificar os EUA com o odiado governo do xá e o golpe contra o popular Mossadegh, o povo viu os estadunidenses como inimigos. Ainda mais porque corria um boato de que os EUA pretendiam intervir militarmente no Irã.
Como reação, um grupo de estudantes tomou a embaixada norte-americana, sequestrou 52 diplomatas e funcionários. O governo de Teerã recusou-se a tomar uma atitude, o que sujou a imagem do país junto ao povo norte-americano.
Para evitar um provável conflito militar; o presidente Jimmy Carter apelou para negociações. Elas duraram 444 dias.
Finalmente, os reféns da embaixada foram libertados com o chamado ”Acordo de Argel”, no qual os EUA se comprometeram a nunca mais interferir, direta ou indiretamente, política ou militarmente, nos assuntos internos do Irã.
Como estes costumam respeitar acordos somente quando os favorecem , o novo presidente Ronald Reagan simplesmente os ignorou. Ele ajudou o ditador Saddam Hussein na Guerra Irã versus Iraque (1980-1988), em disputa de uma área na região da fronteira.
O Iraque tomou a ofensiva, mas o Irã, depois de um recuo inicial, reagiu e expulsou o invasor. Inicialmente neutro, o governo Ronald Reagan passou a apoiar o governo de Bagdá.
Mandou para lá engenhos mortíferos como agentes químicos e biológicos e tecnologia para armas químicas. Deve-se também a este ex-cowboy de filmes de segunda classe de Hollywood o bloqueio no Conselho de Segurança da ONU de uma censura ao Iraque pelo uso de armamentos químicos.
Os EUA também enviaram navios de Guerra ao Golfo Pérsico para proteger os petroleiros iraquianos, provocando diversos choques armados com navios do Irã.
Em 1983, os norte-americanos lideraram uma operação mundial para Impedir o Irã de importar armamentos, necessários para a luta contra o Iraque.
Em julho de 1988, o voo Iran Air 655 foi abatido pelo cruzador norte-americano Vincenne, ocasionando a morte de 290 pessoas. A aeronave civil tinha sido confundida com um avião militar enquanto sobrevoava o espaço aéreo iraniano.
Há quem considere proposital. Eleito em 1998, o presidente Khatami defendeu o respeito aos direitos humanos e uma política econômica que atraísse capitais estrangeiros.
Sofreu sempre forte e implacável oposição dos aiatolás da facção conservadora. Seus esforços para melhorar as relações com os EUA frustraram-se, quando Bush, o presidente de plantão, colocou o Irã no “eixo do mal.
Foi uma humilhação para o país. Diante desse fracasso, Khatami foi derrotado nas eleições seguintes e os conservadores linha dura voltaram a governar.
O cinismo contemporâneo
No governo Obama, sucessor de Bush, o temor de que o Irã estivesse empenhado em se tornar uma potência atômica crescia, estimulado por acusações falsas de Israel.
Depois de muito discutir, em 2015, as potências globais (EUA, Reino Unido, França, China, Alemanha e Rússia) firmaram um acordo com o Irã, que impossibilitava o país de desenvolver um programa nuclear militar. E livrava o Ocidente do risco de um pouco confiável Irã vir a possuir armas atômicas.
Inimigo declarado do Irã, Donald Trump, o novo morador da Casa Branca retirou os EUA do Acordo Nuclear, em 2018.
Para obrigar Teerã a desistir de seu programa nuclear pacífico, o governo de Washington resolveu apelar para a força bruta.
Tratou de reimpor parte das sanções vigentes contra o Irã antes da assinatura do acordo nuclear. E acrescentou novas sanções, ainda mais duras.
Era a chamada “máxima pressão”, com que The Donald visava destruir a economia iraniana e baixar brutalmente ao nível de vida do povo, o que forçaria os aiatolás a virem de joelhos submeter-se às exigências do presidente norte-americano. Mas Teerã resistiu.
Durante os anos seguintes sucederam-se ameaças e ofensas de EUA e Israel ao Irã. Devidamente rebatidas pelos aiatolás.
Em vários momentos, aconteceram episódios militares que deixaram o Oriente Médio próximo de uma guerra, possível de se alastrar pelo mundo, com os EUA e o Irã em lados opostos.
No início do ano de 2020, The Donald assassinou o general Suleimani, chefe da defesa avançada do Irã, através de um míssil lançado por ordens suas diretas.
Idolatrado pelo povo, Suleimani supervisionava as ações de milícias aliadas na Síria, Iraque, Líbano (países de governos aliados ) e Iêmen (os aliados houthis dominavam o norte do país).
A vingança iraniana foi comedida: lançamento de mísseis sobre duas bases norte-americanas no Iraque, quando, misteriosamente, todos os soldados estavam abrigados e só sofreram dores psicológicas.
No fim de 2020, realizaram-se novas eleições presidenciais nos EUA. Em Teerã, os círculos reformistas e moderados acreditavam nas promessas do candidato Biden, de que faria os EUA voltarem ao acordo nuclear com o Irã, suspendendo todas as sanções que continuavam abalando o país.
Doce ilusão. Na discussão da volta dos EUA ao Acordo Nuclear com o Irã, Biden demonstrou má vontade, cedendo pouco e exigindo muito.
As reuniões acabaram suspensas. E o que foi mais grave: Biden manteve as sanções arrasadoras do governo Trump. Mais tarde apresentou novas sanções a quem ele considera “o maior promotor de terrorismo do mundo”.
Há alguns meses, desferiu mais um golpe no adversário. A força aérea dos EUA organizou, participou e comandou a operação que derrubou a nuvem de drones e mísseis lançados pelo Irã para vingar o assassinato de um general do Quds por aviões de Israel.
Portanto, desde 1953, os EUA têm intervindo ou praticado outros atos hostis no Irã. Somente uma vez, no caso do sequestro dos diplomatas, os iranianos também agiram ilegalmente.
Israel e imperialismo acima de tudo?
Agora, está surgindo uma possibilidade de os dois países se entenderem. Para os EUA seria uma chance de renovar o Acordo Nuclear e assim tirar da cabeça a ideia temida de um Irã possuidor de bombas atômicas.
Outra coisa auspiciosa para Washington: um Oriente Médio sem inimigos, sem preocupações com ameaças de países indóceis.
Sem contar que, uma eventual superação da longeva quizília com Teerã abriria um mercado de 90 milhões de habitantes, ansiosos por produtos norte-americanos.
Contrariando a posição dos anteriores governos linha dura, Pezeshkian defende a liberdade de expressão, os direitos civis, os direitos humanos, o reatamento com os EUA e a Europa e os direito das mulheres, investindo inclusive contra o hijab (mandatório no Irã).
Criticou as violências do governo Raisi na revolta dos jovens contra a morte da garota Mansa Amini em custódia da polícia. E foi além: solicitou uma comissão de inquérito, na imprensa social, para apurar os responsáveis pelas ações brutais da polícia e de paramilitares.
Negociar a volta do acordo nuclear com um presidente com tais ideias e ações seria algo inusitado e produtivo no relacionamento EUA-Irã.
Assim não entendeu o secretário de Estado, o inefável Anthony Blinken. Para ele, o Irã continuaria sempre o mesmo, “o maior promotor de terrorismo no mundo”, fato, aliás, jamais provado.
Antes das eleições, em 8 de julho, os EUA informaram que “negociarão ou terão reuniões diplomáticas com o Irã quando for útil a nossos interesses nacionais”.
Depois das eleições, repórteres lembraram essa frase a John Kirby, porta-voz da secretaria de Estado. “Então, os EUA vão retomar suas negociações nucleares, devido às posições do novo presidente?”
Inicialmente, Kirby limitou-se a dizer “não”. Diante da insistência dos repórteres, ele acabou explicando: “Não, nós não estamos em posição de voltar à mesa de negociação com o Irã, baseado só no fato de que eles elegeram um novo presidente”.
Ou seja, tanto faz que o Irã eleja presidente um líder humanista ou um saco de batatas.
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Luiz Eça
Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.