Correio da Cidadania

A sabotagem de Bibi e a submissão de Biden: como se destrói a salvação de Gaza

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Joe Biden and Antony Blinken in dress attire.
Mike Coppola/Getty Images 

A revelação em 31 de maio das principais ideias do projeto de paz dos EUA, que Biden mentirosamente atribuiu a Israel, agradou aos países envolvidos na busca de um ponto final para a brutal Guerra de Gaza. Mas não ao premiê de Israel.

E assim, apesar do otimismo de John Kirby, chefe do conselho de segurança da Casa Branca, o acordo entre Israel e o Hamas, mediado pelos EUA, Catar e Egito, não deve sair tão cedo do papel.

Biden e Blinken, seu secretário de Estado, repetem enfaticamente que o Hamas é o culpado, que se nega a aceitar a proposta apresentada pelo ainda presidente dos EUA.

A verdade é bem outra. O Hamas aplaudiu a solução, fazendo apenas alguns reparos nos detalhes. Foi o que bastou para o sibilino Blinken afirmar que essas modificações eram totalmente absurdas.

Embora oficialmente em silêncio, Israel era tratado por ele como um firme apoiador da nova proposta.

Porém o próprio líder, o premiê Netanyahu, disse o contrário, em entrevista ao canal 12, Telavive: “a afirmação de que Israel concordou em acabar com a guerra antes de todos os seus objetivos serem conseguidos é uma mentira total”.

E esclareceu que seu país continuaria lutando até o Hamas ser eliminado, “voltarem todos os nossos reféns e se assegurando que nunca mais Gaza representará uma ameaça a Israel (Times of Israel, ‘10/6/2014)”.

Submissão inacreditável a Israel

Indignados com a atuação negativa de seu chefe, membros da comissão de mediação, revelaram (anonimamente) que Bibi estava sabotando as negociações.

Num ato de coragem (raro nele) Biden disse: “Há todas as razões para acreditar que o primeiro ministro Benjamin Netanyahu está continuando a atacar Gaza por razoes políticas, dele” (Turnout, 4/6/2024).

O inquilino da Casa Branca está certo. Bibi sabe que, enquanto houver guerra, o povo israelense apoiará seu comandante em chefe.

Face um acordo de paz com o Hamas, o povo não tem porque aceitar a permanência de um primeiro-ministro a quem é fortemente hostil. Ele seria forçado a marcar novas eleições. Conforme recente pesquisa, 69% das pessoas ouvidas exigem a renúncia de Bibi e novas eleições, nas quais ele seria proibido de concorrer.

Nesse caso, Netanyahu se veria transladado das macias almofadas do poder para o duro banco dos réus, onde o espera um processo criminal, com boas chances de condená-lo.

É para evitar essa incômoda perspectiva, que ele vem sabotando as negociações que visam pôr fim à Guerra de Gaza. O que faz seus liderados na comissão de paz arrancarem seus cabelos, tomados de justa ira.

Sob anonimato, eles procuraram a imprensa, delatando os atos de seu chefe: “a manifestação de Netanyahu objetiva explodir as negociações, não há outro meio de explicar. Ele sabe que está havendo progressos, então ele vem com declarações que são o oposto do que concordaram com os mediadores” (Times of Israel, 20/8/2024)”.

Por fim, as duas partes apesentaram alterações, que desejavam que fossem feitas na proposta em discussão.

Num esforço para tornar o acordo mais palatável, o Hamas retirou a exigência de um cessar fogo permanente.

Por sua vez, Blinken foi a Telavive para conferenciar com Bibi. Voltou sorridente, com o rosto tomado de santa alegria, anunciando que a reunião foi muito construtiva e o premier aceitara a nova versão da iniciativa norte-americana.

Claro, o documento acolhia todas as alterações de Israel, rejeitando as dos palestinos. O mais importante para Telavive é manter em suas mãos os corredores Filadélfia e Netzarim.

O corredor Filadélfia, a única ligação de Gaza com o ambiente externo, completaria o fechamento da fronteira com o Egito.

Gaza continuaria uma prisão a céu aberto, com seus habitantes dependendo da autorização israelense para entrar ou sair do estreito.

O corredor Netzarim, por sua vez, é uma faixa de terra que divide a cidade de Gaza em duas partes. Para passar de uma parte para a outra, os habitantes seriam submetidos ao controle dos militares de Israel.

A situação ficaria ainda pior do que antes da guerra, já que seria acrescentado ao domínio sionista o estabelecimento de tropas israelenses no interior do território de Gaza.

O Hamas se deu conta de que a comissão criada para pôr termo à guerra não era para valer. Apenas uma jogada de Netanyahu para se mostrar interessado na paz e assim suavizar a péssima imagem que agora Israel apresenta, devido às barbaridades cometidas na Guerra de Gaza.

Diante do viés israelense da proposta original, o Hamas retirou-se das negociações, que, teoricamente, continuam, embora sem uma das partes não tenham sentido mais.

Certamente, Netanyahu brindou com o horroroso vinho do seu país o fracasso de uma iniciativa pela paz em Gaza, que ameaçava seu alto cargo.

Quanto aos EUA, nada fez para pressionar o premiê e impedir sua ação em favor da guerra. Pelo contrário, chegou a deturpar a proposta que apresentara, a qual merecera elogios de toda a parte, impondo modificações ditadas por Bibi, sabidamente inaceitáveis pelo Hamas.

Estranho pois, para Biden, a aprovação do seu acordo seria um maná. Não porque se sentisse satisfeito em interromper a escalada dos ataques tão mortíferos quanto criminosos de Israel contra o inocente povo de Gaza, mas porque poderia trazer preciosos e abundantes votos de eleitores felizes pelo término do massacre de Gaza, o que possivelmente garantiria a vitória do candidato democrata contra a ameaça Trump.

No entanto, o incondicional apoio a Israel o obrigou a favorecer esse país, contrariando seus próprios interesses e os do seu próprio partido.

E, na hora do vamos ver, os EUA apresentam uma proposta feita sob medida para o premiê israelense, destinada à rejeição, pois o pessoal do Hamas pode ser louco, mas não é burro, jamais aceitaria um texto que impunha quase todas as medidas exigidas por Israel.

Nessa ocasião, um oficial sênior da força aérea israelense informou ao Haaretz que os “EUA estariam em condições de pressionar Telavive a aceitar um acordo equânime já que sem o enorme fornecimento de armas e munições do país amigo, Israel dificilmente poderia continuar sua guerra por mais uns poucos meses” (Haaretz, 2/2/2024)”.

Autossabotagem democrata?

Difícil entender as razões do masoquismo do presidente democrata. Afinal, Israel não é mais dono dos “hearts and minds” dos norte-americanos. Ano a ano, aumenta a posição pró-palestinos dos súditos de Joe Biden.

Pesquisa Gallup de 16/3/2024 mostra que 49% dos entrevistados têm mais simpatia pelos palestinos do que pelos israelenses, estes apoiados por apenas 38%. Esse inesperado índice aumentou 11% relação a 2023.

Muitos democratas ainda torcem por Israel, mas bem menos de forma incondicional. Em recente pesquisa, 62% dos democratas se manifestam pela suspensão do envio de armas e bombas ao exército de Israel; 56% dos membros desse partido acham que Israel está cometendo genocídio em Gaza; e 7 em 10 defendem um cessar-fogo permanente (Truthout – 8/5/2014).

Há outra hipótese para explicar o incondicional apoio do establishment democrata a Israel: a conquista dos votos dos judeus-americanos. Mas não parece haver fundamento. Em primeiro lugar porque sempre esse segmento do eleitorado tem votado nos democratas por ampla vantagem. Além disso, já não se faz mais judeus-americanos como antigamente. A maioria deles não aprova Netanyahu de olhos fechados. Muitos se pronunciam criticando o governo sionista em pesquisas sobre questões como a matança do povo de Gaza, o direito à independência dos palestinos e o cessar fogo permanente na guerra.

Grande número de jovens judeus-americanos tem participado das manifestações de rua em favor dos palestinos, até mesmo coliderando algumas delas, como recentemente em Chicago.

Acredita-se que o principal motivo da adesão do Partido Democrata às posições e atos de Israel (mesmo os que violam os direitos humanos) seja ganhar o respaldo e o dinheiro de milionários e bilionários que fecham com Israel.

Parece inegável que os próceres democratas considerem o dinheiro um fator essencial para sua campanha eleitoral. Esta, digamos estratégia, tem dado certo, as doações para a campanha de Kamala Harris superam as do problemático Trump.

E, 1 em cada 3 doadores de mais de mais de 900 mil dólares à dupla Harris-Walz, manifesta-se publicamente contra os apelos palestinos, colocando Israel no céu.

Não quer dizer que os 2/3 restantes não pensem do mesmo modo, apenas que são discretos, preferindo evitar falações políticas em público.

No entanto, nothing is perfect, como filosofou Joe E. Brown no final do filme “Quanto mais quente melhor”. Posicionar-se totalmente ao lado de Israel tem seus riscos.

O massacre de 40 mil palestinos, inclusive 17 mil crianças, comoveu boa parte do mundo, principalmente os jovens.

Nos EUA, a maioria deles vota nos democratas e perfila ideias progressistas, de defesa dos direitos humanos. E estão indignados com a política do governo democrata no Oriente Médio.

Movimentos espalharam-se pelos EUA, concitando os eleitores democratas a abandonar Biden.

Em Michigan, que concentra a maioria dos cidadãos árabe-americanos, foi fundado o movimento VOTE DESCOMPROMISSADO, propondo que as pessoas votem num candidato independente ou se omitam, mas não em Biden (quando ainda era candidato), caso não mudasse a política externa no Oriente Médio. Por todo o país, jovens e progressistas exortavam as pessoas a abandoná-lo.

Os resultados foram surpreendentes nas eleições primárias do Partido Democrata. Em Michigan, o VOTE UNCOMPROMISED conseguiu 100 mil votos.

Kamala não mostra firmeza

Diante da renúncia de Biden e a entrada de Kamala Harris, renovaram-se as esperanças dos progressistas e dos demais jovens democratas. Depois de algumas frases isoladas, interpretadas com otimismo como avançadas, Harris logo mostrou-se adepta das posições de Biden. Pretende manter o envio de armas a Telavive, o apoio total ao governo sionista, o direito de Israel “se defender” etc.

Decepção geral no campo dos progressistas e dos jovens do partido democrata. Quase todos resolveram continuar pregando o agora ABANDONE HARRIS, enquanto a nova candidata continuar rezando pela cartilha de Israel.

Os chefes da campanha democrata acreditam que mesmo os jovens progressistas do partido acabarão votando na sua candidata, para livrar o país da devastação que a vitória de Trump provocaria.

Em parte, depende do que Biden fará na guerra de Gaza ou em outras batalhas que Bibi poderá empreender para se manter no seu cargo. Mesmo que prefira a omissão, típica dos patos mancos como ele, ainda assim Kamala poderá ter de pagar pelos maus atos do presidente que ela vem endossando.

Os jovens constituem 17% do eleitorado, a maioria favorável aos democratas.
Se a eleição fosse hoje, estima-se que Kamala desfrutaria de uma confortável vantagem: entre 50% e 60% dos votos jovens, contra cerca de 34% a Donald Trump.

Mas as eleições serão a daqui a 2 meses. Muita coisa pode mudar. Os jovens não são grandes apreciadores do ato de votar. Em recente pesquisa, 77% do total dos jovens informou que deverá votar, o que é bem inferior às intenções de 90% dos cidadãos mais velhos.

Nas últimas eleições 52,5% dos jovens acorreram às urnas. Foi um recorde. Biden soube convencer parte dos jovens de que compartilhava muitas das suas teses sobre os eventos no Oriente Médio.

A participação entusiasta do principal líder progressista do país, o senador Bernie Sanders, foi considerada um aval à presidência Biden. Hoje, o apoio desse político à candidata dos democratas vem sendo extremamente discreto.

Continuando a proclamar amor eterno a Israel, no Bem e no Mal, Kamala certamente amanhará mais algumas milionárias doações de campanha. Mas conseguirá motivar um grande número de jovens a sufragar seu nome, em vez de aproveitar o feriado para fazer algo mais divertido?

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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