O Haiti no seu day after
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- Luiz Eça
- 08/02/2010
Um dia os haitianos feridos acabarão de ser tratados, os mortos enterrados e Porto-Príncipe reconstruída (ao menos em parte). E, então, o que ficará?
Antes do terremoto, havia 80% da população abaixo da linha da pobreza e 70% de desempregados no país mais pobre da América Latina. O governo não tinha condições de oferecer serviços básicos de qualidade mínima, cabendo a soldados do Brasil e outros países garantirem a segurança pública. A economia achava-se em colapso, com uma dívida externa de 1 bilhão de dólares e uma infra-estrutura totalmente deficiente.
Com o terremoto, tal situação certamente será muito pior. Como uma ilha que, nos tempos da colônia, foi uma das maiores produtoras de açúcar do mundo chegou a isso?
Foi assim
Em 1804, depois da revolução dos escravos que proclamaram a independência, o Haiti sofreu o boicote dos Estados Unidos (que o achavam um exemplo perigoso para seus escravos) e da França, que se prolongou por 60 anos.
Em 1824, tudo se agravou quando a França enviou uma enorme esquadra contra a república haitiana, forçando-a a pagar 150 milhões de francos, a título de indenização.
Era uma importância enorme na época, quase duas vezes o valor da compra da Luisiana pelos EUA. Representava 80% do orçamento nacional haitiano. E o Haiti já começou a existir falido.
Em 1915, tropas americanas invadiram o país para garantir o pagamento de uma dívida com bancos dos EUA. E os americanos ficaram até 1934, administrando o país de fato e gerenciando seu orçamento, o que representou mais despesas para o já combalido tesouro haitiano.
Entre 1957 e 1986, os Duvalier, Papa Doc e Baby, apoiados pelos EUA, impuseram um regime de terror. Seus bandos de paramilitares, os "Tontons", mataram cerca de 50 mil pessoas e estima-se que ambos roubaram centenas de milhões de dólares, obtidos através de empréstimos assumidos pelo país. Estima-se ainda que 40% da dívida externa na época, cerca de 1,3 bilhão de dólares, foram de responsabilidade da dinastia Duvalier.
Eles haviam contado com a ajuda do Banco Mundial, condicionada a reformas comerciais, que cortaram as taxas de importação.
Mais de 75% da população haitiana trabalhava na agricultura, produzindo cereais, especialmente arroz, para o consumo interno e até para exportação.
Com as reformas liberalizantes do Banco Mundial, os excedentes de cereais americanos entraram livremente no Haiti, sem barreiras, a preços subsidiados, inferiores aos dos produtos locais.
Assim, enquanto o pequeno Haiti tornou-se o quarto importador mundial de arroz, os produtores do país, sem condições de concorrer, faliram, migrando em massa para as principais cidades.
Livres dos Duvaliers, os haitianos realizaram eleições em 1990, com a vitória de Jean-Bertrand Aristide, um padre ligado à Teologia de Libertação, posteriormente expulso pela hierarquia local.
Preocupado com a situação dos pobres, Aristide iniciou programas nas áreas de alfabetização, saúde pública e reforma agrária. Além disso, aumentou o salário-mínimo e criou um programa de obras públicas para gerar empregos.
Com isso, antagonizou a elite local. E também o exército. Muitos oficiais de alta patente revoltaram-se diante das ações de Aristide contra o tráfico de drogas e o contrabando, que eles exploravam desde os tempos dos Duvalier.
Nove meses depois da posse, uma rebelião militar derrubou o governo democraticamente eleito.
Nenhum país reconheceu a junta que ocupou o Poder. A ONU e os EUA condenaram o golpe e promoveram um embargo total. E, em 1994, com autorização da ONU, os americanos intervieram e conseguiram que a junta renunciasse.
Aristide voltou para governar nove meses até o término do seu mandato. Para sucedê-lo foi eleito seu ex-ministro, René Preval. Findo o período Preval, Aristide, em 2002, candidatou-se novamente. E venceu.
Encontrou a economia à beira do colapso. As sucessivas dívidas contraídas com bancos americanos e europeus para pagar a indenização exigida pelos canhões da frota francesa, em 1824, pesaram de forma arrasadora no tesouro nacional. Essa dívida só acabou de ser paga em 1947, estimando-se que o total do principal, mais os juros, chegaram a quase 21 bilhões de dólares. A isso se somaram os elevados gastos decorrentes da ocupação americana e dos desmandos dos Duvalier e da junta golpista.
Por sua vez, o Estado achava-se consideravelmente enfraquecido, limitado em suas ações em razão de acordo com o FMI, o qual, para "equilibrar" o orçamento haitiano, forçara a demissão de grande número de funcionários, extinguindo virtualmente serviços públicos essenciais.
Mesmo com recursos minguados, Aristide procurou realizar reformas importantes. Aumentou substancialmente o acesso da população à educação e à saúde pública, reduziu o analfabetismo, aperfeiçoou o treinamento dos juízes, proibiu o tráfico de crianças e mulheres, dobrou o salário-mínimo, instituiu a reforma agrária e a assistência a pequenos produtores rurais, construiu casas populares e combateu a corrupção da burocracia.
Desde seu primeiro mandato, ele foi combatido pela direita americana, que suspeitava de suas idéias consideradas populistas e esquerdistas.
O senador republicano Jesse Helms promoveu a divulgação de um relatório da CIA, que taxava Aristide de psicopata, desqualificado para governar. A prova: passou por internação num hospital para doentes mentais no Canadá.
O jornal Miami Herald investigou o caso e provou que era falso. Na verdade, o político haitiano fora hospitalizado para tratar de hepatite.
Foi apresentado também um vídeo no qual Aristide conclamava seus seguidores a enforcar os adversários. O vídeo havia sido editado. Falseava a realidade. Mas quem causou prejuízos reais ao presidente do Haiti foi o então presidente George Bush.
Ele bloqueou um empréstimo, já autorizado pelo Banco Inter-Americano de Desenvolvimento, no valor de 500 milhões de dólares. Dessa maneira, projetos nas áreas de educação, saúde, conservação de estradas e purificação de água foram para o espaço.
E os programas do governo Aristide começaram a fazer água.
O FMI deu sua contribuição. Em 2002, condicionou empréstimos de que o Haiti desesperadamente precisava à aplicação do chamado "sistema de preços flexíveis dos combustíveis".
A alta decorrente dos combustíveis ocasionou um aumento médio de 40% nos preços dos produtos de consumo.
O FMI exigia também um congelamento dos salários para "controlar as pressões inflacionárias". O governo teve de baixar os salários públicos, além de reduzir o salário mínimo em 25 centavos por hora.
Completando o conjunto de ações desestabilizadoras, os americanos e europeus passaram a canalizar toda a sua ajuda humanitária às ONGs. A justificação foi a corrupção dos funcionários e membros do governo.
Sem esses recursos, que seriam importantes na conjuntura econômica altamente desfavorável, o governo ficou de mãos atadas para prestar os serviços que lhe competia.
Aproveitando o mau momento por que passava Aristide, a chamada oposição civil organizou-se através do chamado Grupo 184, formado por membros da elite local.
Seu presidente, o empresário americano, filho de haitianos, Andy Apaid, era proprietário das Indústrias Alpha, o maior empregador industrial do país, com 4.000 operários. Fundada no período Duvalier, a Alpha exporta produtos têxteis e monta peças eletrônicas para uma série de empresas americanas, aproveitando seus baixos custos: é uma "sweatshop", ou seja, o tipo de fábrica que explora seus operários ao máximo.
As empresas Alpha exigem jornadas de trabalho de 78 horas por semana (Daily News, New York, 24/2/2004) e pagam salários de 68 cents a hora (Miami Times, 26/2/2004). Cite-se que o mínimo atual é 1 dolar e 50 cents.
O Grupo 184 já fazia oposição desde a primeira eleição de Aristide. Passou a atuar com mais agressividade no segundo mandato do presidente, quando ele dobrou o salário mínimo: de 1 para 2 dólares, por dia.
Os empresários do movimento acusaram Aristide de tirano e corrupto, promovendo manifestações públicas de protesto. Apesar de pretenderem representar todas as camadas sociais, só conseguiram atrair a faixa rica da população, além de pequena parte da classe média.
O Grupo 184 estava ligado a militares revoltados com o governo por ter desmobilizado os membros do exército e da milícia Tonton Macoute comprometidos com violências na era Duvalier.
Segundo Mark Weisbrot, o Grupo 184 contava também com o apoio do "business" americano: "A Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional e Instituo Internacional Republicano (braço do partido Republicano) gastaram milhões de dólares para criar uma oposição organizada e tornar ingovernável o Haiti sob Aristide".
Os militares descontentes formaram uma força muito bem armada, a FLRN, acampada na República Dominicana, junto à fronteira com o Haiti.
A FLRN tinha ligações com o Grupo 184 e era integrada por paramilitares da antiga FRAPH, esquadrões da morte, sendo comandada por Guy Philipe, ex-membro do exército haitiano treinado pela CIA (Juan Gonzalez no New York Daily News, 24/2/2004). Outros líderes eram Emmanuel Constant e Jodel Chamblain, antigos Tonton Macoutes.
Deflagrando a revolta, a FLRN cruzou a fronteira, invadindo o país. Aristide procurou organizar a resistência. Mas os EUA foram rápidos.
Militares americanos desembarcam em Porto Príncipe e levaram o presidente para a África Central. Alegaram que o haviam convencido de que sua renúncia era essencial para a pacificação do país.
Do seu exílio, Aristide contestou essa versão, afirmando que fora, na verdade, seqüestrado. Fato confirmado pelo piloto americano do helicóptero presidencial, Frantz Gabriel.
De acordo com a Constituição, o presidente do Supremo Tribunal Haitiano assumiu a presidência, solicitando a ação da ONU para manter a segurança interna e garantir uma transição política pacífica. O Conselho de Segurança atendeu. Foi enviada uma força militar multinacional, sob a liderança do Brasil, posteriormente chamada "Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti" (MINUSTAH).
Em 2006, René Preval, foi eleito presidente. De lá até o terremoto, o Haiti voltou a ser como era antes de Aristide. Os programas sociais por ele iniciados foram interrompidos.
Mantido o regime de livre importação, a agricultura nacional continuou prejudicada, sem condições de concorrer com as importações de cereais americanos.
O desemprego continuou alto e o PIB per capita mal atinge 1200 dólares. Uma pequena classe rica, formada por exportadores e empresas "sweatshops", paga salários de fome, muito abaixo do mínimo dos tempos de Aristide.
No day after do terremoto, a imprensa internacional divulga a idéia de que o Haiti é incapaz de se governar. Um diplomata, que representou o Brasil numa das conferências sobre o país, fala dos "costumes bárbaros" do povo. Comentaristas da Globo emocionam-se com os 2 milhões de dólares doados pelo povo americano. Os EUA e o Brasil brigam para aparecer como maiores doadores. Sarkozy, cujo país cobrou inexoravelmente o preço extorquido do Haiti pela sua independência, convoca uma reunião de discussão sobre a situação pós-terremoto, que não conclui nada de válido. Estadistas falam que a MINUSTAH ficará ainda muitos anos no país.
E, no entanto, o Haiti precisa apenas que o ajudem, ou pelo menos permitam que ele tenha um projeto para se tornar um Estado de verdade.
Se não for possível aos EUA e à Europa perdoarem a dívida externa de 1 bilhão de dólares, que façam empréstimos ao Haiti, com prazos e juros extremamente suaves, para o desenvolvimento do país
Que os EUA, especialmente, pressionem o FMI para deixar de lado seus princípios e deixar o Haiti cobrar taxas de importação para que a agricultura do país tenha condições de competição e possa sobreviver e crescer.
Que a ONU pressione o presidente Preval a promover no prazo constitucional uma eleição realmente democrática, permitindo a participação, hoje proibida, de Jean Bertrand Aristide (pesquisa do Gallup, em 2002, mostrou grande apoio popular a ele) e seu partido.
Que a força militar do Brasil realize o treinamento de haitianos para formarem uma polícia eficiente e honesta. E se retire depois disso.
Que a Europa e os EUA enviem sua ajuda humanitária ao governo haitiano, ao invés de fazê-lo para as ONGs. Só assim o governo terá condições de oferecer serviços públicos de nível digno à população.
Repetindo uma frase muito sovada, mas aqui muito adequada, "Mais do que caridade, o Haiti precisa de uma oportunidade".
Luiz Eça é jornalista.
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