Bush corrige a pontaria (1): Palestina
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- Luiz Eça
- 29/06/2007
A partir desse texto, o colunista Luiz Eça escreve uma série de 4 artigos sobre a nova estratégia americana no Oriente Médio e seus resultados, cada um deles focalizando um dos principais fronts da guerra na região. Nesse primeiro número da série, enfoca-se a Palestina. A seguir, semanalmente, virão Líbano, Iraque e Irã.
Como explica Bresser Pereira: “Os movimentos islâmicos são essencialmente movimentos políticos nacionalistas empenhados na luta para dotar suas respectivas nações de um Estado que lhes sirva de instrumento de ação coletiva. A religião está fortemente presente, mas é a arma ideológica usada na sua luta pela soberania nacional” (entrevista à Folha de São Paulo, 13-06-06). Por isso mesmo, esses movimentos são os principais adversários do governo americano no Oriente Médio, pois se contrapõem aos objetivos da política imperial na região que são: exercer hegemonia sobre seus países, controlar o petróleo da região e preservar os interesses de Israel.
Em 2006, os movimentos islâmicos estavam se saindo bem. As coisas vinham correndo mal para os Estados Unidos nos principais fronts do Oriente Médio. O Irã (radicalmente xiita) resistia às pressões e continuava desenvolvendo seu programa atômico. O Hamas, que, como se sabe, também é xiita, usara as regras da democracia – a grande bandeira da diplomacia americana na região - para vencer as eleições na Palestina. No Iraque, a insurgência (quase toda sunita) estava cada vez mais forte e, o que era mais grave, Bush perdia o coração e as mentes do próprio povo americano - agora querendo o fim da ocupação do país invadido - que elegera um Congresso democrata para trazer “our boys” de volta. No Líbano, depois da derrota israelense, o Hezbolá (para variar, também xiita) se consagrara como o defensor do país, aplaudido por todas as forças políticas, inclusive seus inimigos históricos cristãos e sunitas. Foi exatamente essa circunstância – quase todos os principais inimigos dos americanos serem xiitas - que condicionou uma correção dos rumos da política americana.
Relata o repórter investigativo Seymour Hersh (ganhador do prêmio Pulitzer), na revista New Yorker, que, em fins do ano passado, o governo de Washington decidiu mudar sua estratégia no Oriente Médio. Agora, pela chamada “Redirection”, os inimigos principais são o Irã (o número 1), a Síria e seus aliados, os xiitas. Contra eles, todo o poder de fogo dos capitais, das armas e da diplomacia americana. Os sunitas, inimigos seculares dos xiitas, receberiam apoio financeiro, militar e logístico, sendo incentivada a guerra civil entre as duas seitas para impedir a todo custo sua união, tida como desastrosa para os interesses americanos.
Segundo o artigo de Hersh, foi estabelecido que os americanos financiariam operações clandestinas contra seus inimigos até mesmo de grupos sunitas próximos à Al Qaeda e ao Taliban, como os Irmãos Muçulmanos, poderosa organização espalhada por todo o Oriente Médio e Norte da África.
Na Palestina, a nova estratégia política americana vem acumulando derrotas, embora suas perspectivas de virar o jogo sejam bastante viáveis.
Pegou mal a reação da Casa Branca diante da vitória do Hamas em eleições democráticas irrepreensíveis. O corte da ajuda econômica americana e européia à Autoridade Palestina, mais a retenção por Israel das taxas a que os palestinos tinham pleno direito foram vistos pela opinião pública internacional como medidas violentas e injustas. O ex-presidente Jimmy Carter as qualificou como “um crime”, pois sem esses recursos a Autoridade Palestina não tinha como pagar os médicos, professores, policiais, assistentes sociais e outros funcionários do governo - causando o caos dos serviços públicos, uma verdadeira tragédia humanitária para a população inocente.
O motivo principal do boicote recebeu críticas até mesmo de vozes autorizadas do conservadorismo como Henry Siegman, no Financial Times. Ele lembra que o estado de Israel é uma realidade completamente assente há 40 anos. Já a Palestina independente só não existe porque Israel recusou-se a obedecer à ONU e voltar para suas fronteiras anteriores à guerra de 1967. E Siegman conclui: “A questão politicamente pertinente é saber se Israel reconhece ou não o direito dos palestinos a ter um Estado. Não o inverso”. O outro motivo – a recusa do Hamas em cessar os ataques a Israel – não valia, pois esses ataques tinham parado há já 19 meses.
O que parecia impossível aconteceu. Com ajuda financeira de países árabes, a Palestina sobreviveu. No entanto, as divergências entre o Hamas e o Fatah se acentuaram. Os elementos mais radicais dos dois grupos se enfrentaram em sangrentas lutas nas ruas. Com a “Redirection” em marcha, os Estados Unidos, através de Israel, apoiaram com armas e treinamento militar os sunitas do Fatah. Posteriormente,a mediação da Arábia Saudita parecia ter conseguido um acordo entre as partes. Formou-se um governo de coalizão com elementos das duas facções, liderado pelo presidente sunita Abbas e pelo primeiro-ministro xiita, Ismael Hameyia.
A paz durou pouco. Os choques voltaram, particularmente na faixa de Gaza, onde se concentrava o maior poderio do Fatah. A gota d’água foi quando os americanos oficializaram o que já vinham fazendo secretamente: o Congresso aprovou um projeto, coordenado pelo tenente-general Keith Dayton , que concedia 60 milhões de dólares para despesas militares do Fatah. Ficou inequivocamente provado o colaboracionismo do movimento sunita com o inimigo americano. O Hamas não esperou que o dinheiro chegasse a seus adversários: atacou e venceu, expulsando-os da Faixa de Gaza.
O plano americano é muito claro. Em primeiro lugar, fortalecer os sunitas do presidente Abbas, instalados na parte maior da Cisjordânia, a chamada Margem Oeste (West Bank), para que ganhem, de fato, o status de legítimos representantes do povo palestino. O boicote já foi levantado. Os fundos europeus e americanos e as taxas retidas por Israel já estão voltando a chegar. Só que apenas para os palestinos “do bem”, os sunitas da Margem Oeste. Para a faixa de Gaza, dos xiitas, nada!
Com o apoio do Ocidente, a tendência é uma melhoria das condições de vida da Margem Oeste, contrastando fortemente com a pobreza que cresce sempre em Gaza. Um acordo de paz entre o “soi disant” moderado Abbas e seus sunitas com o governo de Israel será mais fácil. Já se sabe até onde os israelenses poderão ir. Aceitarão uma Palestina independente mas sem abdicar de seus assentamentos. Seria impossível. Onde alojar os 300 mil judeus que vivem neles?
Para garantir a circulação entre Israel e os assentamentos, os judeus jamais renunciarão ao controle das estradas, através de postos militares espalhados por elas. Com isso, o novo estado palestino ficaria dividido numa série de autênticos “bantustãos”, separados entre si .
Também é remota a possibilidade de Israel entregar Jerusalém, sua capital histórica e religiosa. E de devolver aos palestinos, espalhados por campos de refugiados nos países próximos, as terras que lhes foram tomadas quando da fundação do Estado de Israel. Em troca, é bastante viável uma compensação financeira.
Como o governo palestino-sunita aceitaria uma proposta assim?
Provavelmente de maneira favorável. Já demonstraram seu pragmatismo quando aceitaram a ajuda militar dos inimigos na luta pela faixa de Gaza. O presidente Abbas não irá decepcionar seus parceiros americanos e europeus, dos quais tem recebido repetidas provas de amizade.
A paz na Palestina seria uma conquista tão importante para o presidente Bush e seus aliados europeus que, certamente, investiriam volumosos recursos para enfrentar os problemas do novo Estado.
Mas e os xiitas na faixa de Gaza? Não há dúvida de que serão tratados a ferro e fogo. Já se encontra em execução um plano cuja meta é sufocar Gaza, ampliando o boicote com o fechamento das torneiras dos países árabes donde flui a ajuda financeira.
Se não der certo, bloquear a fronteira com Israel, impedindo a passagem de alimentos e medicamentos e manter fechada a fronteira do dócil Egito. Se nem assim o Hamas for vencido, resta o recurso de uma nova invasão israelense, que a ONU e a comunidade européia se apressarão a lamentar, talvez até condenar, mas, como sempre, ficarão por aí.
Luiz Eça é jornalista.
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