Os americanos não aprendem
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- Luiz Eça
- 20/09/2012
Em 1980, os EUA apoiaram com armamentos a revolta de combatentes afegãos contra o governo comunista, defendido por tropas soviéticas.
Na verdade, fizeram mais do que isso: junto com a Arábia Saudita e o Paquistão, organizaram a estrutura da revolta, recrutando milícias e lhes oferecendo total apoio logístico.
Vieram de outros países diversos grupos de milicianos radicais, chamados para participar do que consideravam uma “guerra santa” (jihad) contra os comunistas ateus.
Foi nessa ocasião que apareceu Bin Laden, liderando seu grupo. Também ele recebeu armamentos e até consideração especial por ser um aliado muito eficiente.
A guerra foi dura, tendo se prolongado por nove anos. Com a vitória, os grupos de milicianos não entregaram suas armas. Continuaram lutando, desta vez entre si.
Sucederam-se roubos, estupros, tomadas de terras, assassinatos, execuções extralegais, espalhando a insegurança por toda parte. Os talibãs acabaram vencendo.
No princípio, foram bem recebidos pelo povo, pois impuseram a lei e a ordem no Afeganistão. Bin Laden e sua milícia, a Al Qaeda, que haviam saído do país, voltaram e ali instalaram seu quartel-general e seus campos de treinamento.
Como se sabe, em 2001, um grupo de militantes da Al Qaeda promoveu o atentado de 11 de setembro, onde morreram cerca de 3 mil americanos.
Mas os EUA não aprenderam a lição que receberam no Afeganistão. Dez anos depois, se envolveram em outro movimento revolucionário no Oriente Médio.
Na revolução da Líbia, participavam atores semelhantes aos da guerra do povo afegão contra os soviéticos: milicianos de movimentos islâmicos radicais, além de muitos civis sem vinculação a grupos religiosos.
Como fizeram no Afeganistão, os EUA, ao lado da Arábia Saudita e de países da Europa, entraram firme na luta, apoiando os rebeldes com armas e munições.
Mais do que isso: enviou sucessivas vagas de aviões para bombardear as forças armadas e grande número de objetivos nas regiões sob o domínio do ditador Kadafi.
No decorrer dos combates, aderiram muitos grupos de milicianos salafitas estrangeiros (islamitas radicais), inclusive a Al Qaeda.
Derrotado Kadafi, foi formado um governo interino com líderes oposicionistas, a maioria exilada. Mas, a história se repetiu: os milicianos não entregaram as armas. Alguns grupos ficaram na capital, a maioria espalhou-se pelo interior.
Ocuparam locais importantes, como o aeroporto de Tripoli, até mesmo cidades. Em toda parte, esses grupos dedicam-se a perseguir, prender, torturar e até matar suspeitos de “Kadafismo”, quando não estão lutando entre si.
Constituem hoje um grande contingente de 100 mil guerreiros, equipados com armas pesadas, inclusive foguetes-lançadores de granadas. O governo tenta desarmá-los. Mas, sendo muito fraco, não consegue quase nada.
Sobre esta questão, o New York Times publicou uma matéria intitulada: “A Líbia luta para conter as milícias, enquanto o caos cresce”.
Alguns fatos são bastante esclarecedores:
- em 6 de junho, uma bomba de estrada foi detonada em frente ao consulado americano em Benghazi, o mesmo local onde o embaixador Stephens foi assassinado;
- alguns meses depois, a embaixada inglesa foi alvejada por uma bomba que não a atingiu;
- durante vários meses, grupos salafitas armados vêm saqueando e queimando mesquitas, enquanto a polícia nada faz;
- em maio, os escritórios do primeiro-ministro interino em Trípoli foram atacados por forças de milicianos armados;
- em abril, milícias rivais de Zuwarah e Ragudalen entraram em luta na região de Trípoli, com pelo menos 22 mortes;
- Said, filho de Kadafi, permanece preso por uma milícia que o capturou e até hoje se recusa a entregá-lo às autoridades. Um advogado enviado para assisti-lo pela Corte Internacional de Justiça foi preso durante vários dias;
- Em janeiro, manifestantes em Benghazii invadiram os escritórios do Conselho de Transição Nacional, revelando sua intenção de separar a região da Líbia;
- a milícia que tomou Trípoli no ano passado era liderada por um antigo atirador da Al Qaeda;
- pouco antes de a revolução triunfar, ocorreu o assassinato do líder insurgente, general Abdel Yunis. O crime não foi sequer investigado;
- em Misrata, a ONG “Médicos Sem Fronteira” informou que tratara 115 homens torturados. Pior: soube que, depois de receberem alta, as vítimas foram torturadas novamente;
- A “Anistia Internacional” relatou que imigrantes subsaarianos suspeitos de terem integrado o exército de Kadafi estavam sendo presos e executados;
- ONGs de Direitos Humanos revelaram possuir documentos que provam a execução de crimes racistas contra a população negra da cidade de Tawergha, pela brigada que ocupou Misrata.
E os EUA novamente sofreram consequências funestas de sua ação decisiva em favor de rebeldes, quando o embaixador Stephens e três membros do seu staff foram assassinados em Benghazi.
Apesar das duas duras lições que receberam no Afeganistão e na Líbia, os americanos continuam repetindo seus erros.
Na revolta da Síria, o cenário é o mesmo: rebeldes civis pró-democracia e milícias estrangeiras radicais, mercenários, portanto cada vez mais numerosas e dominantes.
É verdade que, na revolta da Síria, não foram ainda tão longe a ponto de enviar armas ou envolver-se diretamente na luta. Por enquanto, limitam-se a exigir punições duras da ONU e a demissão e julgamento de Bashar Assad.
Na luta propriamente dita, sua ação resume-se a enviar dinheiro para fins não letais – embora os revoltosos provavelmente o usem para comprar armas -, realizar ações de espionagem através da CIA e prestar serviços na área de comunicações. Mas, em 9 de setembro, Hillary Clinton assegurou que os EUA vão reforçar seu apoio à oposição síria.
Não vou dizer que o governo americano esteja menosprezando o fortalecimento dos grupos de mercenários, inclusive da Al Qaeda, na revolução. Ele tem feito muita força para unir as várias facções sob o comando dos políticos civis moderados. Difícil que dê certo. Afinal, tentaram o mesmo na Líbia e, até agora, as coisas vão muito mal por lá.
Há, por fim, um governo eleito democraticamente, portanto, com mais força que o interino teve. Até que ponto terá condições de desarmar as milícias e colocar ordem no país está ainda para ser visto.
Na Síria, as perspectivas não são melhores. Os mercenários radicais estão assumindo posições hegemônicas especialmente porque, além de bem organizados, seus efetivos são formados por gente experiente e capaz, provada em muitos combates.
Com a Rússia e a China bloqueando qualquer resolução contra o governo Assad, que dê margem a intervenções militares estrangeiras, restarão dois caminhos para os EUA: ou unir-se aos países que desejam um acordo de paz, no qual as duas partes saiam ganhando alguma coisa, ou lançar a força militar da OTAN contra o governo.
Não sei se o primeiro tem muita chance. Já adotar a outra solução seria incidir pela terceira vez no mesmo erro.
Com o fim desastroso pressagiado pelo que aconteceu nas vezes anteriores.
Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.