Assassinato em Belfast: prendam a polícia
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- Luiz Eça
- 21/12/2012
Naquele domingo, em 1989, Pat Finucane almoçava com a família quando a porta da rua foi violentamente arrombada a marretadas.
Um grupo de homens invadiu a sala e fuzilou Finucane com 14 tiros, diante de sua mulher e filhos.
Assim, foi assassinado esse conceituado advogado irlandês, conhecido por defender membros do IRA, o movimento revolucionário clandestino.
No ano anterior, o advogado conseguira que o tribunal retirasse as acusações contra o insurgente Pat McGeown de participação no assassinato de dois cabos do exército inglês.
Foi por isso jurado de morte pelo Ulster Freedom Fighters (UFF), grupo paramilitar inimigo do IRA e partidário do governo.
Posteriormente, soube-se que Brian Nelson, informante da inteligência inglesa, infiltrado no IRA, fornecera a foto do advogado para os assassinos do UFF executarem sua missão.
Esses fatos aconteceram numa época em que bombava o conflito do IRA contra a polícia da Irlanda do Norte, o exército inglês e os grupos paramilitares ligados ao Ulster Defender Association.
O IRA, apoiado pelos católicos, defendia a integração da Irlanda do Norte na República da Irlanda – com bombas e assassinatos.
O outro lado, apoiado pelos protestantes e anglicanos, lutava pela manutenção da região como parte do Reino Unido, sob hegemonia da Inglaterra, através de violenta repressão policial e militar, inclusive torturas, e de atentados praticados por grupos paramilitares.
Essa divisão carregada de ódio entre católicos e protestantes e anglicanos tem origens históricas.
A princípio, Irlanda e Inglaterra eram países católicos e separados. Posteriormente, a Inglaterra conquistou a Irlanda e nos tempos de Henrique VIII adotou os credos anglicano e da igreja reformada, da qual se originaram as várias seitas protestantes.
Mas os irlandeses conservaram sua antiga fé. No século 17, no governo de Oliver Cronwell, a única ditadura inglesa, o governo de Londres invadiu a católica Irlanda e derrotou-a depois de uma guerra sangrenta.
Cronwell trouxe consigo grande número de famílias inglesas que colonizaram parte da região norte da Irlanda, equivalente a 1/6 do território irlandês. Mas todo o resto do país e 1/3 do norte ocupado permaneceram católicos.
Em 1916 e 1919, os irlandeses se revoltaram contra os ingleses, mas foram derrotados.
Finalmente, em 1923, obtiveram uma independência parcial, continuando súditos do rei da Inglaterra, embora de modo praticamente formal.
Posteriormente, sua independência tornou-se completa. Mas a Irlanda do Norte não saiu do Reino Unido.
Os ingleses sempre exploraram os recursos locais, perseguindo os rebeldes e discriminando os irlandeses católicos em favor dos descendentes dos emigrados protestantes.
Com isso, criou-se uma situação em que os protestantes tinham os melhores empregos, moravam nas melhores casas e recebiam as maiores vantagens estatais.
E os católicos ficaram com os piores empregos, moravam em guetos e eram mal tratados pelas autoridades.
Manter a Irlanda do Norte no Reino Unido era importante para os protestantes e unir a região à República da Irlanda mobilizava os católicos.
Foram estas as raízes de um ódio que cresceu, configurando-se uma situação em que o antagonismo religioso é apenas o reflexo de uma questão social crítica.
O IRA surgiu para lutar em favor da soberania total da Irlanda contra a aliança de interesses dos protestantes com o governo inglês.
Nos anos 80, o conflito rugia feroz, com os atentados do IRA atingindo o próprio território inglês e a polícia da Irlanda do Norte e o exército inglês praticando uma repressão brutal.
Como no famoso “Domingo Sangrento”, quando uma passeata pacífica pró-união à República da Irlanda foi dispersada a tiros pelo exército inglês, matando muitas pessoas.
No caso do assassinato de Pat Finucane, sua família não se conformou com o que considerava um inquérito negligente, suspeito de proteger os planejadores do crime.
Iniciou uma campanha nacional exigindo uma investigação aberta e completa. Como o assassinato foi cometido à luz do dia por paramilitares do UPP, sua participação ficou notória.
Defenderam-se, alegando que o advogado era um oficial do IRA. Embora tal acusação fosse irrelevante – evidentemente isso não justificaria a execução de Pat –, sua família sempre negou veementemente.
Em 1994, finalmente, um acordo de paz foi firmado, comprometendo-se o IRA a renunciar à luta armada e o governo inglês a admitir maior participação dos políticos católicos no governo da Irlanda do Norte e com reformas para suavizar a questão social.
Mas a família de Finucane não cessou sua campanha. Testemunhas e evidências foram apresentadas e denunciadas pela imprensa, sem que o inquérito caminhasse.
Finalmente, em 1999, William Stobie, um antigo membro das Ulster Defender Association e da polícia norte-irlandesa, foi acusado pela morte de Finucane. Ele admitiu ter fornecido as armas para os assassinos.
Dois anos depois, o caso de Stobie desmoronou por ter uma testemunha chave se recusado a fornecer evidências.
Ele foi libertado, mas semanas depois foi assassinado por pistoleiros do UPP, numa queima de arquivo.
Mais quatro anos, em maio de 2003, Ken Barrett, adepto da união à Inglaterra, foi preso e acusado do assassinato. Ele confessou e foi condenado a 22 anos de prisão.
A família de Finucane não considerou o caso terminado, pois, além de só um dos assassinos ter sido preso, jamais se conheceram os nomes dos mandantes e as ramificações da conspiração na polícia e no exército.
A família do assassinado continuou a exigir uma investigação completa e transparente. O premier David Cameron nunca concordou – não se sabe por quê.
Preferiu encarregar sir Desmond de Silva de fazer uma revisão de todo o caso, analisando provas, testemunhos e alegações já apresentadas.
As conclusões acabaram de vir a público. Ficou evidenciado que membros do aparelho de segurança do Estado haviam conspirado para o assassínio.
De Silva verificou que policiais da Irlanda do Norte planejaram o crime, passaram informações para os executores, deixaram de impedir o ataque e obstruíram a investigação criminal.
Também revelou a responsabilidade da inteligência do exército, pois um dos seus agentes esteve envolvido na escolha do alvo do atentado.
Foi uma bomba.
O primeiro-ministro Cameron declarou que o crime e o envolvimento da polícia e do exército foram chocantes.
O chefe de polícia da Irlanda do Norte, Matt Baggott, afirmou que a polícia aceitava as conclusões do relatório de forma completa. E que eles haviam falhado abjetamente.
No entanto, a revisão de Silva também concluiu que “não houve participação dominante do Estado na conspiração”.
Com o que a família Finucane não se conformou. Geraldine, a viúva do advogado, declarou: “é uma vergonha. Houve um encobrimento. O governo manobrou para suprimir a verdade” por trás do assassinato de Finucane.
Ela acredita que altas autoridades da política, do exército e da polícia norte-irlandesa tenham culpas no cartório.
Para a família, somente uma investigação pública, onde a veracidade dos documentos e das testemunhas possa ser testada sob contra-interrogatório, poderá chegar à verdade sobre a extensão da conspiração das forças de segurança, para que se saiba quem foram todos os culpados.
O chefe de polícia da Irlanda do Norte talvez estivesse pensando nisso quando declarou que, nos próximos dias, irá se reunir com o ombudsman da polícia local e com o Ministério Público para discutir a revisão De Silva.
Com o acordo de 1998, as coisas ficaram mais calmas na Irlanda do Norte. Embora alguns exaltados do IRA, de raro em raro, ainda cometam um atentado e as lutas entre grupos – por vezes multidões – de católicos e de protestantes não tenham acabado de todo.
O caso Finucane, que parecia esquecido, voltou a emocionar, divulgado com o maior destaque pelos jornais do Reino Unido.
Considerar a revisão De Silva uma pá de terra sobre o assunto pode resultar em um novo incêndio capaz de se espalhar por toda a Irlanda do Norte.
Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.