Operação dedo-duro
- Detalhes
- Luiz Eça
- 19/07/2013
O caso Bradley Manning fez tremer as estruturas mentais do establishment de segurança dos EUA.
Foi quando esse pessoal tão criativo gestou uma ideia para prevenir futuros vazamentos de informações que o governo deseja esconder do povo: prender os eventuais reveladores.
Silenciosamente (talvez com vergonha), o governo Obama vem implantando gradualmente seu “Programa de Ameaças Internas”.
Ele visa fazer com que os milhões de militares, funcionários federais e de empresas contratantes denunciem ações suspeitas de colegas, com base em técnicas de análises de comportamentos. Que identifiquem personalidades dispostas a revelar segredos oficiais.
Aqueles que se omitirem em denunciar estarão sujeitos a punições, inclusive processos criminais.
É a institucionalização do “dedo-durismo” como obrigação moral e cívica.
As informações sobre este programa foram levantadas pelo McClatchy News e relatadas em artigo escrito por Jonathan Landaig e Marisa Taylor.
Diz Gene Barlow, um porta-voz do “Escritório Executivo Nacional de Contra- Inteligência”, que supervisiona as ações governamentais para deter espiões e hackers e está colaborando na implementação do “Programa de Ameaças Internas”: “Em antigos casos de espionagem, algumas pessoas viram coisas que poderiam identificar um espião, mas não relataram. Por isso, o trabalho de conscientização do programa é ensinar às pessoas não apenas os tipos de atividades que devem ser delatadas, mas também como fazer isso e por que é tão importante”.
Os servidores públicos acusados pelos seus colegas serão investigados caso realmente apresentarem os chamados “comportamentos de ameaça interna (insider threat behavior)”.
Igualmente, esse trabalho de identificação de presumíveis informantes indiscretos poderá ser realizado pela rede de computadores que detecta “usos suspeitos” e os denuncia à autoridade competente.
Para se determinar um “comportamento de ameaça interna”, a recomendação é se prestar atenção ao estilo de vida das pessoas, atitudes, problemas financeiros, horas de trabalho estranhas, viagens inesperadas, alterações repentinas nos seus hábitos.
Por exemplo: um colega que reclama do baixo salário que, de repente, compra um carro de luxo ou viaja para a Europa, é suspeito.
Assim como um funcionário que chega sempre cedo no trabalho e passa a se atrasar com frequência.
Ou aqueles que criticam com frequência atos do governo. Casos assim podem compor o perfil de um “revelador de segredos” em potencial. Talvez um segundo Edward Snowden.
O “programa dedo-duro” será dirigido por gerentes com amplos poderes para realizarem suas funções do modo mais eficiente.
Eles terão acesso normal, em qualquer momento e, se possível, eletrônico, aos dados pessoais dos empregados, folhas de pagamentos, arquivos disciplinares, registros dos seus usos de redes de computação classificados e não-classificados, resultados de testes de polígrafo e informações financeiras.
Apesar de todas estas considerações, as coisas não devem rolar de um modo feliz como, digamos, num filme de James Bond.
Quando consultados, os principais conselheiros científicos do governo coçaram a cabeça, enrugaram a testa e sorriram amarelo.
Complicado, né?
Predizer ações futuras de alguém com base no seu comportamento atual é coisa para cartomantes. Não se pode garantir que vai dar certo.
Devido ao atentado às Torres Gêmeas, os EUA vivem tempos de extrema insegurança, que se refletem, inclusive, numa rigorosa, senão exagerada, seleção na admissão de funcionários civis ou militares.
A maioria deles é obrigada a passar por testes de polígrafo, exames da vida profissional, das suas finanças, relações, ideias políticas e filosóficas, antecedentes criminais.
Indo mais longe, alguns setores do governo dos EUA têm se preocupado em determinar perfis de indivíduos suscetíveis a violar seu dever de não revelar segredos oficiais.
O Pentágono, as agências de inteligência e o Departamento de Segurança Interna já gastaram dezenas de milhões de dólares em projetos de pesquisa.
No entanto, depois de décadas de esforços, ainda não conseguiram determinar uma lista de tipos de comportamentos que possam identificar, sem erros, funcionários capazes de violar leis de segurança nacional.
Mesmo assim, diversas agências e departamentos já elaboraram suas listas de comportamentos suspeitos.
A maioria adota as indicações relativas a possíveis espiões: graves problemas financeiros, relaxamento nas regras de segurança, viagens ao exterior não explicadas, trabalho fora de hora sem necessidade e doenças súbitas ou não explicadas.
O SPOT, programa anti-espiões e informantes indiscretos, aplicado nos aeroportos pela TSA (Administração de Vigilância dos Transportes), custou 878 milhões de dólares, empregando 2.800 funcionários.
O SPOT usa guardas para detectar comportamentos suspeitos entre os passageiros, analisando sinais de stress, medo, decepção etc. Não vai nada bem.
O New York Times citou declarações de funcionários do TSA que acusaram o SPOT de promover discriminação étnica e racial, abordando, em especial, pessoas do Oriente Médio, hispânicos viajando para Miami e afro-americanos usando bonés virados.
A pouca ou nenhuma eficiência do programa não é o menor dos seus problemas.
Antes de mais nada, se todos ou a maioria dos funcionários civis e militares o toparem, teremos o absurdo de alguns milhões procurando uns poucos possíveis transgressores.
Será usar um canhão para alvejar alguns insetos. Mas os imensos gastos em termos de perda de tempo dos denunciantes e dos agentes encarregados de receber as denúncias não serão o pior problema.
Já se pensou no clima persecutório, no medo, nos cuidados extremos para não despertar suspeitas? Em pessoas trabalhando de olhos nos colegas mais próximos? Em funcionários impopulares, alvos favoritos de suspeitas?
A desagregação das equipes será fatal, com tremendos prejuízos para o serviço.
E as injustiças que serão feitas, as amizades desfeitas, os problemas que os denunciados inocentes terão de sofrer para se livrarem de acusações erradas?
Ainda mais porque, ao que tudo indica, não faltarão denúncias furadas. Mesmo em grande número, pois um caçador de espiões capaz leva anos para ser treinado.
A convocação de amadores para esta função, ainda que bem intencionados, resultará, na certa, em erros sem conta.
Mais: é preciso levar em conta as retaliações, denúncias falsas para se vingar de desafetos. Sem riscos: em caso de comprovada a inocência das vítimas, os acusadores poderão alegar que agiram com excesso de zelo.
Esse “programa dedo-duro” tem antecedentes pouco recomendáveis. Na Rússia de Stalin e na Alemanha de Hitler, todos eram instados a denunciar colegas de trabalho ou de escola de tendências anti-governo.
Cedo degenerou, ainda mais quando crianças fizeram seus pais de alvo do seu patriotismo psicótico.
Não chego a imaginar que isso irá acontecer no país de Obama. Mas está claro que, com o dedurismo, os EUA dão um grande passo no caminho do Estado policial.
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Luiz Eça é jornalista.
Website: Olhar o Mundo.